A Pessanha o que lhe pertence

Resenha do livro "Clepsidra", de Camilo Pessanha
Camilo Pessanha, autor de “Clepsidra”
01/12/2011

Quando Paulo Franchetti preparou o imprescindível O essencial sobre Camilo Pessanha (publicado em 2008 pela Imprensa Nacional — Casa da Moeda, de Lisboa), viu-se obrigado a dedicar parte considerável do volume a desfazer a persistente “mitologia” criada em torno de Pessanha. O texto dessa obra, com modificações, foi incorporado à edição de Clepsidra da qual trata esta resenha; e, se tantas considerações biográficas podem parecer um exagero aos não familiarizados com a fortuna crítica de Pessanha, qualquer um que a conheça não tardará a reconhecer o valor dessas páginas.

Com efeito, parte considerável da bibliografia produzida em torno de Camilo Pessanha se revela contaminada por um repertório de fantasias pretensamente biográficas que acabam por condicionar a leitura de sua obra. Em parte cultivada pelo próprio poeta, em diálogo com o imaginário social da época, a imagem do gênio excêntrico que, por sua natureza diferenciada, apartava-se dos estratos ordinários, foi logo apropriada por desafetos; daí a figura do vagabundo opiômano, entregue em Macau a uma vida de luxúria, incapaz do menor asseio ou do respeito às mais elementares normas sociais. Lida à luz desses mitos, concebidos sem quaisquer bases documentais, a poesia de Pessanha foi reduzida aos sintomas de uma mente desviante.

À tarefa de resgatar o sentido da poética de Camilo Pessanha, Paulo Franchetti já dedicara uma obra fundamental: Nostalgia, exílio e melancolia: leituras de Camilo Pessanha (Edusp, 2001), volume em que o esforço exegético prescinde dos recursos ao psicologismo e dos reducionismos epocais. Não menos importante, contudo, é o trabalho que realiza sobre Clepsidramagnum opus de Pessanha, que encerra a clave para a compreensão de sua poesia, e que já surge em 1920 com sérios problemas editoriais. Ocorre que, embora o poeta ainda estivesse vivo quando a obra foi publicada por Ana de Castro Osório, esta não pôde contar com a colaboração do autor no que diz respeito à organização do volume; disso resultou uma obra composta segundo critérios que contradizem o ideário estético de Pessanha — por exemplo, no que diz respeito à ordenação dos poemas a partir de critérios formais, não constituindo uma estruturação temática.

Embora Franchetti seja o autor de uma valiosa edição crítica de Clepsidra (1ª ed., brasileira: Editora da Unicamp, 1994; 2ª ed., portuguesa: Relógio D’Água, 1995), apenas recentemente teve acesso a um documento, provavelmente autógrafo, que sugere uma nova composição do livro. Desse modo, se a Clepsidra que agora nos é oferecida possivelmente não corresponde ao que seria o projeto original de Camilo Pessanha —projeto, aliás, cuja recuperação parece impossível —, opera de forma consciente e competente para reduzir os prejuízos ocasionados por decisões arbitrárias, reagrupando os poemas de acordo com as indicações deixadas por seu autor, quando possível; e, nos outros casos, dispondo-os conforme a cronologia obtida a partir da datação autógrafa. Acrescente-se que, além dos poemas de Clepsidra (cujo texto segue o da edição crítica, que toma por base os autógrafos de Pessanha), constam do livro os fragmentos que o poeta deixou inacabados — a partir dos quais João de Castro Osório, um dos primeiros editores, tomou a liberdade de formar um poema; mas que Franchetti, com o cuidado que lhe é peculiar, desloca para um apêndice.

Devemos a este pequeno, mas valioso volume, a dupla oportunidade de conhecer o homem Camilo Pessanha, finalmente expurgado das inúmeras ficções biográficas que tanto e por tão longo tempo dele fabricaram uma imagem desfavorável e distorcida; e de conhecer uma Clepsidra na qual as intervenções editoriais são reduzidas ao mínimo. Talvez assim possamos nos aproximar daquele poeta que Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro conheceram antes que fosse publicado, na década de 1910, e em quem logo reconheceram a autoridade de um mestre.

Clepsidra
Camilo Pessanha
Ateliê
185 págs.
Camilo Pessanha
Nasceu em Coimbra, em 1867. Em 1894, aprovado em concurso público, tornou-se professor de Filosofia Elementar no Liceu de Macau. Viveria na China até sua morte, em 1926, retornando a Portugal por várias temporadas, durante as quais estabeleceria contato com destacados intelectuais portugueses — entre os quais Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Em 1920, Ana de Castro Osório reúne seus poemas e publica Clepsidra, obra que influenciaria profundamente os rumos da poesia portuguesa. Pessanha foi também tradutor e estudioso da cultura chinesa.
Henrique Marques Samyn

É professor de literatura e escritor. Autor de Uma temporada no inferno e Levante.

Rascunho