A miragem surrealista

(ensaio em três capítulos sobre o surrealismo no Brasil e em Portugal)
01/12/2002

A terra, sob meus pés, não é mais que um imenso jornal desdobrado. Às vezes passa uma fotografia, é uma curiosidade qualquer, e sobe das flores uniformemente o cheiro, o cheiro bom da tinta de imprensa. Quando eu era jovem ouvi dizer que o cheiro de pão fresco era insuportável aos doentes, mas repito que as flores cheiram a tinta de imprensa. As próprias árvores são apenas notícias de menor importância, mais ou menos interessantes: um incendiário aqui, um descarrilamento acolá.

Breton, Peixe solúvel

Capítulo 3

O tripé de um olho só
A batalha entre as duas concepções antagônicas, a de surrealismo histórico e a de surrealismo atemporal, teve início há décadas e, pelo visto, não tem data para terminar. E isso não é tudo, ao menos não para os que, como eu, tomaram o partido da primeira concepção. Mesmo no âmbito restrito do surrealismo histórico novas polarizações surgem de repente, no instante em que as fronteiras territoriais e temporais do movimento começam a ser demarcadas. Há os que tendem a ver como genuinamente surrealista apenas as atividades realizadas na França no segundo quartel do século 20 e as obras aí produzidas — é nesse grupo que me incluo — e, do outro lado, há os que defendem a maior abertura possível. Para estes o surrealismo teria durado mais de quatro décadas (como vimos, de 1919, ano da publicação d’Os campos magnéticos, a 1969, ano da dissolução oficial do grupo francês) e, nesse período, se espalhado por diversos países, inclusive por muitos da América Latina. Boa parte dos portugueses e dos que estudam sua literatura também estão convictos disso. Como aconteceu com os grupos formados na Argentina, no México e no Chile, em nenhum momento os portugueses deixaram de se considerar legítimos surrealistas, apesar de trazerem na mente, de maneira clara, a diferença de cultura e de contexto.

No breve Comunicado dos surrealistas portugueses, enviado de Lisboa, em abril de 1950, a Simon Watson Tylor, organizador da grande Exposição Internacional do Surrealismo, realizada em Londres, consta a seguinte justificativa em forma de desabafo: “Em cada país, a posição surrealista tem de se colocar conforme as suas próprias possibilidades e formas de atuação, condicionada pelo meio em que existe e é obrigada a ser, e servindo-se da capacidade de revolucionar-destruir-criar que esse mesmo meio lhe proporciona. (…) Debaixo de qualquer ditadura, fascista ou stalinista, não é possível uma atuação surrealista organizada, sem as respectivas conseqüências de represálias policiais. A ação surrealista, neste caso particular, está limitada a uma série de atos que poderíamos chamar de guerrilhas, ou a um acomodamento reacionário com os respectivos ministérios de Propaganda. Das duas posições é, sem dúvida, a primeira a única possível, embora, por vezes, bastante difícil de manter. (…) Queremos afirmar — e afirmamos — que a verdadeira atuação surrealista, não se limitando ao campo político, filosófico, estético ou a qualquer outro, mas reunindo-os todos no Real-Imaginário, não pode nem deve seguir a rota de qualquer desses caminhos, mas deve agir dentro de todos eles. Por isso cremos que aqui, em Portugal, estando, como estamos, limitados por todos os lados, só temos à nossa frente a feroz presença do desejo individual para lutarmos contra a extinção do Homem, que o Estado vai realizando sistematicamente, e não podemos, portanto, enfileirar em nenhum partido que, a título de futuras liberdades políticas (ou outras quaisquer), nos faria cair fatalmente noutra ditadura” (Cuadrado 1996, 15).

