“Quando certa manhã Gregório Samsa despertou, depois de um sono tranqüilo, achou-se em sua cama convertido em um monstruoso inseto”, depois disso, irreversivelmente transformado, os leitores aos poucos se familiarizam com o personagem de Kafka e acompanham sua vida de inseto. O estranhamento existe apenas no primeiro momento. Imediatamente depois, tem-se por um fato que o personagem é um inseto. João Gilberto Noll, movido pela estética kafkiana, opera em seu personagem uma transmutação, uma transformação surreal — e, de quebra, carrega o leitor para um mundo delirante e insano, transformado pelo contundente Lorde.
Também capaz de uma transformação objetiva é o conto de Júlio Cortázar “Axolotl”, no qual um homem encanta-se pelos axolotls — uma espécie de salamandra — e visita o aquário público muitas vezes e com muita insistência. Até o dia em que percebe que na verdade é um axolotl, que sua fixação o transformou numa dessas salamandras e, sob o ponto de vista delas, observa um tal homem que sempre as vem admirar. O conto permanece aberto, e a mudança cíclica de narrador, ora homem, ora salamandra, aponta para a fragilidade da existência.
O momento da transformação no novo livro de João Gilberto Noll é o clímax da narrativa, e, muito à sua maneira, ocorre por meio de um ato sexual frenético. Noll, dando um exemplo de técnica narrativa, busca um Deus ex machina, que encerra o romance deixando o leitor completamente perplexo. Tentando seguir as lições do premiado autor gaúcho, fica no final desta resenha o grande desfecho. Suspense.
O narrador de Lorde, um escritor de cerca de 50 anos, recebe um convite de uma universidade londrina para passar uma temporada na capital inglesa e cumprir uma misteriosa missão. Sem pestanejar, embarca e segue viagem até seu incerto destino. É recebido pelo inglês responsável por sua jornada e lá fica algum tempo, numa casa cedida pela instituição, recebendo uma bolsa suficiente para cobrir suas despesas. Algum tempo depois, imbuído por um constante delírio, o escritor brasileiro foge de Londres, pratica um furto e se transforma num ex-estivador.
Esse rápido resumo do enredo pode parecer vago demais: não há um só nome, nenhuma explicação ou relação de causalidade. É exatamente esse, entretanto, o teor do livro. Como na vida real, muita coisa não se explica. Os fatos se sucedem — bons, ruins, claros ou obscuros. Sempre sem o manual de instruções. Não que a narrativa seja hiper-realista — pelo contrário. Há nela tanta insanidade, esquizofrenia e delírio, que se assemelha mesmo à realidade, porque de tanto se afastar do que se pode chamar de irreal, novamente se aproxima do real.
Essa aura de delírio é absorvida pelo protagonista narrador na mesma medida em que emana dele, de um modo capaz de perpetuar a supra-realidade. Para Noll, o delírio é um grande símbolo de fraqueza, que pode ser percebida tanto pela debilidade física quanto mental. Esse traço é muito marcante em Lorde. Exemplo disso é que o protagonista é recorrentemente apontado como fraco; tem sua saúde muito sensível, anda aos tropeços, cai várias vezes — inclusive em lugares públicos, o que o leva a recorrer ao auxílio de desconhecidos. Numa das passagens mais absurdas, o narrador é levado para um hospital sem saber o motivo de sua internação. Lá permanece desacordado, sedado, insano por um tempo desconhecido, até que num átimo de coragem que lhe resta no fundo dos bolsos, foge. Num delírio, pensa ter deixado a si mesmo no hospital e fugido como outra pessoa. A fuga, em sua carne ou outra, é um ato de coragem, que, diga-se, está mais do que eivado de covardia. Mas levado por qualquer dos paradoxais sentimentos, foge.
A temática da fuga, aliás, é também bastante explorada — já pelo simples fato de o autor gaúcho ter aceitado a viagem-surpresa fugindo não só de sua casa como também de seu país. Indica também a sede de exilar-se de si mesmo. O narrador se questiona: “Por que eu era o homem que vivia a fugir?”. E é isso que faz em Londres todo o tempo. Nos primeiros momentos em que está na cidade deseja desesperado um espelho, quer ver quem é ele mesmo, como é sua fisionomia. Mas não se agrada e decide escapar de sua própria figura. Procura uma loja de cosméticos e compra um pó compacto, minuciosamente escolhido para que não destoe do tom da pele. Um tempo depois (tempo esse impossível de precisar, como em todo o romance, graças à subversão da apreensão do tempo vivida pelo narrador), resolve cortar os cabelos e, mais que isso, escolhe um tom castanho claro para tingir suas madeixas, assumindo como que uma nova identidade, novamente. Pactua consigo mesmo que não mais buscará sua imagem no espelho, e chega ao extremo de, estando hospedado num luxuoso hotel, em uma suíte repleta de espelhos, cobri-los com os lençóis da macia cama.
