O ar pesadamente úmido toma conta de todo ambiente do romance O estaleiro, do uruguaio Juan Carlos Onetti. Tudo acontece como se uma chuva tímida e constante mergulhasse a vida toda num rio monótono, de difícil caminhar. Melhor, quase nada acontece já que esta é uma narrativa de poucas ações e muitos mistérios.
O enredo fala da volta de Junta-Cadáveres a Santa Maria. O retorno solitário de um homem envelhecido até na aparência. Ele instala-se como gerente geral do estaleiro decadente e falido do enlouquecido Jeremias Petrus. Ali, vai viver dias e dias nutrindo um sonho de reerguer toda aquela ruína. Mas sequer ele acredita nessa ressurreição, muito menos seus dois subordinados, Gálvez e Kurnz, que sobrevivem dos ferros que roubam dos velhos navios e vendem como sucatas.
Durante toda narrativa, Larsen, o Junta-Cadáveres, corteja Angélica Inês, a filha de Petrus, uma mulher solitária e atormentada por seus medos e preconceitos. Esse, digamos, romance também não se realiza em sua plenitude. Larsen insinua-se ainda para a mulher de Gálvez, outro romance irrealizado. Até com Josefina, a criada de Angélica, ele se desdobra em intimidades e outra vez pára por aí.
Junta-Cadáveres e Santa Maria são recorrências na obra de Onetti. O homem é o protagonista do romance que tem seu nome como título e onde, depois de escandalizar toda cidade com seu prostíbulo, é expulso dela por determinação do governador. Assim como o personagem aos poucos e ao longo da obra de Onetti vai se tornando uma síntese do uruguaio comum que o escritor visualizava, a cidade representa o microcosmo onírico que sua rica imaginação arranca da paisagem natural de seu país. Os dois, enfim, são a simbiose de um pensamento capaz de analisar com rigor e verdade as mazelas de um povo entristecido pelas dores que lhes são impostas. E daí a insistência de permanecimento de ambos. O homem deixa que o — vá lá — destino dome seus atos, enquanto a cidade vive de uma eterna pasmaceira domada pelo que poderia ter sido. Só que nada acontece.
Essa metáfora do não acontecimento se alia ao existencialismo de Camus. Assim como o franco-argelino, Onetti entrega seus personagens a um fatalismo irreversível e cria figuras que seguem ao sabor dos fatos, mesmo que tais fatos simplesmente não se efetivem. Isso deixa o leitor diante de uma inapelável e incontornável força da sina, de uma corrente caudalosa que determina os caminhos humanos.
Onetti põe o fatalismo como responsável pelo estado de paralisia que doma seus personagens. No entanto — e nisso reside o sabor de sua prosa — mantém nas entrelinhas uma intensa crítica à falta de rebelião, à passividade. Aqui ele rompe as fronteiras de sua pátria para estender uma rede analítica por toda América Latina. Talvez por uma determinação divina, uma crença bem sedimentada em nossa cultura, todo o continente paulatinamente se deixe levar como se a reação não tivesse méritos.
E tudo envolto por uma eterna névoa. A solaridade latina se apaga nas sombrias sentenças de Onetti. Curiosamente, ele se utiliza de uma certa poesia para falar de sombras. “A manhã estava límpida, cinza e azul, e sua luz aplacada olhava imóvel, atenta, livre de impaciência. Os charcos abertos no barro estavam ainda transparentes e espelhavam, cobertos pela geada; ao fundo, distantes e escassas, as árvores das chácaras enegreciam umedecidas. Larsen parou, tentou compreender o sentido da paisagem, escutou o silêncio. ‘É o medo’.”
Nada além dessa atmosfera de opressão, uma metáfora para uma vida coberta pela farsa, parece ser real nesta narrativa. “Todos sabendo que nossa maneira de viver é uma farsa, capazes de admiti-lo, mas sem fazê-lo, porque cada um precisa, além do mais, proteger uma farsa pessoal.” E esta teia de proteção egoísta é o que faz o mundo daquela gente girar sobre um eixo contínuo. Nada de novo precisa acontecer porque nos porões de cada um escondem-se suas vergonhas. E assim o mundo não precisa de revoltas.
Enfim, termina-se a leitura de O estaleiro com a estranha sensação de que aprendemos um pouco mais sobre nossas profundas ambições.