A origem do vampiro (que ainda não tem sucessor)

Relançamento da obra de Newton Sampaio mostra como ele influenciou a literatura de Dalton Trevisan
Newton Sampaio, autor de “Remorso, ficção dispersa”
01/06/2002

Matérias publicadas pela imprensa especializada e estudos acadêmicos, em sua maioria, apontam Tchecov e Maupassant como as principais influências literárias de Dalton Trevisan. A informação é pertinente, mas incompleta. Um autor fundamental na formação de Trevisan foi Newton Sampaio (1913-1938). Natural de Tomazina, interior do Paraná, viveu em Curitiba e Rio de Janeiro, tendo publicado artigos, contos e críticas nos principais jornais da época. Morreu tuberculoso na Lapa (PR). A Imprensa Oficial do Paraná vem editando livros de paranaenses fora de circulação, e entre suas publicações mais recentes figura Remorso, ficção dispersa, que reúne uma novela, contos e trechos de romances de Newton Sampaio — material publicado até então apenas em jornais e revistas, organizado por Luís Bueno.

O leitor que folhear Remorso, ficção dispersa, ou outro livro do autor, sem ter a informação de que o material foi escrito na década de 1930, poderá até ter a impressão de que se trata de um texto produzido atualmente. Newton Sampaio valeu-se de frases curtas, elipses, ênfase na ação e nos diálogos, o que resultou em uma literatura ágil. Esses mesmos recursos estarão presentes na obra de Dalton Trevisan. E a influência não se restringe à linguagem.

Os enredos de Newton Sampaio revelam visão negativa do mundo. Os personagens terão finais trágicos, não sem antes o autor ironizar, quando não ridiculariza, a trajetória das pequenas criaturas. Não há piedade para ninguém, seja ingênuo, hipócrita ou canalha. A existência, enfim, é inviável. Esse ponto de vista teria continuidade em Dalton Trevisan.

Newton Sampaio foi talentoso, mas não pode ser considerado um grande escritor. Ele não teve tempo para desenvolver seu projeto literário. Os textos publicados originalmente na imprensa são crus, tanto que alguns contos e capítulos de romance foram reescritos e incluídos nos livros Irmandade (1938) e Contos do sertão paranaense (1939) — aglutinados no volume Contos reunidos (2001), também editado pela Imprensa Oficial do Paraná.

A novela Remorso ilustra exemplarmente como a falta de tempo comprometeu a obra do autor. O personagem central, a exemplo de Newton Sampaio, nasceu em uma cidadezinha do interior paranaense e veio estudar medicina em Curitiba. Casualmente, começou namoro com uma vizinha, Sônia. Mas não poderia se casar, uma vez que ela era “polaca” — a “polaquinha” como mulher para o sexo será tema tratado por Dalton Trevisan. Em meio a uma crise de consciência, Fernando abandona Curitiba, os estudos e Sônia grávida, fixando residência no Rio de Janeiro. Passa a atuar na imprensa escrita, sobretudo como crítico. O texto de Newton Sampaio é competente, ágil, os diálogos são elaborados, mas ao deslocar o protagonista para a então capital federal, o enredo perde a verossimilhança, sobretudo, devido ao turbilhão de acontecimentos (Fernando, viciado em álcool, reencontra Sônia, transformada em celebridade do mundo artístico, que abandona o marido milionário e se acidenta tragicamente). A novela aglutina idéias consistentes, mas precisaria de edição, ou tempo de repouso em uma gaveta, antes de ser publicada. Se a obra não pode ser finalizada, ao menos, germinou em um talentoso continuador.

De março de 1940 a dezembro de 1943, o então jovem Dalton Trevisan editava a revista Tingüi, publicando sonetos, artigos e contos, e poderia ter se tornado apenas um beletrista. De abril de 1946 a dezembro de 1948, estaria à frente da Joaquim, hoje considerada uma das mais relevantes revistas culturais produzidas em nosso país no século 20. Nesse período, sinalizava ter assimilado a visão de mundo de Newton Sampaio, tendo publicado um conto do autor, Irmandade, e um artigo favorável, Notícia de Newton Sampaio, respectivamente, nas edições 2 e 11 do respeitável periódico. No entanto, produzia contos longos, comparados com os que revelaria em seus livros.

Ao publicar Novelas nada exemplares (1959), Dalton Trevisan havia superado as lições newtonsampanianas. Além das frases curtas, elipses, alta voltagem nos diálogos e na ação, soube enxugar o texto, cortando todo e qualquer excesso. Em vez de simplesmente apresentar existências inviáveis, revelou o que há de mais sórdido na trajetória das pequenas criaturas. E com a publicação de seus livros seguintes, Cemitério de elefantes (1964), Morte na praça (1964) e O vampiro de Curitiba (1965), se impôs como um dos mais importantes ficcionistas da língua portuguesa de todos os tempos.

Apesar de Dalton Trevisan ainda estar ativo, editando caderninhos que reúnem textos nem sempre de qualidade, sua obra já está toda escrita. E seu sucessor já devia ter aparecido. No entanto, sicrano unicamente plagia descaradamente o estilo do vampiro, fulano apenas ambienta um arremedo de enredo em Curitiba e beltrano não se dá conta de que, para dar seqüência ao projeto iniciado por Newton Sampaio e continuado por Trevisan, é necessário adequar visão de mundo, linguagem com todas as conseqüências da época em que vivemos. Será que surgirá outro paranaense capaz dar continuidade à tradição, superando os dois antecessores? O posto está vago. Quem se habilita?

Remorso, ficção dispersa
Newton Sampaio
Imprensa Oficial do Paraná
216 págs.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho