A perversão do homem

"Os ratos", de Dyonélio Machado, é perfeito no estilo conciso, na elaboração psicológica do protagonista e na organização da estrutura narrativa
Dyonelio Machado, autor de “Os ratos”
23/04/2017

Dyonélio Machado estreou na vida literária em 1927, com a coletânea de contos Um pobre homem. Oito anos depois, lançaria Os ratos — livro definitivo desse psiquiatra, presidente da Aliança Libertadora Nacional, organização política controlada pelo Partido Comunista e responsável pela Intentona de 1935 — “plano insensato” ou “revolta frustrada”, como o próprio nome salienta, ataque traiçoeiro de Luís Carlos Prestes e seus comandados a quartéis de Natal, Recife e Rio de Janeiro, que causou dezenas de mortes. Dyonélio, tenha ou não participado do plano, ficou preso cerca de dois anos, quando se filia ao PC, sigla pela qual será eleito deputado em 1947.

Os ratos apresenta o funcionário público Naziazeno Barbosa, menos que um amanuense e pouco acima de um contínuo. Correspondendo ao trabalho medíocre na repartição, vive num bairro pobre, com esposa e filho pequeno. Indivíduo fragmentado, nele se concentram as teorias modernas que reduzem o homem a um amontoado de células capaz somente de experimentar aspectos negativos da existência. Não há nenhuma perplexidade nesse protagonista apartado não só da riqueza material, mas também do verdadeiro enriquecimento: interrogar-se a respeito do seu ser, da sua vontade, do sentido da vida. Naziazeno é a representação literária do alienado, mas sem jamais alcançar a etapa revolucionária, única chance, segundo os marxistas, de redenção.

Quando amanhece — a primeira das vinte e quatro horas que compõem a história —, o leiteiro discute com Naziazeno: a dívida precisa ser paga, não é possível admitir mais atrasos — “Lhe dou mais um dia!”, grita o leiteiro e “despenca-se pela escadinha que vai do portão até a rua, toma as rédeas do burro e sai a galope, fustigando o animal, furioso, sem olhar para nada”.

A pobreza surge, assim, não por meio do discurso ideológico, mas graças ao quadro real, composto do pão “quebrado em pedaços miudinhos” no café da manhã — pão duro, esmigalhado pelos “dedos ossudos” — e do que falta à família, realidade que descobrimos no transcorrer do diálogo entre o protagonista e sua esposa: gelo, manteiga, talvez o leite — tudo está sendo eliminado. As desculpas de Naziazeno para os cortes compõem discurso falacioso: segundo ele, a justificativa não está na miséria, mas na inutilidade do que foi excluído. Argumentos não de um estoico, mas de um fraco. Simulação à qual a mulher se submete.

A personalidade de Naziazeno revela-se também na forma como vê os outros e se preocupa com a opinião alheia. Acredita-se “fuzilado” pelos olhares de todos. Em grande parte, trata-se apenas da imaginação desse homem, preso às suas debilidades, incomodado com a vida simples e digna dos vizinhos, tão pobres quanto ele, mas prontos a não abdicar da alegria. Os “olhos devassadores” o perturbam apenas por um motivo: Naziazeno acredita-se inferior, incapaz. Envergonhado e submisso, encontra-se apartado da vida tranquila ou dos pequenos prazeres — não por serem inalcançáveis, mas por sua própria incapacidade. Sob a pressão desses olhares — que compõem um diálogo sempre incompleto e fantasioso —, a imagem do leiteiro, “superior e inquietante”, provoca-lhe náuseas, “amargura doída”, sufoca-o. Por meio do narrador, cuja voz se confunde com a do próprio Naziazeno, sabemos como julga fraca a própria esposa — e seus critérios denunciam o sentimento de inferioridade: “Fosse a mulher do amanuense, queria ver se as coisas não marchariam de outro modo”. Mas ambos, marido e mulher, são exemplos de dupla pobreza: falta de recursos materiais e miséria moral.

Dyonélio não escreve como um reducionista, recusa-se a produzir um romance que seja peça de propaganda partidária ou cartilha ideológica. A obra, portanto, não denuncia a degradação das condições sociais — que os marxistas estão sempre prontos a encontrar em qualquer nicho da realidade —, mas a vontade desfibrada dos personagens. Essa falta de energia, moral e física, não é atributo da classe social a que Naziazeno pertence, mas concentra-se na figura do protagonista, em oposição à realidade que o circunda. A pobreza material é mero adereço nesse homem despersonalizado, que não luta para se impor, lento em tudo o que faz — no trabalho, acumula dez meses de atraso —, revelando inaptidão e letargia a cada gesto, a cada escolha, sempre pronto a depender de que outros tomem as decisões. Vivendo as consequências dessa “preguiça doentia”, Naziazeno cruza as vinte e quatro horas do seu dia angustiado mas incapaz de agir, sem nunca esquecer a dívida com o leiteiro. Consegue idealizar a solução do problema, mas não se espere que lute para resolvê-lo.

