À parte qualquer bizarrice

Em "Biofobia", situações cada vez mais esquisitas vão dando um rumo inesperado à narrativa
Santiago Nazarian, autor de “Biofobia”
08/02/2015

Uma das experiências mais dolorosas pelas quais um ser humano pode passar é ter de desmontar a casa de um ente querido que acabou de falecer e dar destino a seus pertences. Vasculhar a intimidade de quem não optou por escancará-la poderia ser apenas um grande constrangimento, mas ele vem acompanhado de um inevitável reencontro com o passado, com boas e más recordações, com as histórias que contam os objetos à medida que vão sendo resgatados, a vida que um dia pulsou em cada escaninho do que agora se vê súbita e tristemente transformado em espólio.

A mãe de André planejou para sua vida um final diferente. Escritora de sucesso, havia mais de dez anos mudara-se de São Paulo para uma casa no meio do mato, a 60 quilômetros da capital, construída de acordo com o que ela desejava para viver e produzir em paz: silêncio, contato com a natureza, muitos livros e discos. Ela conseguiu sua casa no campo que ainda é o sonho de consumo de muito escritor citadino. Talvez a vocação de ficcionista para criar enredos a tenha sugerido a romper a barreira do natural e escrever o próprio desfecho. Em pleno gozo de sua capacidade física e mental, decidiu que não experimentaria o revés da decrepitude. E antes de pôr fim à própria vida, deixou a herança organizada e já dividida entre os filhos, além de instruções de como gostaria que seus pertences pessoais fossem distribuídos: André e a irmã deveriam convidar parentes e amigos a participarem da divisão, de forma que cada um pudesse escolher livremente o que levar de dentro de sua preciosa casa.

Os dois irmãos têm pouco ou quase nada em comum além dos laços de sangue que os unem. Ela, mais velha, é casada, mãe de dois filhos e vive uma vida convencional de classe média paulistana. Ele, prestes a entrar na fatídica idade dos quarenta, é um roqueiro decadente que nunca fez muito sucesso com sua música, conseguiu gravar três álbuns, bebeu, cheirou e fumou o que pôde e mais um pouco, teve casos patéticos com fãs nos quinze minutos das vacas gordas, falhou nas poucas tentativas de relacionamento amoroso e vive agora sozinho num minúsculo e desmobiliado apartamento da capital paulista, esperando um renascimento da carreira que jamais acontecerá.

O fracassado e egocêntrico André, protagonista do romance Biofobia, de Santiago Nazarian, é o único dos personagens a merecer um nome próprio, todos os demais são referidos, muito apropriadamente, por suas relações com o principal: a mãe, o pai, a irmã, o cunhado, o amigo, a ex-namorada. Ele chega de ônibus à casa materna numa sexta-feira, véspera do dia marcado para a reunião da partilha, tendo de vencer a pé, morro acima, os dois quilômetros de terra que separam a parada da porta da casa. A irmã só chegará no dia seguinte, de carro, um veículo grande e confortável para abrigar tudo o que planeja transportar na volta. André traz umas poucas roupas velhas na mochila e não parece interessado em levar muita coisa dali. O que ele realmente quer é receber logo sua herança em dinheiro e com ela tentar se reerguer como artista. A ação principal transcorre no fim de semana, parte do qual André passará sozinho numa casa que não é a de sua infância, ainda que lhe pareça a um só tempo estranha e familiar.

Momento doído
Chegar à casa e dar com a falta de sua dona é um momento doído, até mesmo para quem sempre viveu focado no próprio umbigo. A primeira sensação é o vazio. Aos poucos, porém, a presença da mãe começa a se manifestar em todos os cantos e, é claro, a contrastar com a personalidade do filho. Até aqui, nada de sobrenatural ou antinatural. O tosco e maltratado André banha-se no banheira da mãe, seca-se com suas toalhas recendendo a amaciante, aspira seus produtos de toalete, chega a experimentar um de seus cremes antirrugas. O luto responde por essa tentativa de aproximação com um mundo em tudo diferente do seu. Mas ela não evolui. André sente falta de barulho, de poluição, de química. O ar puro lhe faz mal, a natureza o agride. Está louco por um cigarro, que não trouxe, porque tenta em vão parar de fumar. Outro fracasso. Até quando se trata de suicídio, a mãe é o oposto do filho em matéria de êxito. André busca aliviar suas frustrações com o que resta de bebida na cristaleira, três cigarros velhos de um maço que encontra esquecido numa gaveta e o telefonema para uma ex-namorada com quem rompeu há seis anos.

