A música que nos protege

Por meio da música, "Os primeiros", romance de Ricardo Prado, passeia pelo Brasil do final do século 18
Ricardo Prado, autor de “Os primeiros” Foto: Keiny Andrade
01/04/2024

“No princípio era o ritmo”, dizia e repetia o jovem Maurício. Mais adiante saberemos que se trata de José Maurício Nunes Garcia, um rapazola, mas que viria, mais tarde, a se tornar o grande compositor que assombrou, com sua música, a corte de D. João VI.

Os primeiros, de Ricardo Prado, é um romance volumoso que, com 839 páginas, paginação maior do que de costume, fonte menor — também fora dos padrões editoriais de hoje —, conta a história do Brasil desde a última metade do século 18 até meados do 19, quando a nação já é independente. Colocando em destaque artistas que fundaram a arte no Brasil, como, além do músico citado acima, o poeta árcade Silva Alvarenga, o escultor Aleijadinho, Mestre Valentim, Ataíde e a cantora Lapinha, quase todos afrodescendentes, incluindo as mulheres.

O livro, iniciado por um prólogo, é dividido em oito partes, cada uma terminada por um monólogo que o autor chama de memória. Neste, D. Maria, rainha de Portugal, num delírio muito lúcido, arremeda suas conjecturas sobre o destino do reino português e de suas colônias.

No final, após a oitava parte, há um capítulo chamado coda, que encerra a narrativa. Lembrando que tal palavra, na música e na dança clássica, significa a passagem final de uma peça ou de um movimento, é ainda um sinal que permite substituir uma frase suspensiva por uma conclusiva. No caso do romance, logicamente, refere-se ao desfecho.

Trata-se de uma obra de fôlego que custou ao seu autor sete anos de trabalho. O grande lance do livro é que pode ser chamado de uma obra musical. Muitos poderão perguntar: como um romance pode ser musical, se a função da narrativa é contar uma história? Nada mais límpido do que as proezas possíveis oferecidas pela literatura. O autor consegue nos explicar o percurso rítmico e melódico de cada gênero musical quando se refere às composições.

Às vezes, em meio a um mundo tão utilitário e mergulhado nas raias tecnológicas até o pescoço, com o predomínio de telas e imagens, um livro como o de Prado vem nos chamar atenção para a necessidade da literatura.

Galeria de personagens
No começo, o romance nos transporta para o cenário musical do Rio de Janeiro do final do século 18, onde acompanhamos o talentoso José Maurício Nunes Garcia. Nessa parte, somos imersos nas ruas movimentadas da cidade ainda colonial, povoada por escravos (negros de ganho) e mulheres a vender e a lavar roupa, em busca de sobrevivência. O músico tenta cumprir compromissos compondo variados tipos de música que acompanham missas e outras cerimônias religiosas. Por incrível que possa parecer, a Igreja Católica era a fonte de sobrevivência de muitos compositores e instrumentistas do período. Pouco a pouco, ele consegue convencer a todos da beleza da sua música e da sua obra, que não fica em segundo plano quando comparada aos melhores compositores europeus que praticavam o mesmo estilo. É bom lembrar que a sociedade em que ele vivia estava em verdadeira transformação.

Dentro desse contexto, somos ainda apresentados a uma galeria de personagens nobres e influentes do período, incluindo os religiosos, como padres importantes e bispos, cujas vidas se misturam aos acontecimentos da época e à vida de outros personagens, como músicos, pintores, escultores e poetas. Ambições de tais personagens, intrigas e relações complexas delinearão o cenário político e social do Brasil colônia, proporcionando um panorama das elites e de suas intenções. Há aqui o aparecimento de José Bonifácio, que, ainda garoto, deixa a baixada santista para subir a serra a São Paulo com o pai, o objetivo é conquistar o saber que o levará a ações importantes para a futura independência da nossa nação. Vejamos o trecho:

— Cuide-se, José! Proteja-se do frio e da chuva. Atente aos perigos da serra! Cuidado com as mulas! E não te esqueça de rezar! — Dona Maria Bárbara gritava, aos prantos.

Mais adiante, quando a comitiva começa a desaparecer de sua vista, a mãe ainda acrescenta: “— Ai, e ele lá vai…”

José parte, não em definitivo, mas é o começo de uma viagem que, no futuro, o levará muito longe.

No âmbito mais amplo da narrativa, o livro aborda a presença marcante da Coroa Portuguesa, seu mecenato cultural, especialmente no que diz respeito à música. Somos então conduzidos pelos salões palacianos, onde compositores portugueses (quando a corte ainda não deixou Portugal) ganham destaque, trazendo consigo as influências europeias, sobretudo, a italiana, contribuindo para a efervescência cultural da época.

Uma observação à parte, como personagem literário e, ao mesmo tempo, histórico, é a presença de Dona Carlota Joaquina, e sua influência no comportamento do futuro rei D. João VI. O trecho nos leva aos bastidores do poder, onde as manobras políticas e os jogos de interesse se entrelaçam com os dramas pessoais da realeza, revelando uma dinâmica capaz de causar impacto nos destinos do Reino de Portugal e de suas colônias, incluindo aqui, é lógico, o Brasil.

O livro, no entanto, não é apenas isso. Para um romance de tal porte, qualquer tentativa de explicá-lo implicaria num reducionismo que o empobreceria. Devido à tamanha complexidade da trama e revelação de detalhes, é um livro para se ler com vagar, é preciso tê-lo na estante próximo às nossas mãos e olhos, pronto a ser aberto a qualquer momento, e para ser lido durante a vida inteira.

O acerto principal da obra está na sua narrativa, que se poderia classificar de fragmentada, trazendo grande parte das histórias intercaladas, com saltos geográficos que tanto as ilustram. É esse tipo de narrativa que dá coerência ao todo e se torna capaz de revelar, senão toda, grande parte da história da época. Trata-se de um livro que privilegia os humildes e os humilhados, proporcionando-lhes uma magnitude que só o gênero romance é capaz.

Os primeiros
Ricardo Prado
Editora da Ponte
839 págs.
Ricardo Prado
É escritor, compositor e regente. Nos últimos anos, escolheu dedicar-se exclusivamente à literatura e à educação, tendo a música como sua temática.
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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