A névoa sobre a cidade

"Satolep", de Vitor Ramil, é um livro quase sem história, podendo ser tratado como coletânea de reflexões, monólogo existencialista
Vitor Ramil, autor de “Satolep”
01/09/2008

O tema da volta às origens não é nenhuma novidade. Tanto faz se a volta implica em retorno à casa paterna ou simplesmente ao lugar de origem. É do ser humano a preservação de suas raízes. Ao longo deste texto, você, culto leitor, encontrará frases de uma das peças teatrais da dramaturga Constança Muñoz, onde ela trata desse tema.

Mas o foco principal é Satolep, mais recente produção literária do também compositor e cantor Vitor Ramil. E por falar em cantor e compositor, sugiro a você, curioso e musical leitor, que ouça o CD Ramilonga, pois, no entender deste aprendiz, Satolep pode ser lido como a continuação da sua composição que empresta o nome ao CD onde está registrada a saída de Vitor de Porto Alegre rumo ao Rio de Janeiro.

…tudo se resume numa palavra: tempo. A dor grita na palavra tempo! O tempo não tem resposta pra nada, tempo é pura dúvida. O tempo passa…passa, não para nem em aniversário de morte. Sendo assim; voltar é acender a dor.

Em Satolep, o fotógrafo Selbor retorna de lugar indefinido para a cidade batizada com o mesmo nome do livro. E aqui um mistério: Selbor não sabe por que voltou. Você pensa que se trata de um enigma simples, básico? Sinto informar que você está equivocado. Recentemente, retornei a Porto Alegre e todos os dias tenho o prazer de admirar o que me fez voltar. Essa certeza é fundamental a qualquer ser humano no gozo pleno de suas faculdades mentais, incluídas as afetivas, é claro.

Selbor desembarca em Satolep no dia de seu trigésimo aniversário e sem demora se reúne com um grupo de artistas que o acompanham na busca de algo indefinido. Integram o grupo vultos históricos como Simões Lopes Neto, Lobo da Costa e Francisco Santos.

Entre personagens reais e fictícios o leitor encontrará o ponto em comum: a ausência da “fotografia individual”. Ramil não apresenta os personagens, não os descreve, valem pelas suas intenções, pelos seus conflitos interiores – o que faz de Satolep um livro quase sem história, apesar de um laivo de romance policial, podendo ser tratado como coletânea de reflexões, monólogo existencialista, um livro de história ou de crítica de arte nos moldes de O que vemos, o que nos olha, de Georges Didi-Huberman. Em Satolep, o autor não descreve seus personagens, descreve a cidade, não se aprofunda na psicologia, nem de Selbor tampouco dos demais coadjuvantes. Simplesmente, analisa a cidade. Não é Selbor o protagonista, é de Satolep esse papel. E como tem nuances a Satolep de Vitor Ramil!

….e agora… agora eu quero voltar para casa. É tudo que eu quero. Voltar pra casa. Não se trata de simplesmente voltar, quero voltar enxergando muito mais que o outro lado da rua…

Satolep, coerente com a obra musical de Vitor Ramil, tem como forte característica a sofisticação conceitual, o requinte na elaboração e a erudição como linha mestra. Isso tanto pode levar determinados leitores às raias do regozijo como também conduzir outro universo de leitores à justificada insatisfação. No entanto, satisfazer gregos e baianos não chega a ser digno de elogios, segundo meu desqualificado juízo. Obra de arte relevante é a que provoca. Entenda como provocação a larga faixa que se estende da praia do questionamento dos costumes, da moral, até a montanha ensolarada da provocação de emoções.

No caso de Satolep uma questão salta aos olhos: a fartura de referências ao longo do texto; frases de João Simões Lopes Neto, Carlos Reverbel, Jorge Luis Borges, Alejo Carpentier, Fernando Pessoa e a presença sutil do filósofo Heráclito de Éfeso. Tais presenças, inegavelmente enriquecedoras, também funcionam como entraves, placas de “parada obrigatória”, ao longo da travessia.

Não, curioso leitor, Satolep está a léguas do que se pode entender como um livro fácil, não tem começo, tampouco meio e fim convencionais, mas não tem mesmo! Considerando que Selbor desembarca de um trem, o começo da história se dá muito antes; no embarque, digamos. O final não existe, lembram de Heráclito: “Tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo”.

…como voltar pra casa sem pisotear no meu lindo passado? Não adianta voltar por sobre os telhados, a sombra também sobe e insiste em perguntar: “você quer mesmo voltar?”

Se essa estrutura de Satolep agrada, e muito, a este rabugento aprendiz, cabe também ressaltar as agruras que livros dessa ordem costumam enfrentar, tanto junto à crítica como também em meio a certos leitores pouco afeitos aos anticonvencionalismos. Importante enfatizar a profundidade filosófica constante desse Satolep, digna de Heidegger, o ser e o tempo, Albert Camus, o estrangeiro, e Emmanuel Levinas, Deus, a morte e o tempo. Isso tudo dentro de um  cenário realista com personagens baudellerianos, a cidade em seu constante ir e vir, e o olhar, aspecto fundamental nessa obra de Vitor Ramil, operando rupturas entre o real e o imaginário. Em Satolep, o olhar do fotógrafo não se detém na superfície das coisas, vai muito além, penetra numa outra realidade. O movimento do olhar revela o sentido transcendente: compreender o real que se esconde atrás do real, o subterrâneo que se disfarça nas alturas. Como uma idéia de vôo, em asas de fortes elementos poéticos, como uma extensão de suas composições, Vitor Ramil narra o embate entre morte e tempo. Entenda-se o “existir para a morte” de Heidegger ou se preferir Aristóteles para quem “o tempo é a quantidade de movimento”.

O olhar de Selbor se multiplica, ora olhos, ora tato e movimentos, sempre. O olhar de Selbor depois da máquina, a máquina que não aprenderá jamais a mentir. A mentir uma imagem, a mentir a cidade, a mentir o tempo… jamais.

…a partir daquele dia, sair, de onde quer que fosse, passou a ser uma rotina sem traumas para mim. Voltar, no entanto, significa, em primeiro lugar, voltar no tempo. E não existe volta triunfal.

Ao final da narrativa, o leitor ganhará alguns enigmas, o maior de todos dirá respeito ao tempo; até que ponto morte e tempo podem ser entendidos como aspectos do ser; como pode o tempo ser um aliado da sabedoria e também responsável pela erosão da memória, do corpo, das vontades?

Selbor retorna a sua cidade natal no dia em que comemora trinta anos de dúvidas. Entenderá Selbor que o tempo não lhe pertence, perceberá com seu afiado olhar de fotógrafo e artista que no rastro do tempo, o homem semeia uma flor marrom?

A atmosfera melancólica da cidade de Satolep contagia a narrativa, não há alegria, humor em seus meandros; sobram incertezas, a névoa sobre a cidade é a dúvida sobre seus habitantes. Satolep é angústia bem-vinda.

Satolep não é um livro qualquer, está muito além da valsa velha que embala nossa atual literatura, mas ao inventar um ritmo, uma milonga, por mais universal que seja, é natural que encontre algumas resistências. No entanto, uma obra desse porte, calcada no emaranhado das questões éticas e estéticas, mais dia, menos dia, será entendida como obra de arte apenas. E o sentido primeiro da arte é aguçar a curiosidade. Sacudir a poeira dos conceitos e do tempo, se assim me faço entender com mais clareza.

Selbor observa a cidade e seus habitantes, sem se dar conta segue a Merleau Ponty, Einstein – “o observador faz parte da observação” -, tudo na vida é triste ou se torna triste quando nos falta coragem a nos impelir a olharmos para o fundo do poço escuro de nossa alma.

Com Satolep nasce uma nova literatura, já anunciada em Pequod e não é nada simples. Como bem diz Vitor Ramil, “nascer leva tempo”.

… e quando você vê pessoas esquece o mundo. Mundo é tempo.

Satolep
Vitor Ramil
CosacNaify
288 págs.
Vitor Ramil
Nasceu em Pelotas (RS), em 1962. Iniciou sua carreira artística como músico, compositor, letrista e cantor na década de 80, tendo gravado seu primeiro disco, Estrela, Estrela, aos dezoito anos. Em 1995, lançou a novela Pequod, publicada também na França em 2003. A obra de Ramil, tanto musical como literária, é marcada pelo imaginário desse “sul extremo” e pela afinidade com as invenções mais radicais da cena artística contemporânea.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho