A mística da literatura russa

Guia de Irineu Franco Perpétuo serve ao leitor que deseja desbravar uma produção que passou por diversas fases e busca, hoje, se reinventar
Irineu Franco Perpétuo, autor de “Como ler os russos”
01/05/2022

A literatura russa sempre foi um espaço fértil para a reflexão sobre relações de poder e imbricações do território geográfico — não só dentro das narrativas, mas também pela própria configuração do campo. Svetlana Aleksiévitch, uma das poucas ganhadora do Nobel de Literatura com obras de não ficção, é um dos vários exemplos.

Nascida na Ucrânia e nacionalizada na Bielorrússia, foi laureada com o prêmio em 2015 pela sua obra — escrita em russo. Ao longo de cinco livros, Svetlana escreveu e refletiu sobre diversos eventos icônicos na história do colapso soviético e que ecoam até hoje. Esse engajamento político e social é um dos elementos que compõem a mística da literatura russa — junto do alfabeto cirílico e dos calhamaços repletos de personagens com nomes difíceis.

“O escritor russo sempre foi visto como um profeta ou pregador, um livre-pensador perigoso, ou um revolucionário. A própria habilidade em manipular palavras e articular pensamentos colocava o indivíduo em uma posição suspeita”, escreve Irineu Franco Perpétuo, jornalista e tradutor do russo, em Como ler os russos.

O livro faz companhia às Aulas de literatura russa: de Púchkin a Gorenstein, da professora e tradutora Aurora Fornoni Bernardini, publicado em 2018 pela Kalinka. Em Como ler os russos, Irineu elabora um guia voltado para o leitor brasileiro que quer começar na literatura russa — e, por isso, segue as traduções e recepções dos escritores russos em solo nacional.

Apesar de bastante presente no nosso mercado literário, servindo de inspiração para escritores como Machado de Assis e Lima Barreto, “não chegamos a ponderar no que há de espantoso em sua inserção [da literatura russa] numa sociedade em que a parcela de imigrantes russos ou descendentes russos é tão escassa”, diz Irineu. O guia contextualiza e apresenta questões que, pela distância geográfica e temporal, podem se perder.

Trajetos
Quando falamos de literatura russa, “estamos falando de um país em que atores dão recitais de poesia, em que a televisão tem mesas-redondas discutindo a literatura e em que escritores fazem concorridas conferências com cobrança de ingressos. E, se não mais ocupam, por muito tempo ocuparam posição privilegiada”, escreve o autor.

No século 17, a Rússia enfrentou um processo de ocidentalização, passando a valorizar moldes artísticos europeus. No campo da literatura, significou que as tradições orais perdiam espaço para uma cultura impressa. Em um século, um cenário propício surgiu para a configuração de um pai criador da literatura, espaço que Aleksandr Púchkin (1799-1837) ocupou com uma biografia quase mítica.

A partir daí, a literatura se estabiliza como uma arte central na sociedade russa ao mesmo tempo em que, pelos longos regimes de censura, se tornam o espaço onde as discussões intelectuais acontecem. Por isso, os escritores eram vistos como profetas ou filósofos que dissecavam aquilo em voga na sociedade. As tramas eram lidas como tratados e, nessa lógica, os críticos eram respeitados como intérpretes desses textos sagrados.

Irineu Franco Perpétuo, ao citar o poeta e crítico literário russo Vladislav Khodassevitch, comenta que “em nenhum lugar fora da Rússia as pessoas foram tão longe, por quaisquer meios possíveis, para destruir seus escritores. E, todavia, isso não é causa de vergonha, mas pode até ser causa de orgulho. Isso acontece porque nenhuma outra literatura (estou falando em geral) foi tão profética quanto a literatura russa”.

Nas páginas escritas durante a Era de Ouro da literatura russa surgiam embates entre autores e as formas que buscavam para organizar a sociedade em que viviam. De um lado, tramas russófilas que idealizavam o espaço rural e a vida do camponês russo, o mujique. Do outro, uma literatura que valorizava a abertura europeia e um progressivo processo de ocidentalização. Surgem também imagens que perdurariam por anos a fio nas letras eslavas, como a figura dos homens supérfluos, personagens que “não se identificam com o mundo em que habitam mas, ao mesmo tempo, mostram-se incapazes de realizar algum tipo de ação social efetiva”.

Esse momento da literatura, que contou com autores como Liev Tolstói (1828-1910), Fiódor Dostoiévski (1821-1881), Ivan Turguêniev (1818-1883) e Ivan Gontcharóv (1812-1891), tem o processo concluído com Anton Tchékhov (1860-1904). Médico, Tchékhov precisava trabalhar para escrever, diferentemente de outros escritores do período, e foi atender à população no interior da Rússia. Suas experiências tiraram o glamour que pairava sobre a miséria do mujique e também lançou bases para uma poética do século 20, um trabalho que fez diferença tanto na prosa como na dramaturgia e em não ficção.

Com a morte de médico, o fim da prosa realista deu lugar à configuração da Era de Prata na literatura russa. Em primeiro lugar, vemos o desenvolvimento da poesia mística do simbolismo russo — e o destrinchar dessa corrente em outros movimentos, como o futurismo e o acmeísmo. Surgem nomes como os de Fiódor Sologub (1863-1927), Anna Akhmátova (1889-1966) e Maiakóvski (1893-1930) — fortes indicativos do período.

O foco do guia muda quando a Revolução de 1917 toma conta da cultura soviética, já que, como descreve Irineu, “a maior preocupação dos escritores russos era a mesma dos demais habitantes do país: sobreviver” — por essa tensão, muitas vezes escritores questionaram o projeto utópico, como visto nas páginas de Nós, de Zamiátin (1884-1937), principal nome no desenvolvimento da distopia moderna, ou de O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov (1891-1940).

Em oposição aos escritores contrarrevolucionários, a literatura oficial tratou de apresentar utopias possíveis do regime soviético. Apesar de começar sem uma linha estética definida, Stalin instaurou a União de Escritores Soviéticos e apresentou como método artístico único o realismo socialista. A partir daí, essa literatura se tornou um “modo de produzir socialismo, a máquina de transformar a realidade soviética em socialismo”, como descreveu Dobrenko.

Aos que não se adaptavam ao compromisso ideológico e ao super-realismo monumental e heroico, restava a emigração — e a clandestinidade. As publicações paralelas, tanto em revista como em livro, chamadas de samizdat e tamizdat, tiveram um papel forte na produção literária russa. Em períodos de degelo, livros outrora proibidos também foram publicados, como Arquipélago Gulag, de Soljenítsyn (1918-2008), ou os Contos de Kolimá, de Varlam Chalámov (1907-1982).

Os que não furaram essa barreira foram publicados no exterior, como é o caso do Doutor Jivago, de Boris Pasternak (1890-1960). A publicação do romance foi tão complicada que foi vista como afronta — inclusive, manifestações para a privação da cidadania soviética. Por fim, Irineu nos leva até a literatura pós-soviética, momento em que autores podem publicar oficialmente textos não permitidos antes. É o caso da já citada Svetlana Aleksiévitch (1948-), Liudmila Petruchévskaia (1938-) e Tatiana Tolstáia (1951-).

Centrismo literário
Na conclusão desse trajeto, brevemente apresentado, Irineu Perpéuto descreve o “fim do centrismo literário” na cultura russa. Estrangeiros, principalmente brasileiros, quando visitam a Rússia, sentem o papel de protagonista da literatura, mas a percepção não é a mesma para um cidadão russo.

Citando uma entrevista de Ievguêni Dobrenko à Folha de S. Paulo em 2016, Irineu escreve que “a literatura na Rússia hoje é livre porque ninguém precisa dela. As funções de propaganda e luta política saíram da literatura para outras mídias”. Diz, ainda, que “transformados de profetas em mercadoria, os escritores russos estão tendo que se reinventar”. Mas, depois de acompanhar Irineu pelo livro, não é difícil visualizar a literatura russa correndo por outros lugares, em caminhos subterrâneos — esperando o momento ideal para florescer novamente. Basta saber quando e como.er tanto quanto a seu país de origem.

Como ler os russos
Irineu Franco Perpétuo
Todavia
304 págs.
Irineu Franco Perpétuo
Nasceu em São Paulo (SP), em 1971. É responsável pela tradução de diversas obras do russo, como Memórias de um caçador (2013), de Ivan Turguêniev, O Mestre e Margarida (2014), de Mikhail Bulgákov, e Anna Kariênina (2021), de Lev Tolstói, e Memórias do subsolo (2016), de Fiódor Dostoiévski.
Arthur Marchetto

É doutorando em Comunicação Social, com pesquisa sobre crítica literária na Universidade Metodista.

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