A opressão política e a inexistência da liberdade de expressão, de que reclamavam os signatários do Comunicado…, anos mais tarde cairiam também sobre a sociedade brasileira, em geral, e os manifestantes brasileiros reunidos em torno de Sérgio Lima, em particular. Porém se no Brasil não houve um grupo surrealista consistentemente formado, mas cabeças mais ou menos isoladas que vez ou outra se congregavam em torno de projetos comuns — como o da XIII Exposição Internacional do Surrealismo, de 1967, e da Semana Surrealista em São Paulo, de 1985 —, em contrapartida, um quarto de século após o primeiro manifesto de Breton, em Portugal nasceram diversos grupos, dois deles rivais até o último fio de cabelo, em guerra aberta pela supremacia: um grupo inicial tido como proto-surrealista (que se reuniu no café Herminius, a partir de 1942, formado por alunos da Escola de Artes Decorativas António Arroio, Mário Cesariny e Pedro Oom entre eles), o Grupo Surrealista de Lisboa (formado em 1948 por Cesariny e Alexandre O’Neill, entre outros), o grupo Os Surrealistas ou Grupo Dissidente (formado em 1949 por Cesariny, Oom, António Maria Lisboa e outros), e o posterior e efêmero agrupamento formado pelos sobreviventes desses dois últimos grupos, que se reuniam no Café Gelo, no final da década de 50.

Sobre esses primeiros passos portugueses escreve Carlos Felipe Moisés: “Em 1948, um grupo de jovens escritores e artistas plásticos assina um manifesto, no Diário de Lisboa, em protesto contra as comemorações oficiais do centenário de Gomes Leal, poeta maldito, pós-romântico. O argumento é cortante: a honraria oficial equivale a minimizar o caráter maldito, marginal, do homenageado — aspecto que o manifesto gostaria de ver enaltecido. O título, Só Gomes Leal O Mago Lesel O Poro da Noite, já sugere a filiação surrealista dos signatários, que em janeiro do ano seguinte organizam, ainda em Lisboa, uma Exposição Surrealista, em cujo catálogo assinalam as razões pelas quais resolveram aderir ao surrealismo: revolta radical contra as aparências e convenções, e desejo de uma ação libertadora das consciências, destinada a transformar o homem e o mundo. Participam da exposição os escritores Alexandre O’Neill, Antônio Pedro, José Augusto França e os pintores Antônio Dacosta, Fernando Azevedo (que mais tarde se radicará no Brasil), José Moniz Pereira e outros. Em maio de 1949, Mário Cesariny de Vasconcelos, que participara do episódio ligado a Gomes Leal mas não da exposição de janeiro, encabeça um grupo de dissidentes, que vai atuar no JUBA, Jardim Universitário das Belas Artes, também em Lisboa, com um manifesto coletivo, A afixação proibida: primeira (sic) comunicação pública do movimento surrealista. Além de Cesariny, assinam este manifesto Antônio Maria Lisboa, Pedro Oom e Henrique Risques Pereira, que logo contam com a adesão de Fernando Alves dos Santos, Cruzeiro Seixas, Carlos Eurico da Costa e Mário Henrique Leiria. Assim, talvez porque tenha demorado tanto a acontecer, o surrealismo surge em Portugal em dose dupla, já devidamente dividido em duas facções que insistem em se ignorar mutuamente. O quadro é ao mesmo tempo muito surrealista e muito português” (Moisés 2001, 283).

