Um sujeito, devido a muito esforço, graças ao acaso ou mesmo por nada, torna-se um vencedor e — automaticamente — desperta algo nos demais. Neste contexto que se chama universo literário, então, quem abocanha algum prêmio pode vir a provocar, mesmo que não queira, uma série de reações em seus pares. Da admiração à inveja. Da curiosidade ao ódio. Das palmas a facadas pelas costas. Imagine, ainda, quando um escritor ganha um prêmio que proporciona visibilidade nacional. Suponha, também, que o ganhador seja, até então, um anônimo desconhecido. Qual a reação dos habitantes do planeta literatura brasileira? Em breve, leitores de todo o país, finalmente, terão a oportunidade de vir a ler o gaúcho radicado em Curitiba Otto Leopoldo Winck. Ele chegou na frente no concurso promovido pela Academia de Letras da Bahia com o romance Jaboc. Naturalmente, deve haver, no mínimo, algum desejo curioso de saber qual é a literatura de Otto Leopoldo Winck. E, humanamente previsível, deve haver muita maledicência. “Concursos só estimulam a subliteratura”, diz uma voz. “Que nada. Concursos revelam talentos”, rebate outra voz. Talvez, também haja algum interesse, neste sistema literário do Brasil, em saber por que A secretária de Borges, de Lúcia Bittencourt, venceu o Prêmio Sesc de Literatura 2005. Afinal, a obra já circula em diversos pontos de venda do território brasileiro e tem o selo da casa editorial que publica desde Graciliano Ramos e Jorge Amado a Luiz Ruffato e Nelson de Oliveira.
A proposta literária de Lúcia Bettencourt, a exemplo do que se lê em A secretária de Borges, tem o foco direcionado, sobretudo, para a presença feminina no presente. Na maior parte dos 17 contos, os protagonistas são personagens femininos. É, entre outros detalhes, a partir da presença feminina, e seu diálogo e interlocução com outros personagens, que se faz a ficção de Lúcia Bittencourt. Seja ao apresentar a mulher recém-separada que passa a conhecer os prazeres de um encontro inesperado, único e volátil, ou quando uma jovem constata que a sua avó um dia também usufruiu disto que se chama juventude ou ao problematizar a respeito das arestas da relação de uma mãe com a namorada de seu filho, a literatura desta autora urbana recria, faz pensar e trata de impasses deste tempo contemporâneo.
A tradição e a própria voz
Em alguns dos 17 contos, Lúcia Bettencourt dialoga direta e profundamente com a tradição. São textos inventivos em que a escritora carioca se alimenta literariamente da obra ou da vida de outros autores. O conto que empresta o título ao livro é uma prova disto. A secretária de Borges, a exemplo do que o nome sugere, apresenta a possível auxiliar que, hipoteticamente, teria sido a responsável por parte significativa da obra do gigante argentino:
Tornei-me o autor mais festejado de meu país, sou um sucesso em vida e serei um clássico após a minha morte. Ela, no entanto, não passa de um fantasma. Depende de mim para ter seus textos publicados e ninguém acreditaria se, um dia, ela revelasse ser a verdadeira autora de meus livros. (pág. 21)
O universo borgiano foi impulso para uma possibilidade literária. Assim como o mundo fictício elaborado por Franz Kafka também fertilizou o imaginário de Lúcia Bettencourt. O resultado se traduziu em O inseto. Neste conto, uma personagem passa a conviver com uma barata que se humaniza e se torna, por um breve período, companhia cotidiana:
Ela encarou o habitante da área, olhando-o com severidade e sem simpatia. Seu rosto triangular exibia uma barba de muitos dias, mas sua aparência havia se modificado muito, humanizara-se a ponto de tornar quase imperceptíveis os traços que ainda lembravam o inseto. (pág. 66)
Lúcia Bettencourt também se valeu de elementos históricos para compor outros textos de ficção, entre os quais Herodíades e Os três últimos dias de Marcel Proust. No entanto, os destaques são os contos em que a autora procura encontrar a própria voz literária — quando a presença da herança da literatura de todos os tempos é sutil.
Os contos intensamente autorais de Lúcia Bettencourt aglutinam recursos usados, por exemplo, em crônicas — sobretudo ao recriar estilhaços do cotidiano —, mesclados com artifícios literários, como elaboração de personagens, diálogos e intensidade rítmica. A prosa desta autora trata, sim, de impasses do tempo presente — por exemplo, a inescapável solidão — com e a partir de uma linguagem que reverbera a oralidade e a escrita ágil, fluente e de fácil comunicação destes dias.
O prêmio literário foi o passaporte que Lúcia Bettencourt recebeu para ingressar na vitrine do universo literário. Mas a ficção que ela produz, por si só, irradia força suficiente para que a própria obra, apesar da premiação, dialogue com autores e leitores brasileiros, universais.