A miragem surrealista

(ensaio em três capítulos sobre o surrealismo no Brasil e em Portugal)
01/11/2002

Acredito que no futuro será possível reduzir esses dois estados aparentemente tão contraditórios, que são o sonho e a realidade, a uma espécie de realidade absoluta, de supra-realidade, se é lícito chamá-la assim. Foi para conquistá-la que me pus a caminho, certo de não chegar a alcançá-la, mas ao mesmo tempo dando tão pouca importância a minha morte que não me privo de calcular antecipadamente algo do prazer inerente à sua posse.
Breton, Manifesto do surrealismo

Capítulo 2

Assim é se lhe parece. Ou não?

Uma vez aceita a concepção dual, uma vez definido o universo da arte como duas forças antagônicas em perpétua luta, dionisíaco versus apolíneo, yin versus yang, maneirismo versus classicismo, tudo se resolve como num passe de mágica? A questão não é tão simples assim como querem Curtius e Hocke, e outros mais: não foi justamente em defesa da máxima abertura que saiu Antonio Candido quando, na resenha citada, fez a distinção entre super-realismo, que seria a tendência irracionalista presente no espírito artístico ocidental desde os fins do século 18, e surrealismo, a variação francesa dessa tendência? Com esse problema também esbarraram os portugueses: a excelente antologia organizada por Natália Correia, O surrealismo na poesia portuguesa, ignora os limites cronológicos impostos pelo surrealismo histórico e acolhe extensa mostra da poesia portuguesa de todos os tempos; já Perfecto Cuadrado, em sua antologia não menos excelente, You are welcome to Elsinore, optou por manter-se fiel à prévia aceitação da historicidade do movimento. Aliás, Cuadrado é um dos poucos a reconhecer a fragilidade dos portugueses tocados pelo surrealismo, quando cotejados com os franceses, estes sim surrealistas de fato. Mas sobre isso tornaremos a falar mais adiante.

Por ora voltemos ao texto de Paes e às suas contradições — penso que para entendê-las temos que aceitar, nem que seja por um minuto, a tese de que houve surrealismo no Brasil. O ensaísta de Taquaritinga, sempre atento às obras que analisa, não leva em consideração que a busca da liberdade verdadeiramente surrealista extrapola o âmbito do texto poético e invade a vida, travando combate com a rotina da civilização burguesa, com o cotidiano da sociedade positivista, com as repartições públicas, o terno e a gravata que levam à guerra expansionista ao menor sinal de queda na bolsa de valores. Seu modo de ver está comprometido também com o de Mário de Andrade, para quem o instintivismo bêbado e contraditório da literatura indígena de sua época era mais expressivo da nossa identidade nacional do que o instintivismo europeu da década de 20, organizado e dogmático, fruto paradoxal da exasperação racionalista do século anterior. Com isso, Mário relativiza a força do surrealismo francês ao reduzi-lo a mero capítulo da obra maior que seria o instintivismo universal, vasto movimento que consiste em violentar a realidade física e romper os nexos lógicos, presente em maior ou menor grau em todas as culturas humanas. Ao citar com ênfase “os bestialógicos em que se compraziam os poetas estudantes de São Paulo nos meados do século 19” e os contos e novelas de Adelino Magalhães, resultantes “do ditado do pensamento na ausência de qualquer controle exercido pela razão, fora de qualquer preocupação estética ou moral”, Paes parece querer defender o quinhão de pioneirismo que nos caberia, a cadeira-cativa na fileira dos precursores, posicionada “no próprio domínio do irracional onde Breton e seus seguidores plantaram o marco de posse”. Insistir nisso, e na simplificação que põe no mesmo patamar infinitas vozes singulares — brasileiras e francesas, entre outras —, é enunciar em forma de tese a sentença jocosa de que “o Brasil sempre foi um país surrealista”.

O grande responsável por equívocos dessa natureza foi o próprio Breton, que até a sua morte, em 1966, jamais reconheceu que o surrealismo morrera — ou, na melhor das hipóteses, transformara-se em outra coisa — um quarto de século antes1. Ele também foi o catequizador máximo do movimento, difundindo a boa nova pelos quatro cantos do mundo, incentivando a formação de várias franquias. Maurice Nadeau finaliza sua História do surrealismo alertando seus leitores, entre eles Breton, para o fato de que depois da Segunda Guerra as reivindicações do surrealismo continuaram as mesmas, ao passo que o mundo mudara abruptamente: “Se os surrealistas de repente nos pareceram privados de presença, é porque o movimento já havia desempenhado, em certa medida, seu papel histórico. Na história das sociedades não faltam situações em que grandes movimentos e grandes homens, de que elas têm urgente necessidade, são ao mesmo tempo atingidos de perempção.” Como ninguém deu ouvidos a essa afirmação, os equívocos foram-se sucedendo no tempo e no espaço. Anotemos alguns.

Em todas as tentativas de se engaiolar esse objeto tão esquivo, a sombra surrealista na literatura brasileira, apenas três autores são unanimemente apontados como grandes realizadores sob o influxo da escrita automática na busca da fusão de sonho e realidade, todos os três poetas: Murilo Mendes e Jorge de Lima, a despeito do vínculo visceral destes com o catolicismo, e Roberto Piva, que adotou inclusive certa postura surrealista perante a sociedade, não aceitando o experimentalismo na arte sem que houvesse o experimentalismo na vida, pleiteando a revolução permanente não só no papel mas também no cotidiano. A partir de 1962, um grupo de autodenominados surrealistas começa a atuar em São Paulo — no olho do furacão, os novos poetas, Sérgio Lima, Claudio Willer e Roberto Piva publicam seus livros de estréia. Porém a rigor, escreve Álvaro Cardoso Gomes n’A estética surrealista, “somente em agosto de 1967, com a publicação da revista A Phala, dirigida por Sérgio Lima, e com a realização da 13ª Exposição Internacional do Surrealismo, organizada pelo mesmo Sérgio Lima e também por Leila Ferraz, Paulo Antônio Paranaguá e Vincent Bounoure, o surrealismo adquire conformação mais precisa entre nós”2. Até então — respeitando esse raciocínio —, pode-se falar do surrealismo na literatura brasileira, dos autores brasileiros tocados pela aventura da arte e da vida como foi proposta pelos manifestos de Breton, mas dificilmente é possível falar do movimento surrealista brasileiro, pois aqui o trabalho isolado de alguns nomes não teve, como em Portugal, o peso e a força da ação conjunta que só os grupos organizados conseguem demonstrar.

Mas, mesmo se aceitássemos os argumentos de quem defende a existência do surrealismo fora da França, no caso brasileiro e no português os impasses continuariam. Penso que se jogarmos na peneira a obra dos autores citados por, entre outros, Paes, Lima e Martins, e também por Willer em História subterrânea (revista Cult, número 50), pouca coisa verdadeiramente surrealista sairá do outro lado. Principalmente se a trama dessa peneira for mais estreita do que as comumente usadas pelos que afirmam ou negam a existência do surrealismo no Brasil. Que há um time de poetas e prosadores que puseram em xeque a lógica, o bom gosto, o realismo e as convenções estéticas, a partir do mergulho no inconsciente e do combate à ordem estabelecida, disso não tenho a menor dúvida. Mas até que ponto tal postura configura por si só uma posição surrealista perante o mundo? Onde, na poesia surrealista de João Cabral (citada por Paes), a revolta superior do espírito — o humor negro — e o conceito da criação comunitária, de que “a poesia deve ser feita por todos”, segundo Lautréamont? Onde, no drama surrealista de Flávio de Carvalho, Bailado do deus morto (citado por Willer), a estratégia da revelação profana possibilitada pela aproximação de realidades distintas, cerne da idéia de imagem, de Pierre Reverdy? Onde, na prosa surrealista de Aníbal Machado (citado por Paes e Willer), a valorização do acaso objetivo e do amor louco, o descompromisso absoluto com o mercado e o desprezo à indústria cultural?

