A mulher e a cidade

"Uma mulher singular", de Vivian Gornick, tem Nova York como personagem principal
Vivian Gornick, autora de “Uma mulher singular”
01/11/2024

Uma mulher singular (2015), de Vivian Gornick, é considerado a sequência de Afetos ferozes, publicado em 1987 e eleito pelo New York Times o melhor livro de memórias dos últimos 50 anos. Gornick é conhecida pelo seu ativismo feminista de longa data e além das duas obras aqui mencionadas, de caráter autobiográfico, pela sua escrita ensaística. Em 2023, recebeu o prêmio Hadada da Paris Review pelo conjunto de sua obra e sua “contribuição excepcional para a literatura”. Lydia Davis, Jamaica Kincaid e Philip Roth, entre outros, também já foram contemplados com o mesmo prêmio.

Gornick está com 89 anos e — assim como Afetos ferozesUma mulher singular também se apresenta como um livro de memórias. Ambos coincidem no tema da importância essencial da cidade de Nova York na vida da escritora. O primeiro, no entanto, é bastante focado na relação de Gornick com a mãe e nas implicações dessa vivência conturbada na formação de sua personalidade. Sua mãe também está presente em Uma mulher singular, mas apenas de forma episódica, já que o centro deste livro é a própria cidade e as experiências vividas ali. Ainda assim, uma cena da infância com a mãe é descrita em detalhes como o exemplo de uma lembrança traumática. A sensação de não ser valorizada pela mãe, outro assunto abordado em Afetos ferozes, também é retomado enquanto memória. O foco do relato, contudo, agora é outro. Gornick submerge na vida novaiorquina e a cidade é sua maior companheira.

Flânerie
Em seu estudo sobre Baudelaire, Um lírico no auge do capitalismo, Walter Benjamin analisa como a explosão demográfica que ocorreu principalmente em Paris no século 19 modificou a relação entre as pessoas. Em determinado momento do livro, Gornick retoma esse estudo para explorar o conceito do flâneur, característica definidora de Uma mulher singular:

Foi em Baudelaire que se desenvolveu a ideia do flâneur: ou seja, a pessoa que perambula sem destino pelas ruas das grandes cidades, num contraste estudado com a atividade apressada e voltada para objetivos definidos da multidão. Para Baudelaire, o flâneur se metamorfosearia no escritor do futuro.

O trecho surge na metade da obra e, nessa altura, o leitor já entendeu que o livro caminha enquanto a escritora perambula pelas ruas de Nova York:

Por muitos anos andei perto de dez quilômetros por dia. Eu andava para clarear a cabeça, para experimentar a vida das ruas, para dar fim à depressão das tardes. Durante aquelas caminhadas, devaneava incessantemente.

A presença da cidade na vida de seus protagonistas marcou muitos romances modernos tornando-se um elemento essencial de sua própria estrutura. Para ficar apenas na língua de Gornick — a inglesa —, dois exemplos paradigmáticos são a Dublin de Ulisses, de James Joyce, e a Londres de Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf. Apesar de não ser classificado como um romance, em Uma mulher singular, a maioria das reflexões de Gornick é disparada a partir da observação de seu entorno, transformando a cidade em um elemento definidor de sua experiência. Conversas na farmácia, com moradores de rua, situações vividas no transporte público e encontros ao acaso vão costurando o pensamento da escritora sobre sua vida na cidade, as fases pelas quais passou, desejos e decepções. A mudança na percepção dos espaços e no comportamento das pessoas a partir dos bairros que se frequenta também não escapa à análise da autora. Diálogos ouvidos ao léu transmitem com fidelidade a experiência da vida urbana, evocando pensamentos a partir da fala de alguém com quem cruzamos e que num instante, já desapareceu. Toda essa variedade é pontuada pelas conversas da escritora com seu amigo Leonard, personagem mais constante no livro, contraponto para conversas mais sérias e sempre com um toque de humor. É com Leonard que o livro começa e termina.

Solidão e liberdade
O tema da amizade é recorrente na obra, não apenas com relação a Leonard, mas também nos diversos episódios em que ela reflete sobre os antigos amigos do Bronx, bairro onde morou na infância e adolescência, sobre os amigos que fez na vida adulta e sobre o papel de laços que se formam e se desfazem dependendo do nosso momento de vida. A busca pelo amor ou por um companheiro “ideal” também perpassa alguns trechos do livro, apresentando e ao mesmo tempo colocando em xeque algumas concepções da escritora a partir de sua vivência com os homens. Sua trajetória enquanto feminista e as mudanças no papel da mulher na sociedade também surgem sob escrutínio. É interessante observar como Gornick se refere a personagens femininas (literárias ou teatrais) para fazer análises de comportamento:

O problema, tanto em Middlemarch como em Retrato de uma senhora, era a protagonista — bonita, inteligente, sensível — confundir o homem errado com o homem certo. Enquanto problema, para nós a situação era inteiramente razoável. Era uma situação que víamos acontecer todos os dias da semana. Entre nós, havia jovens mulheres com graça, talento e beleza associadas, ou em processo de se associar, a homens limitados em mente e em espírito que haveriam de arrastá-las para baixo. A perspectiva de um tal destino nos assombrava a todas. A ideia de que pudéssemos vir a ser mulheres assim nos fazia estremecer.

A importância da arte em geral (não apenas da literatura) como um gatilho para a análise de sua própria condição emerge como elemento essencial no percurso da autora em diversas passagens do livro. Outro trecho marcante nesse sentido é sua reflexão sobre Nova York após o 11 de setembro. Para alguém cujo maior prazer é caminhar pelas ruas novaiorquinas, é possível imaginar a desolação e o medo após o ataque terrorista. Gornick descreve a sensação de caminhar em uma cidade vazia, fantasma e terrível, como se estivesse em uma “cena de outro tempo”. A imagem a transporta para os romances europeus do pós-guerra:

Quando a experiência humana perde a escala e há uma ameaça de fim da civilização, só verdades cruas resolvem; e eu vinha encontrando verdades cruas gravadas na prosa minimalista dos romancistas franceses e italianos das décadas de 1950 e 1960.

Novamente, a literatura é o ponto de apoio a partir do qual a escritora busca refletir sobre sua realidade. É importante destacar que o livro foi publicado em 2015 e, portanto, antes da recente pandemia que assolou o mundo alterando completamente a vida nas cidades e as relações entre as pessoas. Ficamos sem saber como Gornick viveu este momento, pois o livro não o abarca.

Apesar de a escritora conhecer muita gente em Nova York, o que o livro sugere é que, andando nas grandes cidades, somos anônimos e podemos estar abertos a novas percepções e experiências. Em Uma mulher singular, tais experiências são o motor da reflexão da autora sobre sua vida. Essa abertura para a cidade também é uma das atitudes do flâneur e parece estar na essência de Uma mulher singular. No caso do livro de Gornick, o comportamento se alia a um amor intenso pela própria cidade, vista como a grande companheira de uma mulher que valoriza a solidão e a liberdade.

Uma mulher singular
Vivian Gornick
Trad.: Heloisa Jahn
Todavia
144 págs.
Vivian Gornick
Nasceu em Nova York (Estados Unidos), em 1935. É autora de diversos livros de ensaios e ficou conhecida como uma das vozes mais importantes do feminismo nos Estados Unidos desde que começou a escrever para o jornal independente The Village Voice, em 1969. Seu livro mais conhecido é Afetos ferozes (1987, publicado pela Todavia em 2019), eleito pelo New York Times como o melhor livro de memórias dos últimos 50 anos.
Lívia Bueloni Gonçalves

É doutora em Teoria Literária pela USP, professora de literatura e tradutora. Autora do livro Em busca de Companhia: o universo da prosa final de Samuel Beckett (Humanitas/Fapesp, 2018)

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