Histórias de amor e clichê já viraram rima forçada. Desafio é falar dos encontros amorosos de uma forma que assombre, assuste, desestruture, descontrole ou simplesmente estimule reflexão no leitor ou no espectador — como se estivessem numa peça de teatro, num filme ou num espetáculo de dança a princípio incompreensível porque foge a um riscado, mas que, vastidão, deixam o lastro. Vez por outra a literatura contemporânea dá conta deste recado. Não que se pretenda reinventar a roda, mas a recusa do óbvio, das fórmulas fáceis, é um trabalho necessário. Os resultados são tão imprevisíveis quanto o projeto.
“Não se trata exatamente de gostar, mas sim de tentar decifrar o que se constrói no momento em que os gestos do outro te carregam e te abrem possibilidades de desenhar novos momentos também.” O trecho está em Cravos, primeiro romance de Julia Wähmann, e descreve as reações possíveis diante de um espetáculo de dança contemporânea. Serve ainda para definir o que toca, desmesura, chacoalha mundos interiores — tudo o que o clichê não alcança.
Em um intertexto muitíssimo bem urdido a partir de vários paralelos com espetáculos do Tanztheater Wuppertal, companhia da lendária coreógrafa alemã Pina Bausch, Cravos tem como um dos temas centrais o amor, mas reage com ímpeto aos roteiros repisados — o tapete de cravos que os dançarinos pisoteiam em cena é uma das metáforas fortes, entre tantas. Logo no início da história, um homem tira do bolso uma flor despedaçada. É hora de sair do teatro/da página quem não quiser se envolver em uma experiência de leitura diferente.
A dança está na raiz das referências culturais da autora, tendo sido inclusive tema de pesquisa do curso de Letras da PUC-RJ em 2013. Cravos está diretamente ligado também ao hábito da autora de assistir a encenações, como, por exemplo, o espetáculo Ten Chi, do Wuppertal, que surtiu nela um efeito devastador. O pano caiu, mas a dança continuou acontecendo.
Traduzir para a literatura a experiência do impacto de uma dança tão forte como a de Pina Bausch é uma das tensões de Cravos, marcado por levezas e silêncios, em capítulos curtos, breves encenações da vida cotidiana. Atenção aos gestos: até um mínimo inflar de costelas, um bocejo ou um trincar de dentes está sendo coreografado. Pequenas narrativas-coreografias cifradas são criadas aqui e ali. O cenário se modifica como na mudança de um palco; de uma página para a outra, a narradora pode estar no meio de uma rua carioca, em pleno carnaval ou molhada de chuva alemã — não entender os percursos dos sobressaltos talvez seja a melhor opção para o leitor, a quem se pede envolvimento.
Aproximações e recuos
Os gestos, nervosos, desconjuntados ou em harmonia, são todos teatralizados. Uma das grandes questões: como se aproximar do outro? “A piscina não mudou de tamanho, mas a borda oposta parece cada vez mais longe.” A coreografia do amor inclui aproximações e recuos; júbilo e dor. O ritmo da aproximação ou do afastamento dos corpos imita a movimentação das cenas. Nas idas e vindas dos corpos, a letra-dança é uma difícil proeza, mas Julia consegue realizar o que promete.
A verdade íntima dos gestos é adivinhada por antecipação:
Os seus chinelos por cima do meu vestido florido anunciam um folclore que reencenamos: os meus dedos que se enterram pelos seus cabelos, o vai e vem dos seus calos pelas minhas costas desalinhadas, o chiado da vitrola na sala. Você cai num sono pesado e eu olho seu peito subir e descer e procuro pintas pelas suas pernas, pelos seus braços e olho tão detidamente pra essa calma que agora você exala, minha velha tentativa de apreender o máximo possível ou de encontrar um detalhe que só eu saiba, que só eu guarde. O que pode um corpo: anarquia, vastidão.
A sonoplastia que serve de cenário acústico para os movimentos inclui mais os barulhos da vida do que as palavras, que falam em excesso. A música que às vezes acompanha é o barulho bom das cenas, que seguem também povoadas de alarmes, despertadores, ruídos de ar-condicionado e chuvas. Entre um som e outro, nada a dizer, é aquele instante em que só existe a mecânica do gesto silente.
As ações dos bailarinos deixam um eco latejando ao redor das ambientações — como se a mesma pessoa que tivesse se impactado com o espetáculo fosse para a rua viver, mas sem conseguir se desgrudar do assombro e da recordação de tudo o que viu no teatro. É uma espécie de alinhavo emocional, mesmo quando o espetáculo (da vida) alcança a rua. O texto de Cravos sai em busca dessa desmedida, da perturbação. Afinal, é meio confuso estar vivo. E as pessoas não sabem muito o que fazer umas com as outras.
Traduzir para a literatura a experiência do impacto de uma dança tão forte como a de Pina Bausch é uma das tensões de Cravos, marcado por levezas e silêncios, em capítulos curtos, breves encenações da vida cotidiana.
A reflexão sobre como transpor para a cena literária a experiência sensorial diante da dança e, por extensão, do confronto com da vida, viagens, amores também está presente no texto — panos suspensos, os bastidores devastados:
Enquanto não volto, L. me aconselha a escrever sobre minhas vivências em Wuppertal. Mas como dizer? Como contar de elefantes que se aventuram por entre as janelas de um trem suspenso? E de bailarinos que se lançam numa reinvenção de seus corpos e de si mesmos, e de nós mesmos — um existindo à custa do outro, todos bambos à procura de um eixo?
Estar bambo à procura de um eixo é a condição no mundo. A cena literária contemporânea precisa dos assombros, do susto, para, terrivelmente, dar conta do palco (íntimo) pisoteado em nossos jardins maltratados. Quanto às histórias de amor, estas podem aprender muito com o inusitado das outras artes. Como na peça Arien, uma das referências descritas em Cravos, que conta a história entre uma mulher e um hipopótamo. O amor talvez seja mesmo impossível. Afinal, escreve Julia Wahmann: “Não é simples encontrar lugar para existências tão grandes”.