A permanente formação

O obra de Antonio Candido é fundamental para entender a literatura, o Brasil e o humano, que em sua cosmovisão se intercambiam vitalmente
Ilustração: Antonio Candido por Fabio Miraglia
01/11/2023

Ainda não se concluiu o primeiro quarto deste século 21 e dentro dele a obra de Antonio Candido de Mello e Souza já entra em segunda edição. O feito seria significativo para escritores em geral, e se torna mais expressivo por se tratar de livros de um intelectual iniciado como sociólogo e estabelecido como crítico literário. Se o crítico é um “conviva do precipício”, na bela e dramática expressão de Eduardo Portella (em Dimensões I, terceira edição de 1977), pela necessidade de ler e opinar em ritmo acelerado; via de regra é também um habitante do escuro, no que diz respeito aos holofotes habituais do mercado livreiro.

Importa considerar que Antonio Candido se aposentou como professor da Universidade de São Paulo (USP) ainda na década de 1970 e que, após se manter orientando trabalhos de pós-graduação, encerrou definitivamente sua jornada acadêmica em 1992. Assim, conforme declarava, encerrou também sua atividade ensaística, uma vez que a escrita tinha no ofício docente seu combustível decisivo. Alguns títulos de sua vasta bibliografia saíram após o referido ano, mas obviamente davam a público textos programados quando de seu magistério fertilíssimo.

Portanto, a obra de Antonio Candido, voltada sobretudo à investigação do literário, é circunscrita ao século 20, e isso talvez bastasse para que ela fosse relegada às estantes do passado, valendo apenas como registro de uma época, por em tese não ter o que oferecer aos horizontes intelectuais contemporâneos. Mas se uma obra desse perfil é editada pela segunda vez nestes últimos vinte anos, é oportuno verificar o que ela disse e especular o que talvez possa dizer a um tempo que cronologicamente já não é o seu, considerando ainda algo do que se diz a respeito dela. Para isso será necessário extrapolar a forma comum da resenha e recorrer a um número considerável de referências, cujos títulos serão registrados no corpo do texto (e o ano da edição consultada posto entre parênteses, a exemplo do que fiz ao citar Eduardo Portella), assim evitando as notas de rodapé, menos recomendáveis a textos de jornal.

Numa primeira leva, a Todavia relança nada menos do que cinco volumes: Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1750-1880), de 1959, principal trabalho de Antonio Candido, de reverberação internacional; Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação do seu meio de vida, tese com que o autor se doutorou em Ciências Sociais em 1954 e que lançou em livro dez anos depois; Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária, coleção de ensaios saída em 1965 e fundamental para se entender como o crítico percebia as implicações mútuas e complexas entre a vida coletiva e o fazer artístico; O discurso e a cidade, de 1993, outra coletânea de ensaios, em meio aos quais se encontram dois clássicos incontornáveis da crítica literária brasileira — Dialética da malandragem, acerca de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, e De cortiço a cortiço, que parte da análise do mais conhecido romance de Aluísio Azevedo para redefinir noções de originalidade e cópia em literatura; e, por fim, Iniciação à literatura brasileira, derivado de um curso que o autor ministrou na Europa e publicou em livro em 1997, espécie de síntese expandida da Formação e muito útil como panorama de nossa literatura canônica.

Outros quatro títulos foram incorporados recentemente ao catálogo de relançamentos: Vários escritos, A educação pela noite, Teresina etc. e Um funcionário da monarquia.

Com base nesses títulos, a comparação com a edição anterior, realizada pela Ouro sobre Azul, mostra que a empreitada atual não exibe novidades editoriais para além das capas — interessantes pelo viço das cores e pela sobriedade do conjunto gráfico. A editoração repetida em suas bases, no entanto, em nada reduz a utilidade da iniciativa, que já nesta fornada inaugural confirma a alta relevância da obra de Antonio Candido, servindo assim como estímulo ao conhecimento ou à revisitação de seu pensamento sobre a literatura, o País e o humano, que em sua cosmovisão se intercambiam vitalmente.

Servidor
A contribuição de um intelectual para a cultura de seu país se verifica pela qualidade de suas formulações, e aqui meu propósito é destacar as de Antonio Candido no campo da sociologia e, prioritariamente, no da crítica literária. No entanto, uma consideração anterior se impõe, ainda que resumidamente, para registrar algo de suas passagens como militante político e como servidor público.

Em nossa história cultural, o autor de Um funcionário da Monarquia: ensaio sobre o segundo escalão integra um distinto grupo de intelectuais que no século 20 elaboraram uma densa interpretação do País e atuaram diretamente para dar viabilidade institucional ao que suas reflexões projetavam. Embora o século anterior tenha na Independência um acontecimento central, o Brasil iniciou os Oitocentos ainda como colônia e até o último quarto daquela centúria se manteve como Estado escravocrata. Isso diz muito dos entraves para o desenvolvimento científico e artístico de uma nação, que, no caso brasileiro, avançou para o século 20 perpetuando segregações que faziam da cultura um bem — ou um milagre — de poucos e para poucos.

Tendo nascido em 1918 numa família rica e ingressado na universidade na década de 1930, Antonio Candido se formou quando ainda não havia uma tradição acadêmica no Brasil. Já crítico literário destacado na imprensa no decênio de 1940 e um dos fundadores da revista Clima, que reuniu um expressivo conjunto de jovens intelectuais de São Paulo, tornou-se professor assistente de sociologia na USP naquela década. Como profissional do ensino superior, Candido se dedicou, para além das atividades ordinárias, ao estabelecimento de cursos de letras em universidades paulistas, que posteriormente serviriam de modelo para instituições universitárias de outras partes do País. Sem graduação em letras mas com tese defendida em literatura, em 1958 ruma para Assis, interior de São Paulo, para lecionar literatura na faculdade embrionária da hoje chamada Universidade Estadual Paulista em Assis, em cujo processo de criação figurou na liderança de jovens professores e onde organizou o II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, em 1961. Posteriormente Candido voltou para a USP, onde se manteve como professor de literatura, e já aposentado presidiu a comissão que planejou e instaurou o Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade de Campinas, em 1977. Tomando parte direta na concepção e na execução de demandas institucionais, para as quais àquela altura não havia sólidos parâmetros nacionais e que exigem do professor universitário o cumprimento de expedientes acadêmicos simultâneo ao rápido desenvolvimento de senso administrativo, Antonio Candido cooperou decisivamente para no Brasil formar a formação que a rigor não teve.

Isso acentua a singularidade de seu fazer estritamente intelectual. Em Crítica literária: em busca do tempo perdido? (2011), João Cezar de Castro Rocha defende que nas disseminadas querelas entre crítica de rodapé e crítica acadêmica são mais significativas as convergências do que as divergências. Reconsiderando a versão dominante, que opõe rodapé amador e profissionalismo catedrático, o crítico observa que foi padrão entre seus famosos antecessores a lecionação superior de literatura sem prévia graduação em Letras. Antonio Candido exemplifica esta tendência, pois seu trabalho com literatura começou como crítico de jornal, num momento em que era professor universitário de sociologia. Como era e ainda é frequente uma ideia hierarquizante que sobrepõe o repositório acadêmico à página da imprensa, Candido controverte a frequência, na medida em que sua ambivalência fez com que em ambos os setores conjugasse densidade reflexiva e fluidez comunicativa.

Antonio Candido foi militante político, inicialmente filiado ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) e depois fundador do Partido dos Trabalhadores (PT). Por essa militância se posicionou em prol da justiça social, sem a qual todo processo de desenvolvimento é incompleto ou mesmo enganoso. Diferentemente de alguns interlocutores próximos, como Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, não seguiu para a carreira política institucional, concretizando suas diretrizes na dedicação ao serviço público — espaço propício para que o discurso ideológico se revele como coerência ou degenere em retórica. Assim, a formação do sociólogo e a orientação do socialista encontram-se na atuação do crítico, definido pelo próprio Candido como um servidor da literatura, cujas inquietações culturais não excluem preocupações de cidadão.

Sociólogo
A ambivalência do Antonio Candido sociólogo e crítico, desdobrada em sua coadunação de pensador e funcionário, permeia seus escritos. Retomo o que disse no começo da parte anterior — a contribuição de um intelectual para a cultura de seu país se verifica pela qualidade de suas formulações — para afirmar que nesse sentido o nome de Antonio Candido desponta com raridade, uma vez que seu trabalho tem relevância reconhecida em duas diferentes áreas do saber. Formado em Ciências Sociais e inicialmente professor de sociologia, seu trabalho bibliográfico de maior repercussão nessa seara é Os parceiros do Rio Bonito, com que investiga o estabelecimento e a modificação de um modo de vida muito próprio do interior de São Paulo mas não restrito a ele: a cultura caipira.

