A nem tão verdadeira vida de Sebastian Knight

Romance escrito por Nabokov em 1941 convida os leitores a cruzar a fronteira entre ficção e realidade
Nabokov por Ramon Muniz
01/04/2011

Há poucos mestres incontestáveis na literatura mundial, daqueles para os quais todos tirariam o chapéu no programa do Raul Gil, mas certamente um deles é Vladimir Nabokov, o autor de A verdadeira vida de Sebastian Knight, recentemente trazido à luz, e às estantes, pela Alfaguara.

Trata-se do nono romance escrito por Nabokov. Seu lançamento aconteceu em 1941, pouco antes do ataque japonês a Pearl Harbour, e talvez por isso tenha passado um tanto despercebido pela crítica na época. Na verdade, Nabokov só iria estourar 14 anos depois, em 1955, com Lolita, que logo se tornou um clássico. Depois deste sucesso, o escritor norte-americano de origem russa finalmente pôde viver apenas de escrever, parando de dar aulas nas universidades dos EUA (1).

O livro é narrado por V., que conta a história de seu meio irmão, o escritor Sebastian Knight. Trata-se, de certo modo, de um livro de detetive, já que temos aqui um personagem em busca da história de outro, o que ele consegue perseguindo pistas, falando com pessoas e indo a lugares que tiveram relação com seu irmão (2).

Do mesmo jeito que Lolita é um longo depoimento a um júri e Fogo pálido é a análise de um poema, aqui temos um livro que não é uma simples narração onisciente em terceira pessoa, mas sim uma peça literária em primeira pessoa e com alguma intenção, no caso, uma nova biografia de Sebastian Knight. (3)

Este é um recurso interessante de Nabokov, um recurso que poderia ser chamado de pós-moderno, pois ele trata o livro como um objeto que está nas mãos do leitor, ou seja, não se trata de uma história narrada por uma espécie de Deus, mas sim por uma primeira pessoa que está escrevendo algo, um algo que você está lendo. Assim há, aparentemente, uma quebra da fantasia. Mas só aparentemente, já que o narrador e o narrado são inventados. (4)

Uma curiosidade sobre A verdadeira vida é que este é o primeiro livro escrito em inglês por Nabokov. Ele foi editado nos EUA, mas não foi escrito lá ou na Inglaterra, e sim em Paris, cinco anos antes. Mais especificamente no banheiro de um quarto de hotel, com o autor fazendo o bidê de escrivaninha, para não atrapalhar o sono da mulher e do filho. Numa prova de que os editores não são perfeitos quando fazem a seleção dos livros a editar, Nabokov ficou três anos tentando publicar seu livro na Europa e nos EUA sem consegui-lo. (1)

Nabokov já era um autor maduro quando escreveu este livro, e já se podem ver suas descrições precisas e quase poéticas, com imagens ricas e que demonstram um pouco da psicologia da cena e do personagem, como, por exemplo, quando fala das delícias de um dia em São Petesburgo (5):

(…) a pura luxúria de um céu sem nuvens destinado a não aquecer a carne, mas exclusivamente ao prazer dos olhos; o brilho das cores dos trenós na neve bem batida das ruas espaçosas com um toque fulvo entre as trilhas devido à rica mistura com estrume de cavalo (…).

Temos nesta descrição o clima feliz, mas nem tanto, da cidade, com seu sol que não esquenta e os coloridos trenós sobre a neve misturada com estrume de cavalo, uma combinação que serve de metáfora do livro, que tenta ver o podre que há sob a cândida e alva aparência das coisas. (6)

Voltando à história, vemos que, durante a investigação de V., ele lentamente vai se aproximando de Sebastian Knight. Começa a pensar como ele pensaria e até se apaixona por quem ele se apaixonou, ao amar a misteriosa Nina. (2)

A prosa é precisa, sem grandes fatos ou aventuras, mas com boas reviravoltas e profunda investigação psicológica. (7)

Como em várias das obras de Nabokov, os personagens principais sofrem certo deslocamento geográfico. N0 caso, os irmãos são dois russos que saem pelo mundo. De certa maneira, eles repetem o que aconteceu com o próprio autor, que nasceu na Rússia, em meio a uma família aristocrata, em 1899. Vinte anos depois, Nabokov teve que abandonar a União Soviética. Terminou seus estudos na Inglaterra, no Trinity College, em Cambridge, licenciando-se em literatura russa e francesa. Em 1923, foi viver em Berlim, mas, por conta dos nazistas, em 37 decidiu ir para Paris e de lá para os Estados Unidos, onde se dedicou ao ensino de língua e literatura russa em várias universidades, como Stanford, Wellesley, Cornell e Harvard. Depois do estrondoso sucesso de Lolita, foi viver em Montreaux, na Suíça, onde morreu em 1977. (8)

Por fim, um dos traços mais interessantes deste romance é que depois de algumas páginas o leitor não sabe mais ao certo o que é verdade e o que é mentira na nova biografia de Sebastian. E a tênue linha que separa a verdade e a mentira é mesmo uma interessante questão, ainda mais no caso desta crítica, pois eu não li A verdadeira história de Sebastian Knight.

Isso mesmo, caro leitor e caríssima leitora, este texto foi um exercício de picaretagem. Apenas passei os olhos pelas sete primeiras e pelas cinco últimas páginas do livro, assim como fazem muitos resenhistas da grande imprensa. Depois, gastei 45 minutos pesquisando na internet sobre o livro e seu autor. Os truques para fazer resenhas sem ler os livros, você pode ler no texto abaixo.

