A palavra insaciável em Rodolfo Alonso

Resenha do livro "Antologia pessoal", de Rodolfo Alonso
Rodolfo Alonso: “A contagiosa vitalidade da vida cultura brasileira sempre me atraiu”
01/09/2003

Um dos mais notáveis agitadores culturais argentinos, o poeta Raúl Gustavo Aguirre (1927-1983), saudou o ingresso de um novo cúmplice ao grupo que produzia a revista Poesia Buenos Aires, nos anos 50, dizendo tratar-se de alguém “dotado de um surpreendente domínio da matéria verbal, na qual conjuga as conquistas da poesia moderna no terreno da linguagem com o respeito pela estrutura e o espírito da língua cotidiana”, dele afirmando que “seus poemas surgem de um apaixonado diálogo com o mundo e os homens, assumidos em sua dramática realidade”. Aguirre referia-se a outro argentino, Rodolfo Alonso (1934), o mais jovem integrante daquele grupo que, juntamente com os poetas à volta de Aldo Pellegrini (1903-1973), seria protagonista de um dos momentos mais renovadores da tradição lírica Argentina.

Logo naquele primeiro momento o próprio Alonso dava sinais de intensidade, de uma relação sempre visceral com a poesia. E Pellegrini tanto percebeu essa intensidade que lhe confiou a tradução de Fernando Pessoa e Giuseppe Ungaretti, antologias poéticas que seriam publicadas, respectivamente, em 1961 e 62. antes deles, Alonso já havia traduzido Cesare Pavese, Gillo Dorfles e Marguerite Duras, iniciando assim uma trilha de grande fertilidade que incluiria, dentre inúmeras outras, traduções de Ingeborg Bachmann, Éluard, Jacques Prévert, Sade, Montale, Valéry, Baudelaire, Apollinaire, Antonio Ramos Rosa, Guido Cavalcanti e os brasileiros Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes.

A substanciosa inclinação de Rodolfo Alonso pela tradução, onde sempre mostrou um talento exemplar, não vinha desgarrada de seus complementos: reflexão e difusão em torno do autor traduzido e a configuração cultural que envolve cada um desses momentos contemplados. Nos anos 70, criou um selo editorial, com seu próprio nome, através do qual foram publicados mais de 200 títulos. A respeito nos diz que “hoje, não sem certo melancólico e até irônico orgulho, descubro que aquelas arriscadas edições se converteram, e não só em meu próprio país, praticamente em objeto de culto para as jovens gerações”.

Impossível listar aqui a igualmente imensa atividade de Rodolfo Alonso no que diz respeito à produção de ensaios e artigos para imprensa, sempre tão obstinadamente entregue ao exercício de uma reflexão da poesia que permitisse o entrelaçamento de culturas. No caso do ensaísmo convertido em livro, cabe citar títulos como Poesia: lengua viva (1982), No hay escritor inocente (1985) e La palabra insaciable (1992).

Importa-nos agora sobretudo o fato de que este admirável poeta, que sempre tratou muito bem de difundir a poesia brasileira em seu país, e também em outras instâncias, a exemplo da revista venezuelana Poesia, da qual tem sido colaborador freqüente nos últimos 25 anos, finalmente encontra acolhida editorial no Brasil. A Thesaurus Editora (Brasília) acaba de publicar o volume 6 de sua coleção Antologia Pessoal, dedicado à poesia de Rodolfo Alonso. Trata-se de uma muito boa edição bilíngüe acompanhada de valiosa fortuna crítica e um depoimento do próprio poeta. Logo no prólogo, Alonso destaca a importância da linguagem: “A questão é que, se decai a linguagem humana, decai a condição humana. Porque não usamos a linguagem, insisto, somos linguagem. E, quanto menos linguagem somos, somos menos humanos, menos homens”. Não resta dúvida que este se trata de um aspecto essencial a ser discutido atualmente, dado o desgaste perceptível da linguagem e conseqüentemente da própria essência humana.

Alonso esteve no Brasil para o lançamento de seu livro, por ocasião da Feira do Livro em Brasília. A seguir um pequeno diálogo mantido com o poeta argentino, algo bem informal, mas que segue revelando a intensidade de sua relação com a poesia.

• Por que somente agora se publica tua poesia no Brasil, se pensarmos que te dedicas à difusão da poesia brasileira há várias décadas?
Realmente, além da própria timidez ou abolia pessoal, decisões como essas são tomadas por editores. E os deuses, que não são senão outro rosto do acaso objetivo. Este livro aparece precisamente agora por um quase milagroso encadeamento de circunstâncias. O poeta português José Augusto Seabra andou me rastreando em função de meu papel como primeiro tradutor de Pessoa na América Latina (outro presente dos céus). Foi ele quem propôs meu nome a Victor Alegria, o generoso impulsionador de Thesaurus Editora de Brasília, a quem finalmente se deve todo o mérito desta decisão que tanto me comove.

• Por que te dedicaste tanto à poesia brasileira e quais seriam os poetas com quem mais te identificaste ao longo desses anos todos?
Este tipo de ações não é fruto de uma reflexão premeditada. Descobri-me traduzindo os grandes modernistas brasileiros quase ao mesmo tempo em que me descobri escrevendo poemas eu mesmo. E isto começou praticamente desde minha adolescência. Com o tempo, pude intuir algumas possíveis motivações. Por exemplo, o bilingüismo de minha infância, já que meus pais falavam ao mesmo tempo em castelhano e galego. Ou a precoce consciência de que não pode haver um destino para a América Latina que não inclua nossa evidente fraternidade com o Brasil. E, sobretudo, a irresistível sedução com que sempre me atraiu a contagiosa vitalidade da vida cultura brasileira, não somente em sua poesia, em sua literatura e em sua arte, mas também na extraordinária riqueza viva de sua contagiosa música popular e a espontânea frescura expressiva com que seu idioma se mantém contagiosamente ativo na própria vida cotidiana. Não há grande poesia culta sem uma língua realmente viva falada por uma comunidade, por um povo. E o grande modernismo brasileiro dá testemunho disto. Entre tantos grandes poetas, há dois que sempre estiveram muito próximos de meu coração: Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes.

• Haveria alguma maneira de se estabelecer inter-relações estéticas entre poesia brasileira e argentina?
É um trabalho que, se já não o fizeram, deveriam encarar sem dúvida os especialistas. Mas ainda que não o pareça sempre na superfície, estou seguro de que existem entre ambos domínios, no fundo, nutritivos vasos comunicantes.

E dentro de uma contemporaneidade, quais seriam aqueles nomes a serem destacados, nos dois países, atualmente?
Outra questão que me supera. Em meu país padecemos, quanto à poesia que se escreve, uma inflação de produção, e uma carência de exigência. Sei que no imenso Brasil a poesia segue florescendo em espaços que às vezes não se conhecem entre si. Porém seria injusto que, com meu acesso parcial, me animasse a dar nomes. Queria apenas destacar a saudável tendência à independência de critério e à responsável seriedade, ao mesmo tempo fresca e espontânea, que vejo manifestar-se na renovadora atitude de um jornal tão exemplar como Rascunho. E que por certo se reproduz aqui e ali, no Rio e em Fortaleza, em Salvador ou em Brasília, para citar apenas alguns, porém significativos.

Antologia pessoal
Rodolfo Alonso
Thesaurus Editora
195 págs.
Floriano Martins
Rascunho