A música do devir

A sinfonia do tempo, de Daniel Mazza, pode ser lido como um poema único ao abarcar o ser e a finitude.
Daniel Mazza Foto: Divulgação
06/04/2015

Como no mês passado escrevi neste Rascunho acerca da obra de Ivan Junqueira, e por colocar agora em pauta o novo livro do jovem poeta cearense Daniel Mazza, será útil iniciar destacando nos dois autores aspectos de familiaridade literária. Em ambos há um requintado princípio de composição poética, pelo que os poemas, via de regra, se escrevem em forma fixa, prestigiam o vocabulário culto e fazem referências a personagens da “grande História”, sejam bíblicos ou mitológicos. Também em ambos é predominante a temática da morte, a figurar ubíqua, estoica e peremptória diante dos homens. Ambos, pela composição erudita, não aparecem com destaque nos discursos críticos sobre a literatura da contemporaneidade, mesmo que ambos sejam magníficos poetas.

Uma vez que o novo trabalho de Daniel Mazza — A sinfonia do tempo — traz como subtítulo a legenda primeiro livro de filosofia, dá-se entre o recente vate do ceará e o falecido poeta carioca outro item de parentesco artístico: a propositada comunhão de poesia e filosofia no espaço textual prioritariamente consagrado à primeira. Tal consórcio também foi explorado por Ivan Junqueira, uma vez que em 1977 publicou o livro-poema Três meditações na corda lírica, obra extraordinária como projeto e realização, que estampa versos desse teor: “Raiz de fogo e água e ar e terra,/já não te reconheces nesta esfera,/onde amor aglutina e ódio esfacela,/já não te sabes quem, nem se o que eras/foi mesmo tu, ou só fluida promessa/de um tu que em ti, além, ainda te espera”. Na ocasião em que foi publicado, o livro recebeu resenha de Álvaro Mendes — Um poema longo para ser lido e discutido —, publicada no caderno Livros, de O Globo, em 29 de maio daquele ano. Em seu texto, Mendes apontou o que entendia como impertinências da obra, das quais destaco duas: a longura (cento e setenta e seis versos) e a expressão de um poetar filosofal. Sintetizando a restrição, disse o crítico: “Em língua portuguesa, poemas longos reflexivos são raríssimos”.

O leitor interessado verá, pela direção do texto — reproduzido na Poesia reunida (2005), de Ivan Junqueira —, que o “raríssimo” em questão possui caráter qualificativo, buscando dizer que na literatura “lusógrafa” poemas de tal natureza são árvores minguadas, sem frutos marcantes. Considerando a época em que escreveu, nota-se que Álvaro Mendes ignorou, dentre outras, obras como Opiário, de Fernando Pessoa-Álvaro de Campos, A máquina do mundo, de Drummond, Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, e Poema sujo, de Ferreira Gullar. Ignorou também que é meritório o esforço para a prática de algo pouco usual, e que as coisas maiores, por estourarem o monótono da convenção, pertencem ao raro, e não ao banal.

Coesão da forma
Ainda que dividido em duas partes, sendo a primeira — Diálogo — composta pelos poemas O morto, O coveiro e A morte, e a segunda — Monólogo — constituída do solitário Silêncio, A sinfonia do tempo, de Daniel Mazza, pode ser lido como um poema único, tamanha a coesão de sua forma e do desdobramento de sua questão central, envolvendo o ser e a finitude. Assim, o poema, com suas cento e cinquenta e quatro oitavas, totalizando mil duzentos e trinta e dois versos, é inegavelmente longo. Também inegável é seu espírito filosófico, algo esclarecido já pelo mencionado subtítulo, por algumas de suas metáforas — “Ser coveiro é ser filósofo,/E filosofar com as mãos” — e pela parte final do livro, quando, de acordo com o poeta Alexei Bueno (em prefácio), “o pensamento puro se sobrepõe à metáfora”. O asserto se confirma por, dentre outros, os seguintes versos: “A via da verdade, o ser/Uno, pleno e infinito./O ser uno de Parmênides/Apreendido por Melisso./O ser uno de Parmênides,/O infinito de Melisso,/O ser-verdade, o real,/O ser-tecido-princípio”. Aliás, em posição diferente da de Álvaro Mendes, Alexei Bueno faz melhor juízo da poesia agora explorada por Mazza, de cujo livro o subtítulo

marca, de forma explícita, a ligação do autor a uma longa genealogia da poesia de pensamento em nossa língua, uma família que vem de Sá de Miranda e muito especialmente de Camões para, passando por Antero de Quental, Augusto dos Anjos e Fernando Pessoa, entre muitos outros nomes, chegar até nossos dias. A expressão poesia de pensamento não é nem um pouco feliz, pois todas o são de uma maneira ou de outra, mas acreditamos que fica evidente para o leitor tratar-se daquela que se debruça de maneira mais ostensiva sobre o mistério insolúvel do Ser, o que a irmana, apesar dos processos radicalmente diversos, com a Filosofia. De qualquer maneira, é sempre bom lembrar a simbiose que existia entre poesia e Filosofia no momento inigualável do nascimento do pensamento ocidental na Grécia, quando todos os filósofos vazavam seu pensamento em versos.

Mas, da Grécia arcaica para o aqui e agora, um propósito dessa envergadura carrega o risco de se efetivar duplamente infeliz, pois ao priorizar em seu fazer algo que em tese não é de seu domínio, o poeta poderia terminar com um arremedo de filosofia e uma retórica em versos, não propriamente poética. Entretanto, Daniel Mazza, poeta embrionário em Fim de tarde (2004) e sólido em A cruz e a forca (2007), esclarece, no posfácio, que a concepção do livro derivou de intensa procura por respostas a questionamentos centrais em sua existência, a partir do que “(…) a minha busca para compreender a natureza da realidade, agora vislumbrada sob nova perspectiva, passou a concretizar-se em versos, via de expressão com que procuro, de algum modo, superar minha congênita dificuldade para o discurso em prosa, gênero próprio e largamente empregado para o trabalho filosófico”. A concretização referida pelo poeta assim faz seu anúncio inaugural: “— Os muros de um cemitério/Não são inúteis, não são:/Lembram paredes de casa/Aos que vêm junto ao caixão./Por isso são muros brancos/Como os de uma habitação:/Lar onde os vivos dormissem,/Mas enterrados no chão.//Por isso são muros brancos:/Um branco de ossos caiados,/Um branco de muros pálidos,/De muros ossificados./Por isso são muros brancos,/ De ossos que estão irmanados/ À pedra branca, que é o osso/Dos muros esbranquiçados”.

Destaquei, no início, o requinte da arte poética de Daniel Mazza. Acerca disso, é curioso notar, no livro de agora, que o poeta altera o metro por meio do qual já declarou se expressar com maior propriedade. Falo da substituição do decassílabo pelo heptassílabo, empregado exclusivamente n’A sinfonia do tempo. O fato é curioso e adensa a originalidade obra, uma vez que a redondilha maior é conhecida como verso popular, apropriado ao cancioneiro comum, e aqui figura como alicerce de uma voz poética plena de matrizes clássicas e que aprofunda seu teor erudito no momento em que se abastece do saber filosófico. Isso dá alguma medida da envergadura desse grande livro, em que a grande poesia fala sinfônica e silenciosamente:

Porque o silêncio é a voz
Viva de um morto mudo.
O silêncio é a voz do morto
E também a voz do luto.
O silêncio é a voz do morto
E de tudo mais que é mudo.
O silêncio é a voz do menos,
Do que não-é, do não-tudo. 

A Sinfonia do Tempo
A sinfonia do tempo: primeiro livro de filosofia
Daniel Mazza
Escrituras
88 págs.
Daniel Mazza
Nasceu em Fortaleza (CE), em 1975. É médico e poeta. Publicou Fim de tarde (2004) e A cruz e a forca (2007).
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho