A morte e a palavra

Resenha do livro "Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite", de Fal Azevedo
Fal Azevedo, autora de “Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite”
01/03/2009

Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite, de Fal Azevedo, é um livro surpreendente, de fácil leitura, sem que isso signifique superficialidade. Muito pelo contrário: o conteúdo é corrosivo e conduz à reflexão. Esse é um dos tópicos a se avaliar a boa literatura, se conduz ou não à reflexão.

Alma, 44 anos, artista plástica, é a narradora; esbanja sensibilidade e humor para tratar, acima de tudo, da morte. A morte além de uma presença; uma tentação. A relação da palavra com a morte é um dos aspectos mais valiosos no livro. Alma perde a irmã, o pai, o padrasto, a filha, porém mais importante e significativo que a morte é o período seguinte, aquele que nos faz ansiar por uma volta no tempo. “Quando minha filha nasceu , eu não gostava dela. Eu tinha 32 anos e não gostava de ninguém. Ela era feia e enrugada e chorava. Deus, como ela chorava. Eu não sabia o que fazer com ela nem como fazê-la parar de chorar. Eu não sabia como amá-la. Eu não a queria no meu colo”.

Filha enterrada, novamente Alma com a palavra: “Se eu fui uma boa mãe? Eu fui a mãe que pude ser, que soube ser, não a que ela merecia, como todas as mães que conheço, quer elas admitam ou não. Não fiz o suficiente. Nunca. Eu poderia tê-la beijado mais, sido mais paciente, acordado mais cedo, lido mais histórias e brincado mais de casinha. Eu deveria ter sorrido mais e dado mais colo, ao invés de ter as minhas ressacas mal-humoradas todas as manhãs. Era minha obrigação fazer daquela menina uma menina feliz. Era minha obrigação fazer seu mundo mais seguro. E eu falhei”.

O que nos resta após um sepultamento? No mais das vezes, a culpa.

Morte e culpa, convenhamos, não são ingredientes dos mais festivos. Não estivessem sob o talento de Fal Azevedo, o produto na certa traria o perfume da amargura.

Alma é torturada pelas lembranças e a dualidade romântico-naturalista se faz notar ante as reflexões da narradora que deixa transparecer estar ciente de que a visão do ser humano há de ser sempre uma visão da crise. Sabe também que tanto causa como efeito de todas as tragédias dependem da ação do homem. E a lâmina dessa certeza fustiga Alma do início ao fim.

A obra de Fal Azevedo permite refletir sobre variado conjunto de temas, que vão do literário ao político; da valorização sensível e crítica das coisas de um modo geral a uma consciência delicada e complexa a respeito da condição humana, constantemente à mercê da paixão.

A narrativa de Fal Azevedo é densa, bem-humorada, tensa e sombria, sem que isso signifique depressiva. A leitura de Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite é um passeio em noite de lua cheia com alguns relâmpagos, como os que seguem, nos quais pensamento e prosa se unem e beiram o aforismo. “Meu pai se sentia tão desprotegido quanto um lobo sozinho. Freud teria adorado a família toda, isso sim.” “Vi o bebê no berçário, tive uma crise de choro, e disse que não queria morar com ela.” “Um dia eu vou fazer sentido.”

Impossível o leitor não se deixar invadir pela tristeza, uma tristeza de história em quadrinhos, uma tristeza inevitável, mas que na página seguinte poderá se transformar, não arrisco em alegria, mas em mansidão sem dúvida. A tristeza que Fal apresenta ao leitor não é de assustar, é nossa tristeza do dia-a-dia, a inevitável, desde que não se trate de um idiota ou quem sabe um débil mental.

Não se percebe o onírico na narrativa de Fal Azevedo, mas a denúncia, a fantasia, a inquietação, as turbulências advindas do risco de tentar combater as situações comuns do cotidiano. A autora afronta o senso comum, se exige o riso, não tolera o riso excessivo nessa nossa interminável morte que é o viver.

Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite
Fal Azevedo
Rocco
204 págs.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho