Sabendo que o escritor Godofredo de Oliveira Neto estava na cidade — ele, que tem uma longa história com Paris —, propus-lhe um passeio pelas ruas de suas memórias no Quartier Latin. O encontro foi marcado no bar-restaurante Les Éditeurs, no Carrefour de l’Odéon, que nosso autor gosta e frequenta sempre que pode.
A tarde é de final de inverno. O sol aqueceu um pouco o ar, elevando a temperatura e tornando o ambiente mais agradável. Na entrada do café, a decoração exibe livros — natural, já que o Les Éditeurs é conhecido por receber escritores do bairro.
O escritor percorreu o mundo. Em Washington, realizou seu pós-doutorado; em Veneza e na Dinamarca, ministrou cursos e conferências. Seus livros foram traduzidos para o inglês, búlgaro, vietnamita e francês. Três deles têm edição francesa: L’enfant caché (Menino oculto), Amours exilées (Amores exilados) e Esquisse (O desenho extraviado de Hieronymus Bosch), publicados pela Envolume. Esquisse, publicado primeiro em francês, em 2021, só teve edição em português em 2023. Os três romances foram traduzidos para o francês por Richard Roux, que domina o português do Brasil de forma exemplar. Amours exilées, que teve uma segunda edição na França, aborda o universo dos exilados brasileiros na capital francesa, inspirado nos anos de exílio forçado do autor.
Seu carinho por Paris é enorme. Ela é uma espécie de porto seguro para ele. Possui uma esposa francesa, uma filha e netos na cidade, além de ter vivido nela mais de dez anos, como aluno e professor — o que lhe rendeu muitos amigos. Pergunto-lhe como foram seus primeiros tempos na cidade. Seus olhos brilham ao retornar ao passado. Chegou em 1973 para escapar dos perigos que a ditadura impunha ao país, sobretudo após a instauração do AI-5, no final de 1968. Godofredo estava no Rio de Janeiro para estudar desde 1969.
Seu medo cresceu ao ver colegas de universidade desaparecerem e ao perceber a impossibilidade de manifestar suas opiniões abertamente. Sentindo que a situação poderia piorar, decidiu aceitar o convite da francesa Claire — hoje sua esposa —, que estudava na mesma universidade e estava voltando a Paris.
Eram tempos sombrios para a democracia no Brasil. O Congresso Nacional estava fechado, as liberdades individuais eram cerceadas, a censura, oficializada e sufocante, e a tortura, admitida. O silêncio ou a luta clandestina se impunham. Muitos amigos deixaram o país, em autoexílio ou exílio; alguns desapareceram. Chico Buarque foi para a Itália; Gil e Caetano, para Londres; outros, para a Suécia. As artes e a literatura eram vistas como inimigas do governo. Enfim, peguei o mesmo foguete.
Teve a sorte de conhecer Claire, que o confortou afetivamente.
Degustando um café, enquanto ele toma uma água Perrier, Godofredo recorda sua chegada à cidade:
Encontrei uma cidade extremamente acolhedora. Os intelectuais franceses nutriam uma relação muito forte com os brasileiros exilados, forçados ou por conta própria. Até Mitterrand, depois presidente da República, reunia com frequência os brasileiros. Até hoje, o Brasil exerce uma atração positiva enorme. Do motorista de táxi a grandes pensadores, todos querem conhecer o Brasil e, para eles, “a alegria reinante no país”. Mal sabem eles que não é bem assim.
Ele começou sua vida parisiense morando em uma chambre de bonne — os quartos de empregada, muito comuns na época, localizados no sexto andar dos prédios —, um espaço pequeno, sem banheiro privativo, cujo WC era compartilhado pelos moradores.
Uma vida de estudante e trabalhador teve início. Foi para a Sorbonne e, para obter recursos para sobreviver, fazia petits boulots, pequenos trabalhos. Apreciou especialmente um deles: cuidar de uma senhora culta por duas a três horas por dia; levava-a ao teatro, ao cinema, mantendo conversas extremamente interessantes sobre livros, manifestações culturais, entre outros temas.
Agora, mais de 50 anos depois — hoje professor de literatura na UFRJ, autor premiado e membro da Academia Brasileira de Letras —, tem o mesmo encanto pela Cidade Luz, à qual retorna sempre para rever a filha e os netos e para fazer conferências na “sua” Sorbonne.
Tenho uma relação profissional constante com a universidade francesa. Sou membro do Centro de Pesquisas sobre os Países Lusófonos, da Sorbonne Nouvelle–Paris 3.
A chuva prevista não veio, e o sol não se apresentou. Sem chuva, o passeio pode começar. Nas ruas, turistas circulam, e os estudantes devem estar em aula nas escolas e universidades nesse começo de tarde. Antes de seguirmos pela rua Monsieur-le-Prince, tirei uma foto do professor com o teatro de L’Odéon ao fundo — um local onde Godofredo teve muitas vezes o prazer de assistir a recitais e peças, um dos mais centrais da cidade. Subindo a Monsieur-le-Prince, paramos para admirar o Bouillon Polidor, na esquina com a rua Racine. Ele perdeu a conta de quantas vezes almoçou ali, quando era estudante. Na época, era possível comer por poucos francos. Agora, com bela reputação e decoração, funcionando como adega, os pequenos preços desapareceram.
A vida em Paris foi, para ele, uma experiência que considera muito rica, repleta de debates e discussões sobre temas sociais que, no Brasil, ainda eram relativamente pouco discutidos — como o movimento negro, o feminismo, o movimento LGBT, a ecologia e a defesa de todas as minorias.
Temas que explora no seu romance Amores exilados.
Entretanto, como toda literatura, não se trata exatamente de um livro de História, mas de um simulacro de referente, que gera um espaço de tensões em que os sentidos se constroem e se desconstroem incessantemente. A literatura não é o reflexo do real, ela compete com o real. Penso aqui em Derrida, no seu clássico De la Grammatologie. Aliás, Derrida contribuiu decisivamente — e pessoalmente — para a arquitetura do meu primeiro romance, Faina de Jurema, de 1975, romance experimental publicado no Brasil em 1980.
O passeio continua pela rua Racine, em direção ao Boulevard Saint-Michel e à Sorbonne. À direita, passamos por outro restaurante, o Bouillon Camille — um prédio com salas decoradas em Art Nouveau, uma maravilha —, local onde a Sorbonne recebe seus professores convidados. Godofredo já o frequentou inúmeras vezes.
Já no Boulevard Saint-Michel, seguimos à direita, subindo e atravessando a rua. Em instantes, a Sorbonne e sua praça se mostram à nossa esquerda. Quantas lembranças tem Godofredo! Das aulas que teve, das aulas que ministrou, dos cafés compartilhados com amigos nos arredores.
Passou muito tempo no Quartier Latin, tanto como aluno quanto como professor na Sorbonne. Depois do período inicial na chambre de bonne, morou no norte da cidade, nos bairros 17, 18 e 19, antes de passar um tempo, na rive gauche, no 15° arrondissement.
Na praça da Sorbonne, ao fundo, avista-se a Capela Santa Úrsula – ou simplesmente Capela da Sorbonne –, edifício religioso de 1642 que faz parte do conjunto da universidade. Na entrada da praça, à esquerda, encontra-se a estátua de Auguste Comte, pai do positivismo e muito conhecido dos brasileiros. Descendo a rua de la Sorbonne, a entrada dos estudantes fica à direita, sendo impossível acessá-la sem carteira de estudante, de professor ou convite. A foto de Victor Hugo sentado e meditando no pátio – obra do escultor Laurent Honoré Marqueste, ali desde 1888 – ficará para outra oportunidade.
Descendo, chegamos à rue des Écoles. Pegamos à direita, em direção à Mutualité, lugar onde, nos anos 1970, durante a ditadura no Brasil e na América Latina, toda a esquerda exilada em Paris se reunia para discutir inúmeras questões. Cruzando a rua Saint-Jacques, avista-se o Collège de France, espaço de cursos de altíssima qualidade, com professores renomados. Foi ali que Roland Barthes, ao sair do Collège para atravessar a rue des Écoles, foi atropelado por um carro e, levado ao hospital, faleceu no dia 26 de março de 1980, lembra Godofredo.
Quando não está cumprindo compromissos profissionais, Godofredo frequenta museus, exposições, vai muito ao cinema, às bibliotecas, como a Biblioteca de France e a Sainte-Geneviève.
Frequento muito as livrarias do Quartier Latin, lembrando os anos em Blumenau: minha base de autores franceses lida e estudada no ensino médio, no Colégio Santo Antônio, de Blumenau, são Flaubert, Maupassant e Balzac. Há muitos outros, mas esses sempre vêm. Quando releio Machado, eles estão todos ali.
Ainda na rue des Écoles, estão as Edições L’Harmattan – especializada em ciências sociais, criada em 1975 por Denis Pryen com apoio de Jorge Amado. Continuando, à esquerda, na rue Saint-Victor, chegamos à Maison de la Mutualité, fachada em estilo Art Déco, inaugurada em 1931 como teatro. Hoje, sua sala polivalente pode acolher 1.732 pessoas. O lugar tem uma tradição histórica: partidos políticos, sindicalistas, movimentos feministas e toda a esquerda da América Latina em Paris se reuniam ali antes e, sobretudo, após a queda de Allende.
O passeio continua pelo Boulevard Saint-Germain em direção ao oeste, para atingirmos a Praça Saint-Michel, que se encontra em reforma. Nosso autor gosta de um ângulo, na ponta extrema da praça, para tirar foto da Notre-Dame à direita. Às margens do Sena, do outro lado do rio, na Île de la Cité, avista-se o cais, onde, no número 36 do Quai des Orfèvres — belo prédio da polícia —, o escritor Georges Simenon ambientou suas histórias com o comissário Maigret.
Sem chuva, o céu carregado de um cinza dominante — cor que harmoniza com os monumentos, em sua maioria de pedra talhada —, dessa cidade-museu que é Paris. Bela Paris. Será que ela continua a inspirar nosso escritor? “Inspirar” ele não sabe se é o melhor verbo, mas, sem dúvida, “ela continua a inspirar poetas, prosadores, artistas em geral e militantes políticos do mundo todo e de todas as tendências ideológicas. A riqueza intelectual é imensa, há debates a toda hora e em mil lugares. A universidade é um desses espaços produtores de saber”.
Nesse universo, ele se coloca no passado:
Ouço a voz de Foucault, Lacan, Deleuze, Blanchot, Barthes (meu professor no curso Le Neutre, do Collège de France) nas esquinas e vãos da cidade, principalmente no Quartier Latin. Vozes algo abafadas pelo discurso de extrema-direita que ganha terreno na França e na Europa. Mas as reações ao fascismo também se aperfeiçoam no nível das ideias e estratégias. As leituras de Lukács, da época, estão vivas.
Nosso objetivo é chegar até a altura do Museu d’Orsay, pelas margens do rio que já viu tanta gente e agora inúmeros turistas. Escutam-se todas as línguas. À esquerda, o Palácio da Moeda; já avistando o Louvre à direita, do outro lado do rio. Na altura da Pont des Arts, à esquerda, encontra-se o imponente Instituto de France, do qual faz parte a Academia Francesa de Letras. O tempo ficando curto, mas impossível resistir a uma visita rápida à biblioteca da entidade. Ela se chama Mazarine — em homenagem ao ministro que auxiliou a mãe de Louis XIV, Anne d’Autriche, a governar enquanto esperava que o príncipe atingisse a maioridade e assumisse o poder —, é a biblioteca pública mais antiga da França, formada pelo cardeal.
Tudo tem um final. Nosso passeio termina — Godofredo tem outros compromissos — em frente ao Museu d’Orsay, antiga estação de trem. Um dos prédios mais interessantes da cidade, que abriga o museu dos impressionistas, cujas obras, expostas no alto, parecem contemplar o céu — uma magia que proporcionam, sobretudo em dias ensolarados.