Sete conselhos para escrever uma resenha sem ler o livro
Muitas críticas que você lê hoje na grande imprensa foram feitas por pessoas que não leram a obra em questão por inteiro. Creio que isso acontece por três motivos: pouco tempo, pouco espaço, pouco pagamento. Tomando por base os textos que saíram sobre meus livros, acredito que apenas metade das resenhas é escrita por críticos que realmente leram a obra resenhada.

Portanto, os resenhistas têm que lançar mão de vários truques para compor seu texto. Reparei na repetição de alguns e resolvi fazer um breve manual de Como escrever uma resenha sem ler o livro resenhado.

Vamos aos sete passos necessários para esta não tão árdua tarefa:

1) Se você não leu o livro, uma boa saída é contar várias curiosidades sobre ele e seu autor. Você pode encontrá-las no release enviado pela editora, na orelha e na contracapa do livro, e, é claro, na internet. Colocando várias destas curiosidades, o leitor vai pensar que você é um expert em literatura, um livre docente que defendeu tese sobre o autor em questão.

2) É muito importante você fazer um resumo do livro. Dá a impressão de que você leu todas as suas páginas e conseguiu condensar tudo num só parágrafo. Geralmente o release já traz uma boa sinopse. Caso a editora do livro não tenha uma boa assessoria de imprensa que mande um resumo publicável, é só pedir ajuda de São Google. Porém, se você tiver o azar de ter que fazer a primeira resenha do livro, peça ao próprio autor que lhe conte a história. Lembro que certa vez fiquei mais de uma hora no telefone contando a história de um livro a um jovem repórter do finado Jornal do Brasil. Como sou ruim para contar histórias oralmente, no dia seguinte saiu uma péssima resenha sobre o livro. Mea culpa, mea maxima culpa.

3) Faça comparações com outros livros do autor que você realmente leu. Isso dará mais substância ao seu texto. Eu, por exemplo, realmente li Fogo pálido e Lolita. Caso não tenha lido outro livro do autor, faça comparações com livros de outros escritores. Uma crítica, certa vez, comparou o meu Os vermes com Memórias póstumas de Brás Cubas só porque o livro de Machado é dedicado a um verme. Obviamente, um não tinha nada a ver com o outro, nem quanto a estilo nem quanto à história, a não ser o uso da palavra verme.

4) Coloque algo que pareça uma teoria literária profunda. Não precisa ser, basta parecer.

5) Roubei esta idéia de uma resenha anterior sobre o livro. Não tenha pudor de fazer isso. Só não esqueça de mudar algumas palavras para que o autor do texto não perceba o furto. Por conta deste item, a primeira resenha de um livro é quase sempre a mais importante, pois muitos dos resenhistas futuros vão lê-la e repetir suas opiniões. Principalmente se não leram o livro. Isso constrói uma certa unanimidade em relação ao livro, o que é péssimo.

6) Cite um trecho do livro. É claro que muitas vezes você só vai ter lido justamente aquele trecho, mas o leitor de sua resenha não sabe disso e pensará que você realmente escolheu uma parte especial do livro. Curiosamente, o resenhista que não lê todo o objeto resenhado quase sempre cita e comenta algo das primeiras páginas, as únicas que ele leu. Mas há que se tomar cuidado com isso. Numa crítica recentemente publicada na Folha de S. Paulo, por exemplo, o resenhista falou algo sobre a paternidade de um personagem de certo livro, informação dada no primeiro capítulo da obra. Se ele tivesse lido o segundo capítulo, saberia que o pai do personagem era outro. Ou seja, o melhor é fazer alguma afirmação neutra e colocar o trecho, sem se arriscar demais.

7) Quanto tiver que opinar, apenas repita o senso comum que há sobre este autor. Por exemplo, se a resenha é sobre o Luis Fernando Verissimo, diga que ele é engraçado; se é sobre Rubem Fonseca, fale que seu estilo é seco; se é sobre Dalton Trevisan, declare que ele é o rei da concisão.

8 ) Outro truque básico é contar a biografia do autor. É claro que na maioria das vezes ela não interessa nem um pouco à história, nem fará você gostar mais do livro ou entendê-lo melhor. Mas ajuda a encher o espaço. Além disso, também é uma forma do jornalista contar uma narrativa, pois, já que não conhece bem a história contada pelo livro, pelo menos conta a vida de seu autor.
Enfim, deixo aqui aos futuros resenhistas a minha humilde contribuição. Que talvez também tenha alguma utilidade para os leitores.

A verdadeira vida de Sebastian Knight
Vladimir Nabokov
Trad.: José Rubens Siqueira
Alfaguara
195 págs.
Vladimir Nabokov
Nasceu em 23 de abril de 1899, em São Petersburgo, na Rússia. Em 1919, para fugir da Revolução Russa, sua família mudou-se primeiro para Londres e depois para Berlim. Após completar seus estudos em Cambridge, Nabokov passou a morar entre Berlim e Paris. Em 1940, abandonou a França para morar nos Estados Unidos. Sustentou-se inicialmente com aulas de literatura em Wellesley e Cornell, e abandonou o russo para escrever em inglês. A partir de então, publicou os livros que o consagrariam como um dos mais importantes romancistas do século 20: Lolita (1955), Pnin (1957) e Fogo pálido (1962). Escreveu também contos e ensaios, traduziu obras de Liermontov e Púchkin e verteu seus primeiros romances para o inglês. Faleceu na Suíça, em 1977.
José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. Também é autor de livros de não ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionário amoroso.

Rascunho