No dia seguinte, a irmã chega mais cedo para organizar o evento, chegam em seguida os parentes e amigos, e nosso herói consegue a proeza de se embriagar de caipirinha e cair no sono com os convidados ainda na sala. Acorda quando todos já foram embora, e então começa a segunda e mais agitada parte do romance. Sozinho outra vez, ainda sob efeito do álcool, André recebe a visita de um conhecido que ele havia chamado a participar da reunião. O amigo chega atrasado, com uma garota a tiracolo e alguns papelotes de cocaína. A casa já está dilapidada. Sentam-se junto à lareira, acendem-na com um resto de lenha, bebem o que sobrou nas garrafas quase vazias, cheiram a droga, passam a alimentar o fogo com livros que ninguém se interessou em levar ¾ e aqui Nazarian faz uma brincadeira ao citar vários autores brasileiros contemporâneos cujas obras terminam impiedosamente na fogueira. O que vem a seguir é passível de várias interpretações. Ou melhor: é certo que André embarca numa viagem alucinada, efeito da droga e do álcool; o problema é distinguir o que de fato acontece do que não passa de mero delírio do personagem.

André estranha a ausência de insetos numa casa no meio do mato, embora seus sons, e também os de pássaros, sejam ouvidos lá fora. Há o cão, que o recebe no primeiro dia para depois sumir. Um pica-pau morto há dias é encontrado num banheiro; seu som característico, contudo, segue assombrando o hóspede. O mato parece querer invadir a casa, e uma árvore cujos galhos avançam acintosamente por uma janela aberta só reforçam tal percepção. A única televisão da casa é um aparelho pequeno em preto e branco que não sintoniza canal algum, mas que André imagina ter surpreendido transmitindo uma entrevista da mãe onde ela conta a absurda história de um filho doente que mantém preso no porão ¾ frases transcritas dessa entrevista, em outra brincadeira do autor, vêm na realidade daquela famosa concedida por Clarice Lispector à TV Cultura em 1977, pouco antes de sua morte.

Situações cada vez mais esquisitas vão dando um rumo inesperado à narrativa e a levam a um território para o qual o termo “existencialismo bizarro”, criado pelo próprio autor para definir seu estilo literário e referido em Biofobia, cai como uma luva. A certa altura, André entra em luta física contra a casa, um embate sem dúvida desigual que é na verdade contra si mesmo ou qualquer pessoa no seu entorno e que justifica mais uma vez o título do romance.

O que mais impressiona nessa obra incomum é sua organicidade: todos os elementos estão de tal maneira amarrados que um não se move um milímetro sem afetar todo o conjunto. E o conjunto está a serviço de 240 páginas de ação, que o leitor vence num piscar de olhos querendo mais. Mas se existencialismo bizarro pode servir como uma ótima definição, por assim dizer, metafórica, tecnicamente Biofobia está mais próximo de um romance naturalista. Embora a aparente contradição do título, instinto e desejo são as únicas forças que movem André, retratado por Nazarian em toda sua crueza animalesca. É um personagem com o qual o leitor não vai estabelecer a menor empatia, isso será quase impossível. Mas ainda assim, um grande personagem, porque verossímil e extremamente humano por trás de qualquer bizarrice.

Biofobia
Santiago Nazarian
Record
239 págs.
Santiago Nazarian
Aos 37 anos, o paulista Santiago Nazarian já tem publicados sete romances, dentre eles Feriado de mim mesmo, Mastigando humanos e A morte sem nome, e um livro de contos, Pornofantasma. Foi considerado um dos escritores jovens mais importantes da América Latina pelo júri do Hay Festival de Bogotá. É também tradutor e roteirista.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

Rascunho