Estudiosa de trabalho robusto, Regina Dalcastagnè pensa a literatura a partir de fenômenos sociais que interferem e se revelam na produção, na circulação e na recepção de textos e livros. Nesse caso, a perspectiva define pelo menos três fatores interligados: uma concepção, segundo a qual a literatura é um fenômeno variado e passível de classificação ampla; um método de abordagem, que recusa a exclusividade de critérios estéticos; e uma postura, própria de quem estuda obras e autorias procurando desvelar convenções e mecanismos que fazem do campo literário um espaço restrito e segmentado.
Em seu novo livro, O prego e o rinoceronte: resistências na literatura brasileira, a crítica literária confirma raciocínios e procedimentos que tanto marcam sua obra. Dividido nas partes Lembrar e Persistir, o volume se compõe de nove ensaios, em linhas gerais publicados anteriormente, com os quais Regina Dalcastagnè estuda textos e imagens, lança mão de estatísticas para fundamentar interpretações e se posiciona crítica e politicamente: “A literatura contemporânea reflete, nas suas ausências, talvez ainda mais do que naquilo que expressa, algumas das características centrais da sociedade brasileira”.
Extraída do capítulo A cor do silêncio, a passagem reverbera o provavelmente mais repercutido livro da autora, Literatura brasileira contemporânea: um território contestado, de 2012, que com dados quantitativos demonstra o que pode haver de limitado e até de falacioso nas afirmações de pluralidade literária atual. No livro de agora, o emprego do método se justifica porque “se alguém diz que os negros estão ausentes do romance brasileiro, outra pessoa pode enumerar dezenas de exemplos que contradizem a afirmação. Mas verificar que 80% das personagens são brancas mostra um viés que, no mínimo, merece investigação”.
O olhar sensível e a dicção combativa conferem ao trabalho de Regina Dalcastagnè uma posição que, obviamente não sendo exclusiva, é certamente peculiar nos estudos literários brasileiros. Se hoje, com a gradativa e pavorosa corrosão da democracia nacional, tantas pessoas ligadas à literatura passaram a se colocar abertamente em oposição política, a autora de O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro, de 1996, percebe há tempo considerável os atrasos do país e a pertinência de denunciá-los por meio da crítica literária.
Para tomar de outro modo as ausências eloquentes (conforme a primeira citação desta resenha), importa realçar a peculiaridade da autora num recorte temporal maior, lembrando um texto de sua autoria que não consta em O prego e o rinoceronte. Numa intervenção de título direto — Sobre uma crítica que ignora o real —, saída recentemente num periódico pernambucano, Regina Dalcastagnè julga Mutações da literatura no século XXI, de Leyla Perrone-Moisés, um livro elitista e alienado. A história da crítica literária brasileira é muito referida por divergências, com destaque para aquela em que se opõem entendimentos centrados no intro e no extra dos textos. De tais entendimentos decorrem abordagens que, por um lado, priorizam tomar obras como fenômenos estéticos e, por outro, estudam-nas como elementos indissociáveis de um organismo coletivo.
Em resumo, essa antítese começa a dar sinais fortes na segunda metade do século 19 e se aprofunda ao longo do século 20, tendo em Sílvio Romero e José Veríssimo, Afrânio Coutinho e Antonio Candido os divergentes mais afamados. A manifestação de Dalcastagnè assinala que a antiga dissensão prossegue, mas nesta ocorrência, em expressivo sinal do tempo, ela se dá entre duas mulheres. Daí frisar que o livro de Perrone-Moisés não comenta a obra de uma mulher sequer; e daí, da ausência para a presença, O prego e o rinoceronte estudar nomes canônicos, como Aluísio Azevedo e Adolfo Caminha, estudando também Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Ferréz e Sacolinha, dentre outros e outras, porque “não dá para falar de ‘literatura brasileira’ sem problematizar ambos os termos”, diz a Introdução.
Outro tom
O novo livro confirma o pensar contestador de quem o escreveu, mas não deixa de se apresentar em tom solidário. A crítica literária é um ato de amor — a livros, a pessoas, ao mundo —, e ela nos ensina que punhos erguidos não inviabilizam abraços. Montado durante a pandemia, O prego e o rinoceronte responde às angústias do tempo presente com esperança. Ela se inscreve nos títulos das duas seções, que dão relevo ao lembrar e ao persistir, e atravessa todo o volume, das palavras iniciais, tomadas a um xamã yanomami que alerta sobre a visão restrita dos brancos, à conclusão, que fala de “alargamento no universo dos possíveis”.
Subsidiada pela sociologia e pelos estudos culturais, a orientação teórica de Regina Dalcastagnè encaminha a interpretação de obras (sobretudo narrativas) como implicação mútua de texto e contexto. Tal orientação prioriza incluir na ordem-do-dia o que não se considera grande literatura ou mesmo literatura, porque, no entender da autora, tal rebaixamento classificatório decorre de uma exclusão que incide quase sempre sobre os mesmos indivíduos e grupos. Essa poética do fazer crítico se efetiva mesmo quando o fazer crítico não está exatamente em processo: neste e noutros livros, a professora solidamente diplomada agradece a universidades, agências de fomento, docentes e também a estudantes, de níveis diversos de formação, em quem ela encontra diálogo e parceria laboral. No livro (excelentemente editado, por sinal), memória e resistência conjugam evocação de objetos, lembranças de fotografias, interpretação de artes plásticas e análise literária, porque “as coisas, dentro da cena literária ou de nossas vidas, precisam de uma narrativa para continuar existindo, ou mesmo para começar a existir”.
Mas se a perspectiva de inclusão adotada confere à obra procedência crítica, política e humana, por vezes incorre em controvérsias de método e de estabelecimento do corpus de análise. O comparatismo, expediente crítico empregado com frequência por Dalcastagnè, tem seu alcance reduzido conforme os objetos comparados vão sendo dispostos profusamente e sob graus discrepantes de atenção. É o que ocorre, por exemplo, no capítulo Como folhas espalhadas ao vento, sobre O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. Desenvolvida ao longo de 22 parágrafos, a interpretação é excelente até o 18º, a partir de quando se mencionam mais seis autorias, duas delas (João Antônio e Carolina Maria de Jesus) citadas, inclusive. As menções e citações exibem coerência quanto ao texto que ali é principal, mas a dispersão e o resultado incoeso são inevitáveis.
E o ponto mais sensível nos debates acerca das relações entre estudos culturais e estudos literários está no que se pode entender como indeterminação do literário, que chega a se revelar como reverso político. Cito um exemplo. Referido como “romance autobiográfico e fragmentado”, Guia afetivo da periferia (2009), de Marcus Vinícius Faustini, é um conjunto de impressões e lembranças de quem faz exotismo às avessas e não emite uma só palavra contra o que produz e perpetua a periferia como o revés da cidade. Simplista como escrita e simplificador como visão social, o livro vai diretamente ao encontro dos movimentos do poder que jogam confete numa imagem pitoresca do periférico justamente por se recusarem a democratizar a cidade e a cidadania. Talvez não seja por acaso que Faustini integre tais movimentos como agente.
De O prego e o rinoceronte também fica uma lição legada pela ausência: não convém problematizar a literatura brasileira sem se problematizar a própria problematização.