A organização dos restos

"Submundo", de Don DeLillo, radiografa a sociedade americana a partir do espetáculo, das imagens e dos sons
Ilustração: Don DeLillo por Fabio Miraglia
01/02/2024

Submundo é considerada a obra mais importante de Don DeLillo e um dos principais romances das últimas décadas nos Estados Unidos. Publicado em 1997, foi traduzido dois anos depois no Brasil por Paulo Henriques Britto. Agora, ganha uma nova edição, mais atraente e de leitura confortável, em suas mais de oitocentas páginas. Seu prólogo é, ao mesmo tempo, reconhecível e exótico para o público brasileiro. Sua descrição dos minutos tediosos de uma partida de baseball, que subitamente se torna um momento único e entra para a história do esporte, que causa um sentimento eletrizante em toda a cidade, isso é bem conhecido de nossa crônica esportiva. A temporalidade específica do esporte, no entanto, também poderia render excelente material para nossa literatura de ficção. Quem não gostaria de ler um romance brasileiro de alto nível sobre a Seleção de 1970?

É algo semelhante ao que DeLillo oferece neste prólogo, a descrição de uma partida real — transformada pelo home run de Bobby Thomson na tarde de 3 de outubro de 1951 — que se torna lendária. Com sua típica simultaneidade cinematográfica, DeLillo descreve a emoção do jovem negro Cotter Martin de pegar a bola que venceu a partida, no mesmo cenário em que J. Edgar Hoover, diretor do FBI, é informado de que os soviéticos testaram a primeira bomba de hidrogênio. O restante do romance se divide em seis partes e um epílogo, apresentando uma narrativa cronológica reversa da vida de Nick Shay, o protagonista, por quase cinco décadas. Ele passa de sua vida como executivo de uma empresa de gestão de resíduos no Arizona, nos anos 1990, para sua infância no Bronx, nos anos 1950.

Na primeira cena, exemplar da escrita de DeLillo, diferentes perspectivas são costuradas com naturalidade. Um menino, que pula catraca para assistir à partida, divide o capítulo com um Frank Sinatra incensado pelos fãs. A descrição da partida é entremeada por pensamentos furtivos dos personagens, descrição dos vendedores de cachorro-quente, a visão espantada de uma pintura medieval, as reflexões de um narrador esportivo, etc.

A câmera narrativa se move lentamente, sem assustar, e a cada nova cena, a cada novo interior de personagem, a cena geral vai ganhando em detalhe e complexidade. É uma fragmentação que não choca o leitor, porque se dá em um mesmo espaço-tempo, em uma simultaneidade controlada. Não é um efeito fácil de produzir na literatura e aqui ele tem a naturalidade que apenas os grandes mestres conseguem produzir.

Sem excessos
De fato, nossa vida também é assim, pode haver um foco principal, mas nossa atenção flutua para as pessoas, as pequenas cenas, as sensações. Don DeLillo ressalta tudo isso que acontece ao redor, sem excessos, escolhendo a dedo cenas que pareçam comuns o bastante para sustentar o realismo da descrição, mas significativas o bastante para construir o efeito geral que ele busca. São eventos separados, mas que jogam luz um no outro. DeLillo não explica, mas pergunta. Às vezes, esta simultaneidade produz sínteses mais explícitas, como no trabalho artístico de Klara Sax. A personagem, conhecida logo no começo do livro como artista destacada, faz sua arte gráfica sobre antigos aviões bombardeiros. O mundo hiperveloz e financeirizado da arte encontra seu par secreto na indústria da guerra.

O livro balança entre a atenção para o detalhe arbitrário — que pode de uma hora para outra se tornar histórico — e para o acontecimento gigantesco, que depende de uma teia mínima de eventos e partículas. O plutônio nuclear e o deus da morte e do submundo, Plutão. O atômico subnuclear da física e o atômico nuclear da bomba. Pós-bombas, pós-usinas e também a questão do que fazer com os rejeitos, com aquilo que resta depois do grandioso — como os papéis jogados pelo público na grande final do jogo de baseball. O que acontece com os restos (entendido em sentido amplo: as partículas, os objetos, as pessoas, as palavras, as histórias) é a pergunta principal do livro, e a pergunta também mais apropriada para tratar das sociedades de consumo:

Mas o papel continua caindo. Se a primeira chuva de papel era ligeiramente hostil, debochada, e a segunda era uma manifestação de solidariedade entre os torcedores, esta última tem uma certa suavidade, tem personalidade. Ela vem de todos os lados, são listas de lavanderia, envelopes roubados do escritório, são maços de cigarros amassados e papel grudento de sorvete, páginas de blocos de rascunho e agendas de bolso, estão jogando notas de um dólar velhas, fotografias rasgadas, invólucros de bolinhos, estão rasgando cartas que guardam há anos nas carteiras, mementos de namoros e amizades antigas, tudo agora vira um lixo alegre, o desejo íntimo dos torcedores de fazer parte do evento, interminavelmente, através do lixo de bolso, lixo pessoal, uma coisa com uma identidade secreta rolos de papel higiênico desenrolando-se, líricos, como serpentinas.

Apocalipse lento e cotidiano
Quem leu Ruído branco, outro romance do autor que já é um jovem clássico da literatura americana, reconhecerá esta letargia diante de um apocalipse lento e cotidiano. Reconhecerá algo também da ternura e da intimidade de um casal de meia idade diante de um mundo que vai ficando mais estranho, mas nem por isso mais interessante. As tentativas de camuflar o pequeno medo diante de acontecimentos grandiosos demais para se registrar. O filósofo Günther Anders adicionou ao termo subliminar, aquilo que é pequeno demais para ser captado pela percepção humana, seu par oposto, típico do século 20, o superlimiar, aquilo que é grandioso demais para ser compreendido, como a bomba atômica para o século 20 e as mudanças climáticas para nós no século 21.

DeLillo apresenta uma visão morna, ou cool, do mundo. (É a postura que os hipsters ensaiam, mas nunca conseguem ter, como os vampiros de Jim Jarmusch.) Morna não no sentido ruim, mas no sentido de uma postura estoica, quase conformada, diante das catástrofes do mundo. Este sentimentalismo modulado é interrompido capítulo a capítulo por uma acontecimento insólito e inesperado, apenas para ser digerido lentamente, muitas vezes por décadas — como em um trauma atômico. Em texto crítico sobre o romance, Leonard Wilcox chama estes momentos de “retorno do real”:

Ocasionado por uma erupção de contingência, isso envolve um choque de reconhecimento, uma perturbação no mundo simbólico do sujeito.

É assim com o home run do prólogo, que ecoa por toda a cidade, até a cena violenta e religiosa do epílogo, molduras para uma constância atenuada, do pré ou pós-pânico que caracterizam a vida moderna.

Não é exatamente o inferno, tampouco a vida plena, é mais um inframundo, um submundo, o mundo em que os restos circulam e acontecem. A conotação psicanalítica é evidente, mas a política, a grande e a pequena, também. São momentos de exceção que produzem um subproduto a ser elaborado ou escondido. O livro, de certa forma, é uma maneira de narrar os detritos para poder, em alguma medida, se libertar deles, pelo menos um pouco, como no trauma infantil do jovem protagonista abandonado pelo pai que foi comprar cigarros.

Fazer esta modulação sem deixar com que o romance se torne chato — ele é tudo menos isso! — exige perícia literária. Há uma sobriedade que é, no entanto, cinematográfica. Sem sustos, mas, ao mesmo tempo, hipermóvel, movendo-se de uma cena a outra, de um acontecimento no tempo a outro. São montagens de cenas que acontecem em plano sequência, por assim dizer, em um movimento leve de câmera. Um mosaico macio.

Com esta descrição, percebo que me coloco na contramão dos críticos que caracterizam o romance como literatura pós-moderna. Porque a fragmentação aqui é contida por uma força narrativa, e por um poder de seleção e síntese que dão ao todo do romance uma coerência profunda. Aqui também há um “ruído branco” envolvendo tudo. É assim também em uma história mais curta do autor como Cosmópolis, em que um único dia de um milionário em Nova York serve de metonímia para todo o caos da cidade e do mercado financeiro. Não há aqui uma grande metanarrativa em desconstrução que se narra, é o próprio mundo histórico que se desfaz, mas que é narrado a partir de uma técnica singular e apuradíssima, que, aliás, utiliza as melhores ferramentas do modernismo, como o de Faulkner, para dar conta da decadência. Para dizer em outras palavras, o conteúdo pode ser fragmentado, mas a forma não. E isso não é um juízo de valor em relação à literatura pós-moderna, mas apenas uma distinção em relação ao que penso que DeLillo faz. A seguinte descrição que ele faz de um narrador de baseball parece dizer muito sobre sua própria técnica narrativa:

Alguém lhe entrega uma folha de papel coberta de letras e números e você tem que transformá-la numa partida. Você inventa as condições de tempo, os corpos dos jogadores, faz com que eles suem e resmunguem e ajeitem as calças, e é notável, pensa Russ, quanta confusão concreta, quanto verão e pó a mente é capaz de evocar com base numa única letra do alfabeto.

A folha de papel coberta de letras e números é o mundo em sua infinitude e desintegração. O narrador esportivo é o grande narrador literário que assume o risco de tentar organizar, humanizar, esta confusão. Resistindo também à tentação de considerá-la harmônica. Ela não é. Só é possível organizar os restos, a única coisa verdadeira em uma falsa totalidade, como diria Adorno.

De fato, para radiografar a sociedade americana, DeLillo mobiliza o espetáculo, as imagens e os sons, mas sem crer completamente neles. Embora ele emule procedimentos cinematográficos e musicais, a palavra, e o controle fino de DeLillo sobre ela, consegue criar distância para que outros tipos de imagens e sons possam acontecer dentro de quem lê, de maneira mediada pela escolha das palavras e pelo ritmo, sem a imediatez do lado de fora. No cotidiano rebaixado do submundo, o que nos resta é este “zumbido maçante de ser quem se é”, com seus momentos fabulosos e banais:

Homens entrando e saindo dos banheiros, homens fechando a braguilha enquanto se afastam do mictório e outros se aproximando da gamela comprida. pensando onde vão ficar para mijar, ao lado desse e não daquele, e a morrinha mofada do velho estádio está consolidada aqui, gerações sucessivas de cerveja e merda e cigarros e cascas de amendoim e desinfetante e mijo em quantidades fabulosas, e pensam as coisas normais que ajudam as pessoas a viver suas vidas, pensam em coisas que nada têm a ver com os eventos, o zumbido maçante de ser quem se é, homens se esbarrando na entrada do banheiro enquanto o jogo prossegue, entrando e saindo, pondo o pau para fora e mijando pensativos.

Submundo
Don DeLillo
Trad.: Paulo Henriques Britto
Companhia das Letras
813 págs.
Don DeLillo
Nasceu em Nova York (EUA), em 1936. Sua obra inclui romances, contos e peças de teatro. Em 1985, recebeu o National Book Award por Ruído branco. Também ganhou o PEN/Faulkner Award e o Library of Congress Prize for American Fiction. Entre seus trabalhos mais conhecidos estão Os nomes (1982), Cosmópolis (2003) e Zero K (2016).
Tomaz Amorim Izabel

Nasceu em Poá (SP). Graduou-se na Unicamp e fez o doutorado em Teoria Literária na USP. É autor do livro de poesia Plástico pluma (Urutau).

Rascunho