Em A tradição esquecida: Os parceiros do Rio Bonito e a sociologia de Antonio Candido (editado pela segunda vez em 2018), Luiz Carlos Jackson identifica na tese um desenvolvimento metonímico, que aborda uma comunidade sob um recorte temporal enquanto sugere nas entrelinhas uma interpretação abrangente do Brasil. Essa bidimensionalidade aproxima Os parceiros de Formação da literatura brasileira, cujas elaborações foram algo simultâneas e cujos encaminhamentos respondem de formas diferentes a um mesmo propósito reflexivo — entendimento semelhante ao que Ana Martins Rodrigues de Moraes exibe em Para além das palavras: representação e realidade em Antonio Candido (2015).

O estudo de Jackson ainda sublinha aspectos de originalidade em Os parceiros do Rio Bonito, sendo o primeiro deles àquela altura só comparável a Os sertões (1902), de Euclides da Cunha: pensar a formação social brasileira a partir de um grupo marginalizado e não contemplado pelas grandes interpretações do País. A autonomia formal do livro de Candido também é destacada, por se apoiar em bibliografia especializada e ser permeável a causos e noções ouvidos de velhos caipiras diretamente na fonte, uma vez que o pesquisador se instalou no interior de São Paulo para dotar seu trabalho de outro tipo de fundamento. Jackson comenta que a composição dividiu opiniões. Por um lado, recebeu ressalvas de quem nela viu flexibilização científica e aproximação de bases teóricas aparentemente incompatíveis; por outro, foi recebida como demonstração de independência e abertura, fundindo procedimentos de sociologia e de antropologia, produzindo ciência acadêmica e renovando a forma ensaística de uma certa “tradição [então] esquecida”, na expressão do estudioso.

Senso de complexidade
No âmbito da crítica literária, a contribuição de Antonio Candido se aprofunda como concepção do objeto de estudo e como desenvolvimento de um método para estudá-lo. Isso se radicaliza na Formação da literatura brasileira, que reorienta a historiografia literária e examina a literatura nacional não como um encadeamento de fatos com data de início e de fim, numa sucessão de textos e estilos que se alternam e se repelem, mas sim como um processo feito de acumulação, transmissão e variação, dentro do qual a literatura é um sistema orgânico de autores, obras e leitores.

Por sua formação acadêmica na área das Ciências Sociais, por vezes se supõe que seu trabalho crítico configure um sociologismo literário, que se apoiaria na ideia de que a literatura é repercussão objetiva de eventos generalizados, e nesses termos a interpretação literária se resumiria a mera identificação de reflexos macrossociais metaforizados nos textos. Mas em Candido a sociologia não é determinação do objeto, como se ficções e poemas fossem sempre uma paráfrase dos fatos; ela é fundamento para o ângulo de visão que o crítico adotou, conjugando-o a critérios avaliativos substancialmente literários. A nova reprodução de Literatura e sociedade mantém o Prefácio à 3ª edição (de 1972), com que o autor informa:

Os estudos deste livro (cuja primeira edição é de 1965) procuram focalizar vários níveis da correlação entre literatura e sociedade, evitando o ponto de vista mais usual, que se pode qualificar de paralelístico, pois consiste essencialmente em mostrar, de um lado, os aspectos sociais e, de outro, sua ocorrência nas obras, sem chegar ao conhecimento de uma efetiva interpenetração.

Mais adiante, no capítulo de abertura — intitulado Crítica e sociologia (Tentativa de esclarecimento) —, a concepção é aprofundada:

Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.

Se num primeiro momento é comum a pressuposição de que no trabalho crítico de Antonio Candido a sociologia é ponto de partida e de chegada, com a literatura tomada para explicar a sociedade, num segundo momento, quando já desfeita a primeira impressão, pode-se imaginar que o crítico efetive uma justaposição do social e do literário. Há, sim, aproximação, mas não convém entendê-la como um somatório cômodo e suficiente, resultando em explicações lógicas. Se por um lado Candido não submete a literatura à função de comprovar pragmaticamente conclusões sobre a sociedade, por outro não defende que considerações de ordem social bastem para a realização plena da crítica literária. Na prática, isso pode ser notado porque o autor não projeta entre fato estético e fatos coletivos uma relação de infalível harmonia, como se um traduzisse ou predeterminasse o outro. Daí, nas duas últimas citações, a eloquência dos termos “Interpenetração” e “interpretação dialeticamente íntegra”, cuja dimensão filosófica se adensa nesta passagem de De cortiço a cortiço, capítulo de O discurso e a cidade:

Mas nós sabemos que, embora filha do mundo, a obra é um mundo, e que convém antes de tudo pesquisar nela mesma as razões que a sustêm como tal. A sua razão é a disposição dos núcleos de significado, formando uma combinação sui generis, que se for determinada pela análise pode ser traduzida num enunciado exemplar. Este procura indicar a fórmula segundo a qual a realidade do mundo ou do espírito foi reordenada, transformada, desfigurada ou até posta de lado, para dar nascimento ao outro mundo.

