A outra história americana

Em seu novo romance, Philip Roth cria América aterradora, onde seus habitantes foram privados de seus direitos civis
Philip Roth: um dos escritores mais proeminentes da literatura mundial.
01/11/2005

Ele é um dos escritores mais proeminentes da literatura mundial. A prova disso é que, dias antes da entrega do último Prêmio Nobel (vencido pelo dramaturgo inglês Harold Pinter), a imprensa cultural européia cogitava seu nome como um dos favoritos. Isso para não mencionar o fato de ter sua obra publicada em edição definitiva pela Library of America no total de oito volumes — e ser o terceiro autor americano vivo a receber tal distinção. E a lista de títulos e honras poderia seguir ao longo de todo o texto, como se fosse uma efeméride, mas Complô contra a América, o mais recente romance de Philip Roth, merece mais espaço, até porque diz mais a respeito de sua obra do que qualquer outro comentário laudatório, bem como traz à tona uma história por demais trágica para ser verdade, mas que em muitos detalhes se equipara a uma realidade mais absurda do que a ficção.

A história se passa durante a Segunda Guerra Mundial. Para ser mais exato, Roth inicia sua narrativa no momento em que o conflito ainda estava circunscrito à esfera européia, pelo menos era assim que grande parte dos americanos, conforme o autor relata, pensava em 1940, época da sucessão presidencial. A família Roth, judia e moradora da pacata região de Newark, levava sua existência até então na perpétua tranqüilidade. Pois, se havia problemas, decerto eles não eram insolúveis. Assim, seus cinco membros — Herman (o pai), Bess (a mãe), Sandy (o irmão mais velho), Philip (o caçula) e mais o primo Alvin — dividiam ali suas alegrias e eventuais agruras em família. Essa paz, no entanto, não duraria muito. De fato, nem é com ela que o autor inicia o livro. “O medo domina estas lembranças, um medo perpétuo”, ele escreve na primeira linha. Motivo? Tudo porque, ao contrário do que se imaginava, o republicano Charles A. Lindberg derrotou com ampla maioria de vantagem o candidato preferido, e teoricamente favorito, de boa parte dos americanos. Para tanto, sua principal bandeira, para alegria de alguns e desespero de tantos outros, era o não envolvimento com a Guerra que acontecia lá na Europa. Roth até relembra um dos motes da campanha: “Vote em Lindberg ou vote a favor da Guerra”. Ora, não precisou de tanto convencimento e todos foram enredados num governo que acarretaria mudanças indeléveis para os Estados Unidos e para os americanos.

Esses pontos ficam evidentes à medida que o leitor acompanha o desenvolvimento da história na perspectiva do garoto Philip, o narrador da história, como se fossem suas memórias (um recurso, aliás, já utilizado pelo escritor em outros de seus romances). Desse modo, nota-se como a família sofre as transformações à medida que a condição de vida para os judeus na América se torna mais insuportável graças ao aspecto para lá de moderado, dizendo o mínimo, com que o presidente Lindberg trata o nazista Adolf Hitler. O argumento utilizado pelo presidente dos Estados Unidos é não somente convincente como também absolutamente justificável; afinal, em sã consciência, quem é que deseja fazer a guerra quando se pode optar pela paz? Aparentemente, o único a discordar dessa “corrente do bem” parece ser Herman, e é a partir daí que as relações familiares começam a ruir.

Alinhados com o nazismo
Não é exagero, aqui, dizer que a obra está articulada de tal maneira que um abismo chama outro abismo, como se os acontecimentos da esfera privada (da família) refletissem de maneira devastadora as ações perpetradas na esfera pública (da política), para utilizar o jargão dos sociólogos. Assim, nessa relação causa-efeito, o garoto Philip observa, perplexo, todo o seu universo estruturado diluir em meio aos pronunciamentos furiosos do pai, que briga contra tudo e contra todos por discordar do presidente. E o mesmo garoto vê, ainda, os estigmas dessa desconstrução familiar de forma tão presente quanto a dor de seu primo que perdeu a perna e nunca mais foi o mesmo.

Para ressaltar esse traço forte do livro, o autor propõe uma reflexão-narrativa na voz do garoto Philip, detalhe que sem dúvida acentua as cores do romance, conforme se lê a seguir:

Uma nova vida teve início para mim. Eu vira meu pai se descontrolar, e minha infância jamais voltaria a ser como antes. Aquela mãe que sempre estava em casa agora passava o dia trabalhando; o irmão sempre disponível trabalha para Lindberg depois da escola; e o pai que havia desafiado anti-semitas em Washington agora chorava alto e de boca aberta — como um bebê abandonado e também como um homem torturado — por se sentir impotente diante daqueles eventos imprevistos.

E, de fato, a questão do anti-semitismo e o estado de assombro que os judeus viviam são pontos-chave na história, posto que todos os acontecimentos estão, de um jeito ou de outro, relacionados a estes problemas maiores. Entretanto, apesar de a política ser preponderante em toda a obra, o dado que mais chama a atenção no livro, para além da tragédia de os Estados Unidos estarem sob a égide de um governo alinhado com o nazismo, é a maneira como Roth remonta cenários, faz o retrato das personagens e recontextualiza os fatos para acusar uma condição de supressão das liberdades, ou, para muitos, a denúncia de um estado de coisas que, se não estivesse numa obra de ficção, seria uma acusação descarada contra a atual administração norte-americana.

O livro, contudo, supera até mesmo essa sanha de ser politicamente engajado. Com muita elegância, Roth tem o cuidado de costurar uma história que faz questão de afirmar ser de ficção. Desconfiado? Basta o leitor observar o post-scriptum e ver como a história aconteceu de verdade naquele período. A obra, portanto, ainda que seja aparentemente ideológica, segue princípios estéticos, de tal sorte que busca encaixar os dados reais numa ficção (estória com “e”) e, assim, construção artística.

Nem por isso Roth foge da realidade e de sua história. Em certa medida, o autor produz no romance uma história cujo teor faz sombra à realidade. Nesse aspecto, aquilo que se lê como ficção possui algo de tão crítico e atual que faz o leitor crer, de olhos fechados, que se trata de um libelo, um documento acerca de nossos dias. Em verdade, é correto afirmar que esse efeito de realidade trazido por Philip Roth é tão somente um arremate para sua narrativa.

Ademais, o leitor só irá descobrir qual é o real significado do título do livro no final, quando supor que já descobriu tudo. Não é o caso de chamar de armadilha, mas, antes, de reafirmar como o autor possui o controle sobre aquilo que escreve, apresentando para o leitor, em doses homeopáticas, algumas vezes o desenrolar da história, e em outras a reação de seus personagens aos acontecimentos.

Em Complô contra a América, o escritor Philip Roth reconstrói com requintes sombrios um período que, como se lê, poderia ter sido terrível não só para os judeus, mas para todos os americanos e, até certa altura, para o mundo todo. Muito embora não se deva fixar no aspecto político da discussão da Segunda Guerra Mundial, sua aparição é automática, sobretudo em virtude da técnica narrativa e descritiva do autor, cujos efeitos são para lá de marcantes. Nesse sentido, uma frase que talvez permaneça como marca deste livro é a definição que a personagem principal, o garoto Philip, dá no que se refere à história. Pois, para ele, trata-se do “imprevisto implacável dos acontecimentos”. Com veemência e estilo, o autor mostra, a partir da reação de suas personagens, como esta outra história americana seria aterradora se, de fato, os Estados Unidos vivessem sob uma forte disputa religiosa; se, com efeito, uma fatia considerável dos moradores fosse coagida nos seus direitos civis em virtude da ação de um presidente; se essa mesma parcela sentisse que o país que tanto prezava pela democracia e pela liberdade vivesse sob o medo perpétuo e constante; e se, por fim, a situação chegasse a tal ponto que a única solução plausível não fosse mais uma saída, posto que já seria tarde demais. Felizmente, e para o alívio de todos os leitores, esta outra história americana só existiu no campo da ficção. Qualquer semelhança com o presente é mera coincidência.

Complô contra a América
Philip Roth
Trad.: Paulo Henriques Britto
Companhia das Letras
482 págs.
Philip Roth
Em 1997, o norte-americano Philip Roth ganhou o Prêmio Pulitzer pelo romance Pastoral americana. Também já escreveu os livros A marca humana, O avesso da vida, O complexo de Portnoy, A operação Shylock e Casei com um comunista, entre outros.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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