Aliás, o caso de Anibal Machado, que à semelhança de Campos de Carvalho chegou a declarar-se publicamente surrealista, é sintomático. Seus trabalhados mais caracteristicamente surrealistas, reunidos nos Cadernos de João, são em número muito menor do que os textos absurdos, como o conto Sonho de uma noite de fevereiro, que o aproximam mais de Kafka — da mesma forma que ocorrera antes com O agressor, de Fusco — do que de Breton. Isso só demonstra que é necessário controlar o afã de querer fazer valer aqui, a qualquer custo, o movimento que esteve indissoluvelmente ligado às convulsões e idiossincrasias européias do entre-guerras. É ponto pacífico que o surrealismo influenciou de maneira positiva muitas de nossas melhores cabeças, tanto na literatura quanto nas artes plásticas, mas a falta do corpo a corpo conjunto, de conspirações ruidosas nas mesas dos bares, de manifestações públicas, de intervenções orquestradas, de happenings, performances e provas rituais para que o público se iniciasse na nova aventura, e principalmente de contribuições teóricas que enriquecessem a matriz original, fizeram do nosso surrealismo simples jogo de reflexos, pura ilusão de ótica. Algo menos contundente do que de fato poderia ter sido, caso seus adeptos tivessem canalizado os esforços na direção do autoquestionamento. Caso tivessem tentado responder criticamente perguntas como: que sentido faz tentar implantar no Brasil concepções européias? A que necessidades tais tentativas respondem? O surrealismo deve ser decalcado ou, ao contrário, modificado e enriquecido? Quais as ferramentas teóricas de que dispomos para enriquecê-lo?

É bom que se diga que foi o talento ímpar de Breton para a pesquisa de novos temas e a redação de ensaios provocadores que manteve o movimento vivo no entre-guerras. Leitor de Hegel e de Nietzsche, Breton aliava a força das imagens à inventividade teórica ao propor verdadeiros poemas conceituais, como o do mito dos grandes transparentes. Outras figuras que se interessaram pelo movimento e merecem destaque pelo vigor e pela destreza ensaística: Artaud e Octavio Paz. Numa terra como a nossa, tão abençoada pelo imenso manancial de mitos de diferentes etnias, é de se estranhar que ninguém mais, além do Oswald de Andrade do Manifesto antropofágico — excelente produto de exportação —, tenha se interessado em propor, com o auxílio do espírito de invenção típico da criação artística, modelos conceituais e até mesmo filosóficos mais abertos, que viessem a enriquecer a cartilha dos diferentes ismos trazidos d’além mar. O surrealismo aquartelado em Paris alimentava-se de contínuas experiências e revelações — os novos jogos descobertos casualmente, o conceito de desvio absoluto de Charles Fourier, a técnica dos frottages e dos grattages de Max Ernst, o método crítico-paranóico e as anamorfoses psíquicas de Dali —, por isso mudou tanto ao longo de sua história. A atenção estava voltada o tempo todo para fora, em busca das conexões com o mundo real que pudessem iluminar o espiritual. Para cá, parte disso — não tudo! — foi trazida, com o cuidado dos que lidam com as espécies raras de plantas, e descarregada em estufas, a fim de que não se contaminassem com a flora local. Mesmo em Portugal, os manifestos e demais textos doutrinários de Mário Cesariny e António Maria Lisboa apenas recitam, em vernáculo e com grande desenvoltura, a tabuada dos originais franceses3. Um movimento cristaliza-se e fenece quando nada mais é acrescentado às suas diretrizes, por isso o surrealismo histórico chegou ao fim, no final da década de 30, com o início da Segunda Guerra e a diáspora dos integrantes do grupo parisiense.

O espírito surrealista, porém, não se apagou. Assim como acontecera antes com as conquistas dos outros movimentos de vanguarda do início do século 20, as do surrealismo continuam vivas, amalgamadas nas demais conquistas que são o rosto deste século 21 recém-iniciado. As palavras com que Paes encerra seu ensaio, a despeito dos equívocos que as precederam, acertam na mosca: “Com o fechamento da escola de Breton após a sua morte e, mais do que isso, com a incorporação da técnica da metáfora surreal à linguagem corrente da poesia, deixou de ter sentido o afã de querer aferir o maior ou menor débito deste ou daquele autor mais recente para com a dita escola. Tudo quanto cabe agora dizer, à guisa de conclusão, é que entre os poetas brasileiros surgidos nas três últimas décadas há uma corrente que cultiva a efusão catártica, contrariamente tanto à ‘elevação do vulgar’ perseguida pelos porta-vozes da geração de 45 quanto à preocupação antidiscursiva da poesia concreta, evidenciada no seu recurso ao laconismo espacial, ideogrâmico e intersemiótico. Essa catarse poética, que tende à oralidade, não deixa de apresentar afinidades com a da geração beat americana, a qual, através de Henry Miller e pela mesma ‘insistência no espontâneo, no improvisado, na importância de viver o momento presente, na sensualidade, na naturalidade e no desprezo à censura, no sentimento de sacralidade, na receptividade’, conforme diz dela Lawrence Lipton, mostra ter raízes, ainda que indiretas, no liberalismo surrealista.”

Notas

1. A constatação de que as principais obras e contribuições teóricas do movimento surrealista foram gestadas e dadas à luz na França, nos vinte anos compreendidos entre 1919 e 1939, faz com que olhemos com desconfiança essa postura de Breton. Afinal os conceitos fundamentais do surrealismo — a escrita automática, a concepção de imagem, os jogos surrealistas, o acaso objetivo, o amor louco, o humor negro, o objeto surrealista e o método crítico-paranóico — são todos desse período. Foram divulgados nas duas revistas oficiais do movimento, La Révolution Surréaliste (1924) e Le Surréalisme Au Service De La Révolution (1930), em Minotaure (revista com a qual colaboram mais intensamente a partir de 1935), e nas principais obras em prosa publicadas nessas duas décadas: de Breton, Os campos magnéticos (com Soupault, 1919), Manifesto do surrealismo (1924), Peixe solúvel (1924), Nadja (1928), Segundo manifesto do surrealismo (1929), L’immaculé conception (com Éluard, 1930), Os vasos comunicantes (1932), Situação surrealista do objeto (1935), Limites non frontières du surréalisme, O amor louco (1937) e Por uma arte revolucionária independende (manifesto redigido com Trotski, 1938); de Péret, Mort aux vaches et au champ d’honneur (1923) e o Amor sublime (1936); de Aragon, Une vague de réves (1924), O camponês de Paris (1926) e o Tratado do estilo (1928). Também é sintomático o fato de que, em 1939, Pierre Naville, Robert Desnos, Philippe Soupault e Louis Aragon, depois de Breton os principais membros do grupo surrealista, já não pertençam mais ao movimento.

2. Em 1967, quando da realização da 13ª Exposição Internacional do Surrealismo, em São Paulo, Campos de Carvalho já havia publicado os quatro romances que o tornaram célebre, aos menos entre os amantes da boa literatura brasileira (dois deles viriam inclusive a ser lançados na França, pela Albin Michel, com o título de La lune vient d’Asie e La pluie immobile, respectivamente em 1976 e 1980). Não considero Campos de Carvalho um autor surrealista, apesar de ele mesmo ter insistido nessa tecla, no que foi acompanhado por um bom punhado de críticos e resenhistas. No entanto, dada essa confusão e dado o ecletismo que muitas vezes regeu as exposições surrealistas, muito me espanta o nome de Campos de Carvalho não figurar, como convidado, no catálogo da 13.

3. Justiça seja feita, mal-entendidos sejam sanados: muitos dos poemas de António Maria Lisboa, Mário Cesariny, Pedro Oom e outros são tão contundentes, tão belos, tão bem resolvidos esteticamente que resistem por si sós, sem a necessidade da etiqueta: poesia surrealista. Aliás, sobrevivem com mais vigor principalmente sem essa etiqueta.

Obras citadas

BRETON, André. Manifestos do surrealismo. Tradução de Sérgio Pachá. Rio de Janeiro, Nau Editora, 2001.

CANDIDO, Antonio. Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo, Unesp, 1992.

CORREIA, Natália. O surrealismo na poesia portuguesa. Lisboa, Publicações Europa-América, 1973.

CUADRADO, Perfecto E. You are welcome to Elsinore. Porto, Edicións Laiovento, 1996.

GOMES, Álvaro Cardoso. A estética surrealista. São Paulo, editora Atlas, 1995.

LIMA, Sérgio. A aventura surrealista. Rio de Janeiro, editora Vozes, 1995.

MACHADO, Aníbal. Cadernos de João. Rio de Janeiro, José Olympio, 1957.

MARTINS, Floriano. O começo da busca. São Paulo, editora Escrituras, 2001.

NADEAU, Maurice. História do surrealismo. Tradução de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo, editora Perspectiva, 1985.

PAES, José Paulo. Gregos e baianos. São Paulo, editora Brasiliense, 1985.

WILLER, Claudio. História subterrânea. Revista Cult nº 50, setembro de 2001, pág. 55.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho