O cenário é a Sicília. Quente, misteriosa e com certeza criminosa o suficiente para ambientar romances policiais. No entanto, o comissário Salvo Montalbano não está tão preocupado com a máfia, instituição mais famosa da ilha no Sul da Itália. Suas dúvidas dizem respeito ao cidadão comum, a crimes aparentemente insolúveis, ao lado inesperado dos misteriosos assassinatos e mortes que investiga.
O comissário Montalbano, cria do escritor italiano Andrea Camilleri, é muito respeitado em sua Vigàta natal, pequena cidade da Sicília onde pouca coisa mudou desde o final da II Guerra. A máfia continua estendendo sua mão invisível por todos os aspectos da vida local. Nosso herói não é nenhum mártir, e tampouco estúpido o suficiente para acreditar que irá mudar essa situação. Sua investigação, ainda que revele ao leitor os meandros do funcionamento da Cosa Nostra, não irá desvendar grandes esquemas de tráfico de drogas, extorsão ou contrabando. Se isso não serve de consolo, pelo menos nos permite ver que um dos países mais ricos do mundo, considerado altamente civilizado e evoluído, também tem problemas tão comuns como suborno, policiais e políticos corruptos, coisas que nós brasileiros conhecemos tão bem.
São duas as aventuras de Montalbano editadas no Brasil. A primeira, A Forma da Água (Record, 144 págs.), se parece em tudo com um romance policial. Há o assassinato de um figurão de Vigàta, a luta de seus asseclas para tomar-lhe o lugar, as intrigas do poder, os falsos testemunhos, uma loira fatal (que reaparecerá em outro livro de Camilleri), enfim, tudo o que poderíamos encontrar também em O Poderoso Chefão, de Mario Puzzo.
Mas Camilleri não se deixa levar pela facilidade de copiar um estilo até certo ponto já desgastado pelo cinema e pela televisão. (Basta conferir o sucesso da série Os Sopranos, do canal HBO, que retrata os problemas psicológicos de um mafioso, para saber que é necessário escapar ao clichê). Montalbano é irônico, sarcástico, fiel a sua namorada, honesto até onde a Sicília o permite, um amante da boa cozinha, como todo italiano que se preza, sem ser pedante, e acima de tudo inteligente. Não é fácil acompanhar a linha de raciocínio de Montalbano em busca de pistas para a solução do crime em questão. Ele consegue descobrir quem matou quem? Depois da metade do livro, a resposta pouco importa, pois Camilleri consegue que o leitor, que é óbvio busca conhecer o assassino e o seu modus operandi (para usar um jargão policial), preste tanta ou mais atenção em seus personagens, e em como eles vivem.
Montalbano tem diversas características dos detetives mais famosos, como Sam Spade ou Hercule Poirot. Mas traz dentro de si uma latinidade que nos aproxima dele como se fosse um detetive brasileiro, um Ed Mort, sem no entanto carregar as características humorísticas ou de desgraça por ser um detetive sem recursos. Montalbano vive à beira da praia, o que lhe permite tomar banhos nus no mar à noite. Tem uma empregada que cozinha pratos capazes de mudar seu humor. Empregada que lhe agradece por ter mandado seu filho para a prisão. E Salvo lê Manoel Vázquez Montalbán (mais à frente explico porque isso é importante). Enfim, Salvo é um de nós, mas desvenda crimes e mistérios que muitos de seus conterrâneos gostariam de ver esquecidos.
A segunda aventura de Montalbano é mais refinada. A máfia também está presente, mas é mera coadjuvante na busca da solução do mistério de O Cão de Terracota (Record, 256 págs.) e do casal de amantes encontrado morto. Novamente, o comissário segue linhas de raciocínio tortuosas, reencontra sua loira fatal (mais fatal ainda), mas mesmo assim continua fiel a sua namorada, e persegue a verdade como um cão farejador à sua presa. É importante notar que Montalbano busca a verdade mais como uma questão filosófica, que propriamente um senso do dever. Mesmo que ele encontre a solução para os crimes que investiga — nem todos, diga-se de passagem—, pouco consegue fazer para que elas valham alguma coisa.
Em O Cão de Terracota, Montalbano recebe um presente dos deuses. Pelo menos dos deuses sicilianos — mistura das culturas gregas, romanas e mouras que por ali passaram e deixaram marcas no dialeto — que acreditam na justiça. Um dos mafiosos mais poderosos da ilha, procurado por cinco homicídios e incontáveis crimes de outras ordens, resolve entregar-se a Montalbano. E somente a ele, considerado pelo mafioso como inteligente o suficiente para entender suas razões, e esperto o suficiente para conseguir salvá-lo da vendetta (vingança) dos outros mafiosos.
A deserção é o ponto de partida para um mistério de mais de cinqüenta anos, revelado após outra grande descoberta de Montalbano. O interesse pela história da ilha, seus personagens, e as revelações sobre um período turbulento da Sicília (o desembarque aliado na II Guerra Mundial) motivam o comissário mais do que a máfia e suas falcatruas. Como se ele soubesse que, já que o presente não pode ser mudado, vamos pelo menos tentar entender o passado.
Salvù (como seus camaradas sicilianos o chamam) Montalbano é uma criação de Andrea Camilleri, escritor italiano que ajudou a renovar o giallo em seu país .(Giallo, em italiano, designa o romance policial. Tem esse nome porque, no início do século, os policiais de bolso eram impressos em papel de baixa qualidade, da cor amarela, ou giallo, em italiano). Sua personagem já é uma homenagem a outro grande escritor policial europeu, o espanhol Manoel Vázquez Montalbán, criador de Pepe Carvalho.
Ambos os livros editados no Brasil são deliciosos, trazem reviravoltas como todos os bons policiais, surpresas de última hora e enredos fascinantes. O único detalhe que incomoda um pouco é a tradução. Um bom pedaço da delícia do texto de Camilleri está no fato de ele escrever em ítalo-siciliano, misturando o dialeto e a língua oficial da Itália. Quando perguntado sobre isso, ele respondeu: “Foi assim que escutei histórias quando era criança, e assim eu as conto para meus netos”. Continue assim, Montalbano, ou melhor, Camilleri.