Uma imagem escatológica também se associa à do protagonista, muito embora ele busque purgar-se, e talvez até através dessa tentativa de liberação e limpeza: o vômito. Da mesma maneira que o Lorde — assim chamado pelo ilusório glamour de ser um escritor de sucesso, a quem Deus deu sete livros — anda cambaleante, literalmente fraco das pernas, também em todo momento vomita. Anda na rua e vomita, deita-se e vomita, vomita em jorros que desejam libertar-se e libertá-lo. Vomita e permanece com a boca suja da gosma tal qual quisesse aceitar de todo modo a parcela de si mesmo que seu próprio corpo expulsa.
Pela fechadura
Como acontece em outros livros de Noll, há no enredo certa coincidência de fatos que ocorreram com o personagem quase que simultaneamente ao autor. Em seu penúltimo romance, Berkeley em Bellagio, o narrador é um escritor que viaja para lecionar literatura brasileira — assim como ocorreu ao próprio Noll. Quanto a essa última obra, Lorde, as identidades são inúmeras: ambos, criador e criatura, são escritores brasileiros (especificamente gaúchos), com pouco mais de 50 anos, que saem do país a convite de uma universidade estrangeira para uma temporada de novos projetos. A respeito dessa similitude e possível exposição, o autor declara: “Não é pouco comum nas coisas que fabrico, porque estou muito aberto ao momento, às coisas que estão acontecendo”.
Então, para quem gosta de espiar pelo buraquinho da fechadura da porta um alerta: as tantas aventuras sexuais vividas pelo personagem-título podem ser o exato ponto em que começa a ficção. Podem ser. E como de costume não são poucas, nem deixaram neste Lorde de ser apimentadas, fazendo jus ao que Alfredo Bosi escreve em sua (já nossa!) História concisa da Literatura Brasileira, ao se referir ao genial escritor gaúcho. Vale a transcrição pela precisão do teórico: “O essencial da escrita acompanha os movimentos dos corpos que se atraem ou repelem em um clima de delírio: penso na prosa de João Gilberto Noll riscando com estilete o desenho pesado da sexualidade do nosso urbanóide”.
Fim do suspense. É hora do momento esperado. O sexo em Noll é cru, abrasivo, cáustico. Nada de belos corpos femininos, esbeltos e lânguidos em macios lençóis de cetim à meia-luz. Ao contrário, jatos quentes de esperma áspero. O cenário pode ser um banheiro, e o parceiro pode estar cercado por cenouras, beterrabas e louros. É assim, por exemplo, no episódio em que, ao visitar um professor que estudava sua obra, o anfitrião avisa que entrará no banho, mas não deseja que seu convidado fique a ver navios enquanto o espera, então o convida a acompanhá-lo durante o ato. Enquanto se despe e se prepara para o sagrado ritual de limpeza, o visitante senta no vaso sanitário e imagina aquele corpo ainda em forma cercado pelos vegetais. Acredite: há nisso muita sensualidade.
E em que pese esse seja um momento já muito interessante, o doce fica ainda guardado para o final, para que o leitor se delicie e guarde o gostinho na boca por muito tempo, mesmo finda a epopéia desse anti-herói. Depois de fugir de Londres, já em Liverpool, o protagonista sai para beber e conhece um sujeito, George, corpo torneado pelo trabalho pesado no cais. Conversa vai, conversa vem, vão ao hotel em que Lorde está hospedado — é quando o surpreendente desfecho tem sua hora. O estivador, em cujo forte braço há uma tatuagem — um sol e seus raios — troca secreções, suores e sensações com o protagonista. Mas não é só isso. Durante o sono, trocam também de identidade, numa cena cheia de significados. A narrativa, então, passa a ser conduzida pelo homem que leva a tatuagem no braço, apesar de ele continuar sendo, do ponto de vista subjetivo, o próprio Lorde. Ao passo que George assume o corpo do protagonista e, provando da necessidade de liberdade que aquele corpo possuía, foge. Lorde, por sua vez, demora a se reconhecer. Não compreende os bíceps inchados e o corpo com resquícios da aventura amorosa da noite anterior. Ao reconhecer a tatuagem, enfim percebe: aquele agora era o seu braço.