Hesitante perfeito
Naziazeno é o hesitante perfeito, acorrentado ao passar das horas, medroso, submetido às loucuras da imaginação. Veja-se, no Capítulo 8, o retrato psicológico dessa figura cujo mérito é antecipar-se, sem lógica ou apoio na realidade, à própria derrota: Alcides, um amigo, pede a Naziazeno que vá cobrar a comissão da venda de um automóvel. Relutante, o protagonista se dirige ao endereço, antevendo, a cada passo, as dificuldades que enfrentará. A numeração da rua e a arquitetura das casas — mas, principalmente, sua insegurança — criam a fantasia, a expectativa que se ancora apenas na imaginação. Pronto a enfrentar a “casa assobradada, com jardim, isolada e aristocrática”, suado, sentindo as pernas moles, o coração acelerado, nervoso e com dor de cabeça, tudo se confunde diante do olhar que percorre as fachadas — até que o número indicado por Alcides surge, “duro e impessoal”, e ele descobre a porta “pintada de um gris sujo, e um pouco empenada, fechando mal embaixo”, casinha de aluguel, de “aparência um tanto pobre”. Mas nem mesmo a realidade lhe dá coragem: basta que o “corpanzil” do morador se insinue “na porta entreaberta como uma hérnia” para que ele gagueje.

O autor maneja com perfeição o discurso indireto livre — o narrador absorve, desdobra as hesitações da personagem — e leva Naziazeno de um receio infundado a outro, caminhando pela cidade como um idiota, sem rumo, capaz de desistir sob a pressão de qualquer olhar. É um animalzinho comprimido entre a necessidade e os impulsos imediatos. Coloca sua esperança no jogo do bicho ou na roleta; mas resta-lhe apenas, em alguns momentos, o retorno à infância, único tempo aprazível, não destituído de pequenas humilhações.

Dyonélio Machado mostra-se seguro também na elaboração dos diálogos, como no Capítulo 14, em que Naziazeno mendiga um empréstimo apenas para receber diferentes negativas.

O personagem arrasta seus “enormes pés de chumbo” pela cidade — ele não é nada além do dinheiro de que necessita. Não há nenhum encanto nesse flâneur de estômago vazio — assemelha-se ao “animal ascético” de Walter Benjamin (em Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo), mas trata-se de uma ascese que não o aperfeiçoa moral ou espiritualmente. Flâneur destituído de paixão, iluminado pelo sol que, ao entardecer, o narrador compara, de forma expressiva, a uma moeda. Flâneur que não se encanta com o que vê, condenado a repetir sua única urgência, movendo-se impulsionado por apreensões e expectativas frustradas.

Quando um amigo, Duque, finalmente consegue o dinheiro, estamos no Capítulo 23: Naziazeno volta para casa, mas ainda nos resta percorrer uma quinta parte do livro. O leitor, hipnotizado pelo texto, pergunta-se o que falta — e descobre que a tensão predominará até o amanhecer, até que o leiteiro receba seu pagamento. Nessas horas de insônia — em que Naziazeno luta inutilmente para dormir — surgem os ratos, anunciados, desde o início da narrativa, por sugestivas indicações. Obrigado a repisar seu ritual de sobrevivência, Naziazeno sente-se espiado — ali, na cama —, preso à opinião alheia. Nessa vida pequena, asfixiada por preocupações que outros resolveriam com uma risada ou um gesto prático, Naziazeno mostra-se um rato em seu comportamento previsível, na irresolução permanente, no sentimento absoluto de derrota.

Perfeito em seu estilo conciso, na elaboração psicológica do protagonista e na organização da estrutura narrativa, Dyonélio Machado falha ao desesperar do homem e entregá-lo ao nada. Personagem incompleto, paralisado e sem transcendência — como se a alienação fosse propriedade inata e imperecível da humanidade —, Naziazeno representa a perversão do que é o homem.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Raimundo Magalhães Júnior e Fuga e outros contos.

Dyonélio Tubino Machado
Nasceu em Quaraí (RS), em 21 de agosto de 1895, e faleceu em Porto Alegre (RS), em 19 de junho de 1985. Órfão de pai, trabalha como vendedor de bilhetes de loteria, balconista e monitor de classes atrasadas na escola. Muda-se para Porto Alegre e conclui o secundário. Retorna a Quaraí, dirige por sete anos o jornal da cidade e leciona. Volta a Porto Alegre, forma-se em Medicina e se dedica à Psiquiatria. Deixou os romances O Louco do Cati (1942), Passos perdidos (1946), Os deuses econômicos (1966), Prodígios (1980) e Sol subterrâneo (1981).
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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