Portanto, se Antonio Candido alcançou o raro feito de prestar contribuições intelectuais para duas distintas áreas do saber, isso se deveu, obviamente, ao conhecimento que acumulou dessas duas áreas, mas sobretudo pelo raríssimo senso de complexidade com que percebeu particularidades, adequações, limites e necessidade de inovação para ultrapassar a acumulação do conhecimento e chegar ao ponto de sua construção. Isso o insere num grupo restrito de intelectuais brasileiros, que repercutiram em mais de um campo do pensamento por não terem incorrido em diletantismo nem em dogmatismos da especialização. Por isso sua tese sociológica teve “como origem o desejo de analisar as relações entre literatura e sociedade” e nasceu “de uma pesquisa sobre a poesia popular”; enquanto a Formação da literatura brasileira, que não decorre de uma exigência funcional, representar, no dizer do autor, “uma vida de interesse pelo assunto”.

Como se vê, integram-se ciências e propósitos, mas a propensão integrativa se alicerçou em discernimento apurado e vigilante. A capacidade do estudioso de promover o diálogo de saberes diferentes sem misturá-los de modo acrítico é apontada por Alfredo Bosi, num texto emblematicamente intitulado Mediação não é conciliação: sobre um legado da obra de Antonio Candido, capítulo do livro Antonio Candido 100 anos (2018), organizado por Maria Augusta Fonseca e Roberto Schwarz, que vale citar pelo alcance explicativo:

A conciliação exerce, em geral, a função retórica de aplainar ou mesmo recusar as diferenças que caracterizam lados diferentes ou opostos de uma mesma questão. Com isso tenta-se canhestramente aglutinar possíveis semelhanças, o mais das vezes superficiais, e evita-se enfrentar o sentido interno que anima os interlocutores. A mediação, ao contrário, não cria uma fala eclética e confusa, mas constrói uma terceira linguagem que traduz os significantes de uma posição dando-lhes outra dimensão semântica.

Noutros momentos decisivos
O grande reconhecimento de que desfruta a obra de Antonio Candido, verificável tanto pela numerosa receptividade crítica quanto pelo expressivo número de edições, não impede que ela receba antíteses, sendo O sequestro do barroco na Formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos (1989), de Haroldo de Campos, a mais conhecida delas.

Uma divergência recente se encontra em Duas formações, uma história: das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio (2021), de Luís Augusto Fischer. O ensaísta gaúcho ressalva o que percebe em Antonio Candido como “visão unitarista” do Brasil, algo que, por mais abrangente, ruminado e generoso que venha a ser, significará uma visão restrita do País, inevitavelmente levando adiante estereótipos sobre lugares não consagrados por antigos padrões.

Em relação às duas, uma terceira e intermediária contestação à obra de Antonio Candido é feita por Paulo Franchetti em História literária: um gênero em crise, capítulo do livro Crítica literária contemporânea (2013), organizado por Alan Flávio Viola. Franchetti cita uma famosa passagem da Formação sobre a literatura brasileira (“se não a amarmos, ninguém o fará por nós”) para dizer que hoje ela seria pouco provável, ou mesmo impossível, por generalizar grupos diferentes. E complementa: “Qualquer pós-graduando afinado com o discurso pós-colonialista logo perguntaria ‘nós, quem?’”.

Passados dez anos do aparte, a recentíssima história política do Brasil permite reconsiderar a hipótese e especular uma resposta do tipo “Nós, os que somos diferentes mas, por prezarmos a civilização, fomos homogeneizados pelo ódio do fascismo”. Se “o que somos é feito do que fomos”, conforme diz a Formação, pela obra de Antonio Candido se aprende que o tempo é maior que as épocas, e que a densidade crítica não se antagoniza com o desejo de possíveis e necessárias construções comunitárias.

Formação da literatura brasileira
800 páginas
Antonio Candido de Mello e Souza
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1918. Foi professor universitário de sociologia e de literatura, com atuação predominante na Universidade de São Paulo. Publicou mais de uma dezena de livros, dentre os quais tem maior destaque Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1750-1880). Morreu em 2017, em São Paulo (SP).
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho