Assisto ao vivo e a cores (como se dizia na década de 70) à morte de uma segunda livraria. Agora a do Joaquim, a Guerreiro. A primeira foi a minha própria, que faleceu em meus braços, agonizante, e eu esperando até o último instante por um milagre que não veio, apesar de os meus amigos terem organizado uma cooperativa na tentativa de evitar o fechamento da Eleotério.
Um advogado e um consultor empresarial me aconselharam a esquecer; ou melhor, agradecer a todos e começar tudo do zero. Matutei ainda por uns dias, mas analisando friamente, não cedi a impulsos e recomecei de balconista no “quintal onde nasci como livreiro” — nos arredores da Universidade Federal do Paraná. Estava na Guerreiro. Após 22 anos de Livraria Chain, sete como empresário, era agora um “guerreiro”, literalmente.
Já me perguntaram se não aprendi, e se não tive como ajudar o senhor Joaquim a salvar a sua livraria. As coisas não são tão simples como parecem; teria de escrever um livro sobre toda a situação, pois é cheia de detalhes e teria de expô-los para não deixar uma visão parcial e injusta.
Este produto nobre, chamado livro, tem uma história fascinante. Desde décadas atrás, quando comecei a vestir o termo “livreiro”, embora timidamente e até recusando-o de certa forma, pois julgava que tinha de fazer mestrado na Europa para sê-lo. Enfim, hoje, finalmente, sinto-me livreiro e tenho uma vasta leitura de livros sobre livros, revistas sobre livros, palestras sobre livros, trabalho com livros e moro rodeado de livros. Toda essa leitura sempre me remeteu a outra, e esta por sua vez, a outra. Pronto! Fui contagiado pelo frenesi de todos que sempre atendi do outro lado do balcão — sou um deles agora.
É no livro que cotejamos nossa história e buscamos nossa fé. É no livro que sentimos a presença e a existência do humano. Muitos que escrevem desejam tornar-se também escritores. Por estar no meio, fui amealhando leituras da história do livro, cultura, educação, filosofia, história, sociologia, teoria literária, religião, física e literatura em si. Isso porque as perguntas básicas, que todos têm em relação ao livro, eu queria responder. Hoje quase as respondo: “Por que o livro é caro?” Por que não temos reconhecimento mesmo aqui em nosso país?” “Por que o brasileiro não lê?”
São perguntas e discursos frívolos e inconseqüentes. Só servem para dar vazão a, como se diz no popular, “conversa para encher lingüiça”.
Quando se analisa o produto livro hoje no Brasil, vê-se que cai por terra o dito “livro caro”. Um exercício simples é comparar o livro com qualquer outro artigo que boa parte dos brasileiros possui — o celular, por exemplo, cuja conta mínima é, em média, de R$ 20 ao mês. Com este valor em mãos, você pode comprar bons livros — os sebos estão aí para isso. Ir a uma livraria uma vez ao mês comprar um livro para o filho (a) ou para si próprio por R$ 35 é o “fim do mundo, é um absurdo, é uma desfaçatez, é um roubo, é o olho da cara”. A lista de impropérios é longa.
Na Universidade onde se forma, presume-se, a massa pensante de um país, para aonde os alunos normalmente vão com seus carros, roupas e calçados de grife, se um professor exige que se compre um livro para o semestre, é um Deus nos acuda: “o professor é louco, pediu livro que não tem na biblioteca”. Não quero fazer apologia de que o livro é barato, mas comparativamente a outros produtos supérfluos, ele é. O que existe entre nós é uma visão deturpada.
O livro como produto veio de uma elite e assim permaneceu por muito tempo. Aos poucos, o povo foi tendo acesso a ele, mas que continuou sendo visto como coisa de elite. Hoje, democraticamente, tem-se no livro um produto que todos devem ter acesso ou meios de consegui-los, pois é essencial como o alimento, o vestuário ou o remédio. Enfim, tornou-se um produto como outro qualquer. E por ser, finalmente, um produto, é tratado como tal: uns dizem que é droga para o espírito, outros que é caro, outros que é malfeito e muitos, inclusive, que vivem sem ele.
Falar que o livro é caro e que o brasileiro não lê é uma meia-verdade. Remontando à história cultural deste país compreende-se todo o mecanismo que ora dá razão a uma desculpa, ora a outra. Quando não a uma enxurrada de observações superficiais que, por tempos, ganham status de causadores da não leitura e o não consumo. Fotocópias, grandes redes, internet, escolas que não ensinam e por aí afora. É um discurso que levamos adiante, não só nós, livreiros, mas autores, editores e mesmos leitores.
Temos de reconhecer que cometemos muitos erros, e, conjuntamente com práticas errôneas de outros, fez-se um conjunto de desacertos, que culmina em uma estagnação. A evolução cultural também está acelerada, não tanto como a tecnológica, mas ela tem a necessidade de vir junto. Basta verificar a busca que se tem pelo conhecimento.
Essa busca é inexorável e são visíveis os mecanismos culturais, econômicos e até históricos acionados para efetivá-la. Notadamente, observa-se uma posição espetacular no Brasil, quando o quesito é o produto livro, principalmente na produção das obras, cada vez mais bonitas e atrativas. No aspecto econômico, há a concentração de fortes grupos nacionais e o fortalecimento de inúmeras editoras independentes. E para demonstrar o vigor do setor, basta analisar a entrada no mercado de grandes grupos transnacionais, comprando ou tendo participação acionária em editoras e redes de livrarias.
Falta abandonarmos esta visão hipócrita. Reconhecer que somos economia periférica, cultura periférica. O que temos é o que copiamos ou refletimos da cultura alheia. O nosso produto cultural é novo, tem pouco mais de cem anos. Estamos bem no início em relação a outros povos com mais história, mais tradição.
Nosso produto livro, visto de forma simples, cumprirá seu papel, nós é que temos de mudar com a educação, a política, a economia, a história, a cultura… Temos nos livros a fórmula para isso. Um bom começo é seguir o que disse Monteiro Lobato: “O livro não muda o mundo. Quem muda o mundo são os homens. O livro muda o homem”.