A pena da picardia

Em entrevista, o escritor Ruy Tapioca critica o “umbiguismo” que assolaria a literatura brasileira contemporânea
Ruy Tapioca: artífice da linguagem.
01/11/2005

O Brasil tem muitos escritores. Já teve um poeta em cada esquina, mas agora são os prosadores que tomam conta do país. Em geral, não são bons. Quando muito, são medíocres. Vendem pouco ou nada, geralmente nada. As estantes das livrarias estão abarrotadas de títulos que não dizem nada a ninguém. Mesmo os publicados pelas grandes casas editoriais são passíveis de severas críticas. Por uma peneira mais fina, quase ninguém passa.

Confesso que me tornei um neófobo. Durante muito tempo procurei no imenso palheiro da literatura brasileira um único bom escritor novo. Ligava para as editoras fazendo o que poucos jornalistas fazem, isto é, pedindo lançamentos de escritores novatos. Naquela época, eu acreditava que era possível encontrar vários gênios à margem do self-marketing. Como resultado dessa peregrinação, retornei aos clássicos.

Até que me caiu às mãos A república dos bugres, de Ruy Tapioca. Um amigo me recomendou com entusiasmo etílico. Li. Gostei. Dei o veredicto: é um dos mais brilhantes romances escritos no Brasil nos últimos 20 anos. Mas minha voz é pequena e ninguém ouviu. Esperei sete anos para ler alguma coisa nova do desconhecido Ruy Tapioca. Não me decepcionei com seu O proscrito.

Que Ruy Tapioca não seja conhecido é sintomático. O senhor de olhos muito vívidos, de gargalhada infantil e gestos amplos é, sabiamente, avesso a badalações literárias. Conversei com ele no café da Livraria Argumento, no Rio de Janeiro, onde mora. Ao final da entrevista, ele me disse que é muito provável que tenha sido a última. “O escritor não tem que se expor”, afirma. De onde se pode tirar um daqueles axiomas: a qualidade do escritor é inversamente proporcional à sua exposição na mídia.

O proscrito é seu terceiro livro. Entre A república dos bugres e este, Tapioca lançou Admirável Brasil novo, uma história obviamente baseada no romance de Aldous Huxley, na qual o Brasil é governado por um pastor evangélico que implanta uma espécie de teocracia no país. Não é um bom trabalho. O próprio autor reconhece. “Eu sei, eu sei. Eu tenho autocrítica”, diz, entre risos. Admirável Brasil novo destoa dos demais porque carece de humor ¾ a grande força narrativa de Tapioca, ao lado, é claro, da construção de linguagem que merece todo aplauso e reverência.

Ruy Tapioca iniciou sua carreira com mais de 50 anos, por medo de morrer. “Quando me aposentei, li um artigo sobre o grau de letalidade das pessoas que se aposentam cedo. Tive medo”, conta. “Daí, decidi escrever”. Não foi uma decisão senil. O até então burocrata Ruy Tapioca era um leitor voraz (“Gosto mais de ler do que de escrever”). E sua falta de experiência como ficcionista se compensava pelo estabelecimento de parâmetros louváveis: “Quando comecei a escrever, decidi que não faria esforço para ser publicado. Se eu não tivesse reconhecimento como anônimo que eu era, então esse negócio de literatura não seria para mim”. Era. A república dos bugres ganhou o Prêmio da Biblioteca Nacional para romances em andamento, além do Concurso Guimarães Rosa do governo de Minas Gerais.

Admirador de José Saramago e Graciliano Ramos, Ruy Tapioca se diz um pessimista. “Você pode me achar um sujeito bem-humorado e tal, mas a verdade é que eu sou um pessimista incorrigível”. Não parece. Seus livros são escritos com a mais fina pena da picardia. O humor se revela não só nos diálogos espirituosos, como também na escolha vocabular. Como os livros são farsas históricas, o autor usa também do deslocamento no tempo para compor personagens excêntricos sem serem caricatos. A riqueza de suas narrativas nasce, justamente, do desapego à verdade.

A história é a matéria prima dos romances de Ruy Tapioca, mas não a que se encontra nos livros didáticos. “Eu uso a história como pano de fundo, mas todo o resto é imaginação”, diz. E que imaginação! Em O proscrito, o protagonista é um português com o capeta no corpo, que é mandado para o Brasil em degredo. “Minha intenção foi fazer uma referência ao Macunaíma, mostrando o nosso primeiro malandro”, diz. O deslocamento no tempo não cria amarras para o escritor; ele não se sente compromissado com a verdade histórica, ainda que se apegue a detalhes. “Estudo muito para poder compor um cenário fiel. Se meu personagem habita um mosteiro, estudo para saber como era a vida no mosteiro”, diz. E nos mosteiro de Tapioca acontecem os maiores disparates. Com direito até a um Pero Vaz de Caminha interno, metido já a escritor e meio puxa-saco dos meninos mais fortes.

Talvez por ter começado muito tarde na literatura, talvez por não ter precisado bajular ninguém para ser publicado por uma grande editora, o fato é que Ruy Tapioca se sente muito à vontade para criticar a literatura brasileira contemporânea, da qual faz parte. “Costumo dizer que são quatro os menores livros do mundo: O código de ética dos nazistas, A educação da cavalaria paraguaia, Manobras navais da marinha boliviana e O romance brasileiro a partir dos anos setenta”, diz, rindo. Quando diz isso, em tom de evidente provocação, Tapioca atrai a ira de seus colegas, que o criticam por “arrasar” com todo mundo. “Mas eu digo que temos de ser rigorosos.”

Ele vê com muita graça a literatura que se faz hoje no Brasil. “Nós já tivemos o romantismo, o realismo, o regionalismo, o modernismo e o hoje temos o umbiguismo. É uma maravilha!”, diz, com sarcasmo. “O escritor vê arte no tédio que é a vida dele. Ora, isso não é arte!”, afirma.

Para o escritor, duas influências foram nefastas para a literatura brasileira contemporânea: Rubem Fonseca e Clarice Lispector. “Devemos muito a esses dois escritores, mas eles, involuntariamente, criaram o que chamo de literatura fonsequiana e clariciena. É um drama. Porque todo mundo quer imitar o Rubem Fonseca e a Clarice Lispector.” Entre o original e os imitadores, Ruy Tapioca, obviamente, prefere o original.

O “cunhadismo” de que padece a literatura também é alvo de críticas por parte de Tapioca, que se orgulha de não ser compadre de ninguém nessa história toda. Numa época em que todos os escritores procuram aparecer o máximo em todos os suplementos literários, fazer tantos lançamentos quanto for possível, escrever um livro por ano e publicar anedotas por qualquer vintém, Tapioca é quase um recluso. “Cada dia vejo com mais admiração a opção de Rubem Fonseca e Dalton Trevisan pelo silêncio”, afirma. Sua opção por não participar daquelas tediosas sessões de lançamentos de seus livros, com direito a vinho branco barato e vaso de flores sobre a mesa é por pura vergonha. “Lançamentos são constrangedores. Ainda mais com o preço do livro!”, diz.

Tapioca diz que a literatura brasileira, em sua total falta de expressão internacional, é reflexo da nossa cultura. “Somos um povo pacífico. Atavicamente bocó. Inculto por opção. O Brasil optou pela ignorância ¾ e chama isso de esperteza. Não é. É bobo. Todo mundo engana o brasileiro”, diz. Daí nossa semelhança, na literatura, somente com países desconhecidos. “Me diz o nome de um escritor de Gâmbia. Ou da Bolívia. Ou do Iraque”, pede. Diante do meu silêncio, sentencia: “Não há literatura nesses países porque eles não prezam por uma educação de qualidade. O Brasil, por exemplo, só se destaca internacionalmente pelas pernas ¾ das mulheres, no samba, e dos homens, no futebol”, diz.

Tanto senso crítico, aliado a um cuidado extremo com a linguagem e um trabalho de artesanato, só podia resultar num livro admirável, para dizer o mínimo. O proscrito é obra de quatro anos de trabalho. Tapioca é um escritor à moda antiga, daqueles que não mandam para o prelo livro apressado. Tal esmero se reflete em frases redondas, sem os defeitos tão comuns da prosa contemporânea, como as rimas involuntárias, as aliterações e os ecos. Trabalho de artífice.

A entrevista termina. Mas ainda temos tempo para conversar um pouco mais. Sobre Graciliano Ramos, paixão compartilhada. Sobre os rumos e desvios da literatura que tanto amamos e que é tão violentada pelos novos reacionários da língua. Rimos um bocado, porque, afinal, não vale a pena chorar por coisas assim. Ruy Tapioca promete me mandar as provas de seu novo livro, que se passa na época da Inconfidência Mineira, quando ele estiver pronto. Mal posso esperar.

O proscrito
Ruy Tapioca
Rocco
408 págs.
Ruy Tapioca
O baiano Ruy Tapioca nasceu em Salvador, em 1947, mas vive no Rio de Janeiro desde os 11 anos de idade. Administrador de empresas, exerceu diversos cargos de gerência em estatais e também atuou como professor universitário. Depois de aposentar-se, em meados da década de 90, passou a dedicar-se à literatura. Antes de O proscrito, escreveu A república dos bugres e Admirável Brasil novo.
Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho