A crônica é um gênero paradoxal. Experimente defini-la, com razões muito bem fundamentadas, que logo ela tortuosamente apresentará uma outra face que o surpreenderá — isto é, se você conseguir flagrá-la além dos estereótipos que lhe foram impostos. Como arte da desconversa, como bem definiu Davi Arrigucci, diz muito como quem não está dizendo nada; como gênero “menor”, contribuiu para descartar, de forma irreversível, antes dos incensados modernistas, a linguagem empolada que vigorava na imprensa e na literatura do século 19, operando uma ressignificação de códigos sociais até então inédita numa sociedade extremamente estratificada[1]; como forma despretensiosa de expressão, sem intenções de durar, “filha do jornal e da era da máquina, onde tudo acaba tão depressa”, como disse Antonio Candido, pariu muitas dentre as mais memoráveis páginas da prosa brasileira nos últimos cem anos.
Não é curioso, por exemplo, que em sua “fusão admirável do útil e do fútil”, conforme a conhecida definição do folhetim feita por Machado de Assis, tenha dado, pela primeira vez em nossa história, voz aos excluídos; despertado leitores para a manipulação social; ampliado os significados dos fatos sociais para o leitor comum? Não é curioso que na sua condição de “um triste escriba das coisas miúdas”, entregue “a uma metafísica de quinquilharias”, o autor de Relíquias de casa velha, e tantos outros cronistas que o sucederam, tenham, por meio de uma linguagem simples e facilmente compreensível, “operado milagres de significação”, como diz Antonio Candido? Não é curioso que os livros publicados em vida por um escritor do quilate de Rubem Braga continuem sendo reeditados — somando-se a eles outros títulos com seleções de suas crônicas feitas após a sua morte — enquanto tantos outros escritores (poetas, contistas, romancistas), pretensamente profundos e festejados pela crítica de seu tempo, tenham caído no ostracismo? Sem pretender ser Literatura (assim, com “L” maiúsculo), ela certamente permanecerá, com seu jeito camaleônico, muito depois dos que a decretam “morta” terem desaparecido sem deixar quaisquer vestígios da sua insensatez.
Da crônica, pode-se continuar enumerando características, todas válidas, mas que logo são (auto)negadas — e não como meras exceções. Quem, por exemplo, lhe identifica as qualidades de “simpática” e “digestiva” não conheceu o estilo virulento do mineiro Antonio Torres (não confundir com o homônimo baiano), muito popular no início do século 20 e que sempre esteve a anos-luz de qualquer forma de benevolência. Até mesmo o lirismo melancólico de Rubem Braga é apenas uma face de sua obra numerosa e multifacetada: o velho urso foi combativo e mordaz em suas diatribes contra o nazismo e o Estado Novo, como mostram algumas das crônicas escritas no período em que viveu no Rio Grande do Sul e reunidas por Carlos Reverbel no livro Uma fada no front (Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994).
Efemeridade x perenidade
Esta visão real, mas parcial, da crônica, como um texto leve voltado para o entretenimento, se deve talvez ao fato de que apenas as crônicas menos coladas aos fatos do cotidiano tenham sido reunidas em livro, e ganhado maior perenidade. Ou o contrário: por terem maior perenidade, terem sido reunidas em livro. É importante perceber, portanto, que o gênero inclui textos contundentes, às vezes ácidos em suas denúncias de nossas mazelas sociais. Muitos deles compõem os dois primeiros livros de Rubem Braga — O conde e o passarinho e O morro do isolamento.
Mas, consciente ou inconscientemente, logo os cronistas (referimo-nos aos grandes, se é que esta palavra cabe aos que dedicam toda a vida ao tom menor da conversa de pé-de-ouvido) perceberam que os seus textos detêm um valor especial e raro nesses tempos de escriturários ferozes: o da humanização das nossas páginas, em livros ou periódicos. Muito mais do que apenas um gênero “palatável” em descompasso, hoje, com um tempo supostamente mais trágico (mas houve um período mais trágico na história da humanidade do que a primeira metade do século 20, quando ocorreram as duas guerras mundiais, uma delas, inclusive, coberta por Rubem Braga para o Diário Carioca?), a crônica brasileira tem sido a trincheira contra a mercantilização da nossa cultura e dos seres, reduzidos a mero objetos. Nesse sentido, o cronista é como um homem solitário, talvez um Quixote, que combate, não moinhos de vento, mas a reificação da natureza e dos seres.
Lúcidos, em suas condições de escritores-jornalistas, isentos da ilusão infantilóide de que a práxis literária, como elemento denunciador e transformador, só possa ser conseguida por meio de uma linguagem chula, recheada de palavrões, infâmias e violência, os cronistas levaram para as páginas dos jornais o tom informal, às vezes confessional, da conversa de pé-de-ouvido, temperado pela ironia e pelo humor.
Mas quais são as características da crônica? Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que se trata não somente de um gênero híbrido, localizado na fronteira da literatura e do jornalismo, já que é publicada originalmente nas páginas de jornais e revistas, mas também múltiplo, que, como assinala Massaud Moisés, “(…) pode assumir a forma de alegoria, necrológio, entrevista, invectiva, apelo, resenha, confissão, monólogo, diálogo, em torno de personagens reais e/ou imaginárias, etc.”.
Um gênero que, na sua longa trajetória — desde que era usado para designar um relato de acontecimentos em ordem cronológica, num sentido meramente historiográfico, mas sem aprofundar-lhes as causas ou dar-lhes qualquer interpretação, até o perfil que se consolidou no Brasil, no século 20 — deu um passo decisivo da história para a literatura, quando passou a valorizar mais as qualidades de estilo. Característica, aliás, que parece ter extraído do ensaio, conforme a noção original deste gênero, cunhada por Montaigne, no século 16. Essas mesmas características foram herdadas, nas literaturas de língua inglesa, pelo sketch — “ensaio pessoal, informal, familiar”, conforme definição de Massaud Moisés e José Paulo Paes.
A crônica tem, como elemento preponderante do gênero, a adesão ao real. Isto é: àquele conceito de realidade cotidiana com o qual o leitor se depara diariamente, e que se enquadra perfeitamente na definição de E. M. Forster, de um retrato da “vida através do tempo”. É quase certo que, ao abrir ao acaso qualquer livro do elenco de cronistas modernos, no Brasil, o leitor se depare com esses elementos do cotidiano, ditos prosaicos. Faça a experiência e certamente encontrará uma espécie de realismo, no qual a vida cotidiana, com seus personagens, reais ou fictícios, é retratada no que tem de mais próximo ao dia-a-dia do homem comum; ligada ao jornalismo, está presa, quase sempre, ao circunstancial, seu principal disfarce para o imperecível. Nela, o autor, pode carregar o leitor para suas microaventuras diárias, cujas fronteiras com a ficção são muitas vezes nebulosas, como nas crônicas/contos de Fernando Sabino. Ou, como Rachel de Queiroz, desvelar um mundo vasto de episódios, costumes e anedotas do sertão nordestino — e seu flagrante contraste com o mundo cosmopolita. Mas, de um modo ou de outro, lá está, o homem e o meio, perfeitamente discerníveis em suas peculiaridades, em suas particularidades.
Agregação ou segregação
Para alguns leitores, a crônica poderia estar ligada, para usar uma expressão de Antonio Candido, a uma “arte de agregação”, inspirada “principalmente na experiência coletiva” e que “visa a meios comunicativos acessíveis”, procurando “neste sentido, incorporar-se a um sistema simbólico vigente, utilizando o que já está estabelecido como forma de expressão de determinada sociedade”. A ela se oporia uma “arte de segregação”, que “se preocupa em renovar o sistema simbólico, criar novos recursos expressivos e, para isto, dirige-se a um número ao menos inicialmente reduzido de receptores, que se destacam, enquanto tais, da sociedade”.
Daí se vê por quê, numa perspectiva crítica em que, sobretudo a partir dos movimentos de vanguarda do início do século 20, privilegia-se a linguagem polissêmica, e a crônica passa a ser considerada um gênero menor. O próprio Candido, no entanto, objeta que a agregação e a segregação “são aspectos constantes de toda obra”, e que a distinção pode ser válida observando-se a predominância de um ou outro tipo, no “jogo dialético entre a expressão grupal e as características individuais do artista”.
Tal definição, mesmo com todas as ressalvas, se aplicada à crônica, de acordo com o senso comum, não daria conta da complexidade do gênero. Na obra de muitos importantes cronistas contemporâneos, a exemplo de Rubem Braga e José Carlos de Oliveira, encontram-se exemplos em que o mundo real aparece transfigurado pela subjetividade — marcada, como disse Candido, pela “relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade.” É quando, embora sem abdicar de sua transparência e limpidez, o “quinhão da fantasia” se sobrepõe ao prosaico e a poiese se impõe à mimese.
Tal prevalência é a marca principal da crônica lírica — e é nela que o gênero alcança, talvez, sua culminância. É quando a noção de realismo, em vez de ser descartada, como propõe a teoria da literatura, ganha novos significados e se enriquece. Isso ocorre na obra de diversos cronistas contemporâneos, como Paulo Mendes Campos, como o citado José Carlos de Oliveira, ou o baiano Ruy Espinheira Filho de Sob o último sol de fevereiro — mas é no capixaba Rubem Braga que a poiese e a mimese fazem uma aliança singular no sentido de mostrar a realidade que transparece, num determinado tempo e lugar, por trás de suas máscaras.
Máscaras da objetividade
Pode-se observar, portanto, que a abordagem de elementos “comuns” do cotidiano de uma grande cidade — uma das marcas principais da crônica brasileira desde o final do século 19 — não obedece e talvez nunca tenha obedecido, apesar de sua vinculação ao jornalismo, a uma estética realista/naturalista. Na crônica, ao contrário da reportagem factual, sua vizinha na coluna ao lado, a realidade chega ao leitor transfigurada pelo olhar subjetivo do cronista. Essencialmente impressionista, o cronista, por meio do uso de metáforas e metonímias, negadas aos jornalistas do nosso árido tempo, procura romper os limites de uma referencialidade meramente circunstancial, para sondar, como poeta, o cerne da realidade multifacetada da cidade desumanizada.
Assim, ao falar, na primeira crônica, que abre seu primeiro livro, do pobre menino que nasceu, em São Paulo, com o coração fora do peito, “como se fora um coração postiço”, Rubem Braga está falando do processo de desumanização da cidade, onde os corações, ao contrário do coração do menino, escondem-se sob tantos paletós, coletes, camisas, ossos e carnes — e ao fim dos quais, muitas vezes, “não tem coração nenhum”. Diz ele:
— Ora, pinhões! Eu nasci com o coração fora do peito. Queria que ele batesse ao ar livre, ao sol, à chuva. Queria que ele batesse livre, bem na vista de toda a gente, dos homens, das moças. Queria que ele vivesse à luz, ao vento, que batesse a descoberto, fora da prisão, da escuridão do peito. Que batesse como uma rosa que o vento balança…
A crônica mostra o menino, que sofre por ter o coração fora do peito; um certo Dr. Mereje, voz autorizada do médico-cientista, que diagnostica o “mal”, no contexto prosaico das ocorrência médicas, e o cronista/poeta, que diante da realidade crua, da qual toma conhecimento por meio de uma notícia de jornal, busca um sentido, faz uma releitura, opera uma re-significação que re-humaniza o real. Ou, para ser mais preciso, o olhar sobre o real, que, entretanto, permanece enigmático, como a esfinge do Édipo. Mas sem nunca ser decifrado.
A própria moldura do drama — a cidade — é descrita de uma forma que a expressividade se impõe sobre a referencialidade, e tudo se casa no fim último de revelar o sentido, oculto, sob a aparência dos fatos, do mundo como se apresenta aos sentidos. Diz ele:
Madrugada paulista. Boceja na rua o último cidadão que passou a noite inteira fazendo esforço para ser boêmio. Há uma esperança de bonde em todos os postes. Os sinais da esquina — vermelhos, amarelos, verdes — verdes, amarelos, vermelhos — borram o ar de amarelo, de verde, de vermelho. Olhos inquietos da madrugada. Frio. Um homem qualquer, parado por acaso no Viaduto do Chá, contempla lá embaixo umas pobres árvores que ninguém nunca jamais contemplou. Humildes pés de manacá, lá embaixo. Pouquinhas flores roxas e brancas. Humildes manacás, em fila, pequenos, tristes, artificiais. As esquinas piscam. O olho vermelho do sinal sonolento, tonto na cerração, pede um poema que ninguém faz. Apitos lá longe. Passam homens de cara lavada, pobres, com embrulhos de jornais debaixo do braço. Esta velha mulher que vai andando pensa em outras madrugadas. Nasceu em uma casa distante, em um subúrbio adormecido, um menino com o coração fora do peito. Ainda é noite dentro do quarto fechado, abafado, com a lâmpada acesa, gente suada. Menino do coração fora do peito, você devia vir cá fora receber o beijo da madrugada.
É, portanto, ao tirar a máscara da objetividade que o cronista consegue expressar, da forma mais eficaz, a realidade das coisas — realidade que não se esgota na descrição física de objetos e cenas, nem na ilusória pretensão de mostrar a vida “como ela é”. Neste ponto, precisamente, devemos colocar em cheque a idéia de que o cronista se coloca diante da realidade e a comenta, quase sempre com um tom benevolente. Diferente do cronista social, do período pré-moderno, marcado pela frivolidade e pela intenção de “embalar o leitor” com suas observações espirituosas, inteligentes, amenas e/ou picantes, o cronista moderno traz no bojo de seu tom “ameno” de conversa de pé-de-ouvido, uma experiência vital, uma consciência crítica, e, embora a palavra possa parecer por demais solene ou imprópria ao tom menor da crônica, uma Weltanschauung.
Assim, quando diz que “há uma esperança de bonde em todos os postes”, que há “lá embaixo umas pobres árvores que ninguém nunca jamais contemplou” e que “O olho vermelho do sinal sonolento, tonto na cerração, pede um poema que ninguém faz”, Braga está identificando uma ausência que só pode ser superada por um olhar que se acende, como diria Exupéry, em Terra dos homens (um dos livros preferidos de Braga, que o traduziu para o português), como “luzes perdidas na planície”, marcando, “no oceano da escuridão, o milagre de uma consciência”.
O olhar lírico do cronista é mais eficaz, no desvelamento de “realidades” obscurecidas, quando se associa com a ironia — uma ironia fina que varre da complexa trama de discursos dominantes, suas falsas verdades, e meias-verdades, possibilitando-nos divisar, por trás das máscaras, a realidade, ou uma realidade cuja transparência chega a nos surpreender. Desse ponto de vista, a escrita do cronista não se limita ao registro do real, e sim uma modificação da forma como o percebemos.
A crônica brasileira contemporânea é, portanto, um gênero multifacetado, que vai da prosa poética de um Paulo Mendes Campos até o comentário direto de questões políticas e comportamentais da atualidade, como a exerce, por exemplo, o ficcionista baiano João Ubaldo Ribeiro. Em Fernando Sabino aproxima-se, muitas vezes, do conto, com personagens ficcionais, como em O homem nu, e, de forma atípica, em Clarice Lispector, verticaliza-se numa experiência existencial, num experimento de linguagem, ou ainda em entrevistas com personalidades públicas, tratadas literariamente.
Trata-se de um gênero complexo — perfeito, portanto, para uma determinada forma de sondagem do Real que em nossos autores alcança momentos de alto requinte na exploração das possibilidades criativas do nosso idioma. Neste ponto, pode-se dizer, ao contrário do que escrevi no início deste artigo, que a crônica não é um gênero paradoxal. Paradoxal é a linguagem humana. Em termos de suas possibilidades expressivas, uma boa crônica vale tanto quanto um bom texto em qualquer outro gênero. E, para finalizar, podemos dizer, como Clarice Lispector: “Gêneros não me interessam mais. Interessa-me o mistério”.
Carlos Ribeiro é jornalista, professor universitário e escritor. Autor de Abismo e Caçador de ventos e melancolias: um estudo da lírica nas crônicas de Rubem Braga, entre outros.
BIBLIOGRAFIA
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RIBEIRO, Carlos. Caçador de ventos e melancolias: um estudo da lírica nas crônicas de Rubem Braga. Salvador: Edufba, 2001.
Nota
[1] A autonomia do gênero, como observa Wellington Pereira em Crônica: a arte do útil e do fútil, é obtida por Machado de Assis, cujos textos “ultrapassam os limites retóricos do folhetim” e “configuram-se como espaço crítico do jornal do século 19”. Ao romper o discurso institucional, político e bacharelesco da imprensa na época, ele criaria um novo espaço para o leitor, atentos à manipulação social, a exemplo do que ocorreu em relação à guerra de Canudos.