Ler a obra de Vergílio Ferreira é conhecer um dos mais interessantes romancistas portugueses. Sua escrita está associada ao neorrealismo e depois segue para uma vertente existencialista, recebendo diretamente a influência das leituras e do interesse do autor pela filosofia existencialista desenvolvida por pensadores franceses como Sartre.
A leitura das narrativas de Vergílio Ferreira é, para além de uma forma de aproximação com o espírito português desse século 20 — assombrado pela ditadura salazarista —, uma leitura filosófica em que o leitor pode encontrar nuances e figurações de diversas formas de pensamento e representações do eu.
Manhã submersa é um desses exercícios. Publicado pela primeira vez em 1954, o romance apresenta a história do garoto de 12 anos António Santos Lopes, o António Borralho, e sua chegada a um seminário. Esse destino é influenciado por D. Estefânia, que o orienta, por ser pobre, a seguir a vida religiosa, garantindo um futuro melhor. Assim como muitos outros jovens, António entra no seminário e conhece uma vida de opressão e silêncio, marcada por uma violência obscura que reverbera na sua própria formação espiritual e social.
A escrita de Vergílio Ferreira é também espaço onde se desenvolvem representações do universo histórico. O Seminário da Diocese da Guarda é um microcosmo que representa o estado salazarista marcado pela opressão, pelo silenciamento e a ação de uma censura violenta. António de Oliveira Salazar instaura em 1933 o Estado Novo, ditadura que se estenderia até 1974, com a Revolução do Cravos de 25 de abril. Característica intrínseca ao governo de Salazar era a atuação da Igreja, tendo como tríade basilar: “Deus, Pátria, Família” — o que promoveu, nas classes mais baixas e do interior de Portugal, uma identificação com o sistema a partir da idealização dos três elementos. Um dos exemplos era a Mocidade Portuguesa, pensada por Salazar a partir da Juventude Hitleriana e a divulgação de uma ideologia de amor ao sistema e à pátria.
Sentidos do silêncio
O romance pode ser entendido como um bildungsroman ou romance de formação, que apresenta a formação, crescimento ou construção da personalidade de um indivíduo acompanhando boa parte de sua juventude até a vida adulta. Manhã submersa é, portanto, a trajetória de António, narrada em primeira pessoa, não pretendendo ser uma história do coletivo, mas um registro com muitos traços de semelhança da vida de muitos jovens portugueses da primeira metade do século 20, obrigados a seguir a vida religiosa como castigo por pretenderem uma vida de estudo para além do ensino básico.
O seminário, retratado por António, é um espaço de nítida angústia e arbitrariedade, marcado principalmente pelas ações e forma de pensar do reitor. O silêncio adquire diversos sentidos: medo, sonho, desejo, intimidade, recusa, revolta e resignação, ocupando a narrativa em muitos momentos e mostrando ao leitor o sofrimento e a visão daquele universo compartilhado pelos garotos. Da casa pobre da família de António, passando pela rica casa de D. Estefânia, o protagonista chega ao seminário, um casarão sombrio onde habitam os mais difíceis traumas e dores.
Relações afetivas
A história do herói vergiliano, António Borralho, se mistura à de personagens como Gama, Gaudêncio, Florentino, Peres, Taborda e Tavares, igualados em seus trajes negros, em suas aparências de corvos. Entre as relações afetivas desses jovens desdobram-se sentimentos, memórias e diferentes maneiras de percepção do momento dividido e experienciado no casarão que é o seminário.
A recusa de António em se tornar um ministro de Deus e o anseio por uma vida livre e repleta de novas vivências marcam sua emancipação espiritual da opressão religiosa e identitária praticada no seminário. Assim, a perspectiva da personagem narradora é da própria experiência, em que procura estabelecer uma visão existencialista do que foi vivido no seminário e que habita a memória.
No recordar tudo, e contar, está também a lembrança de um tempo social e político, apelo e relato de um anseio pela libertação, pelo empreender o conhecimento de si e do outro. A falsa boa educação, a ostentação religiosa, a negação do prazer, do amor e das sensações e por fim a imposição, necessidade e fuga pelo silêncio, da mutilação para poder se libertar (a queimadura que causa a perda de dois dedos do protagonista) são as linhas mestras do romance de Vergílio Ferreira.
Ao longo da história da literatura, não são poucas as descrições e ambientações de escolas e o cenário de clausura e isolamento. O seminário descrito pelo autor é, mais uma vez, um espaço de dor marcado pela história. Os indivíduos formados pela “educação religiosa” do seminário eram homens marcados.
Reflexivo e poético
Jacinto do Prado Coelho, em ensaio sobre a obra de Vergílio Ferreira, comenta da constituição da sua escrita, que mesmo situada no tempo histórico português, especificamente focalizado na ditadura salazarista, aponta para um texto atemporal quando estabelece o fio da vida do protagonista e na narração dos instantes vividos, produzindo um discurso reflexivo e poético.
A nova edição de Manhã submersa é um convite ao leitor para que conheça a escrita de Vergílio Ferreira, e uma das construções narrativas mais interessantes da literatura portuguesa. A metafísica, a consciência da vida, da morte e da liberdade, das cenas claras e obscuras da vida, misturam-se nas memórias de António e revelam a existência de um tempo adoecido pela repressão.