Para muitos estudiosos não causa surpresa alguma a falta de consciência crítica por parte desses manifestantes, que julgaram poder implantar livremente, sem ter que pagar pedágio, o modelo francês em território lusitano. Para esses mesmos estudiosos o que causa certo espanto é o fato de o surrealismo ter demorado tanto tempo para vingar em Lisboa, haja vista sua rápida repercussão em outras importantes capitais européias — Berlim, Roma, Londres e Praga, entre outras — quando das primeiras mobilizações do grupo de Paris. Moisés, no entanto, vê esse atraso como o resultado da generalizada atitude de recolhimento do intelectual português que, depois do intenso abalo provocado pela geração da revista Orpheu, mostrou-se avesso a qualquer manifestação baseada no questionamento das normas estéticas, na irreverência e no escândalo. Tendo Pessoa, Sá-Carneiro, Camilo Pessanha e Almada Negreiros reunidos no seu núcleo, a Orpheu, lançada em 1915, com apenas dois números foi a responsável pela ruidosa introdução dos movimentos de vanguarda em Portugal. Uma década depois, com o forte apelo à ordem e à disciplina por parte dos governantes, a única atmosfera disponível e aceitável era a mais conservadora possível, na qual nenhum gesto de rebeldia, artística ou política, encontrava guarida. Dessa forma, todas as propostas estrangeiras de contestação, como as do surrealismo, acabavam sendo repelidas antes mesmo de entrar no território lusitano. A geração que sucedeu a de Pessoa e Almada surgiu em 1927, com a revista Presença, considerada a porta-voz da segunda fase do Modernismo português; o Estado Novo, de inspiração fascista, foi decretado no ano seguinte, pondo fim à República liberal e abrindo alas para a chegada de Salazar. Ainda segundo Moisés: “Ordem e disciplina, com sua aura de ponderação e amadurecimento, é o que ressuma da plataforma dos presencistas. Com seu aliciante poder de persuasão, e imbuídos do propósito de reerguer a cultura nacional, em bases sólidas e construtivas, estes mantêm a hegemonia literária até por volta de 1940. Ordem e disciplina, também, já agora por via da opressão, é o que o Estado Novo fascista impõe a toda a sociedade. Mas seria simplificação grosseira ver na postura defendida pelo grupo da Presença uma forma de conivência com os abusos da ditadura. São manifestações contemporâneas, cujos melhores propósitos se equivalem, na tentativa de traduzir, cada uma a seu modo, claro está, o mesmo espírito de época, o mesmo anseio coletivo, o mesmo horror à desordem. Com isso, quer na literatura, quer na política, nada no período que vai de 1924 a 1936, em Portugal, é propício a atitudes de revolta, como a representada pelo surrealismo. No tocante à primeira, é sobremodo convincente a pregação de seriedade e equilíbrio; no tocante à segunda, a manus militaris do regime é mais convincente ainda” (Moisés 2002, 282).

Além dos presencistas, e contrários a eles, outro grupo ganhou corpo nesse momento conturbado de Portugal: o dos neo-realistas, cuja defesa da arte compromissada era radicalmente oposta ao esteticismo da Presença. Assim é que, ao longo da década de 30, como forma de resistência ao regime fascista, processou-se a revalorização do realismo na literatura, cujo engajamento social abominava o elitismo, o hermetismo e o psicologismo das vanguardas e propunha, no seu lugar, o materialismo dialético, a conscientização política e o amadurecimento cultural por meio da arte voltada para o povo. Dessa maneira, dentro do engajamento que a essa altura já não interessava mais aos surrealistas franceses, a literatura neo-realista portuguesa se constituiu, em grande parte, da redescoberta da vida rural, onde avultava a dinâmica social do indivíduo assalariado e, em contraste, a decadência e a proletarização da pequena burguesia. A literatura tornou-se, dentro desses moldes, instrumento de transformação do mundo, na medida em que o escritor passou a crer que seria possível uma revolução social através da ação da obra de arte. Com os surrealistas, que tiveram nos presencistas e neo-realistas seus grandes oponentes — e vice-versa —, estava armado o explosivo tripé de um olho só: cada vertente estético-ideológica procurando enxergar melhor e mais longe do que as outras duas, dentro da realidade contemporânea.

O movimento lusitano inspirado no surrealismo, enquanto aventura organizada, durou dez anos — a partir do final da década de 50, com o fim das reuniões e dos projetos envolvendo diversos indivíduos, já não se pode mais falar em movimento surrealista em Portugal. Na medida do possível, dentro do contexto bem-comportado que sucedeu ao vivido pelo grupo reunido em torno da Orpheu, escândalo era com freqüência o resultado da tentativa de fusão entre arte e vida. As excentricidades dos franceses, que já vinha de longa data — desde Baudelaire pintando o cabelo de verde e Jarry percorrendo Paris de bicicleta, levando a tiracolo um par de revólveres e uma carabina, até Jacques Vaché fantasiando-se de oficial inglês para interromper a estréia de uma peça e Breton e Aragon declamando trechos d’Os cantos de Maldoror à noite, na ala dos loucos dos hospital militar de Val-de-Gracê, sob o urro dos internados e das sirenes de ataque aéreo (Willer 2001) —, eram a matriz dessa atitude delirante. De qualquer maneira, por mais ruidosas que fossem as atividades dos diversos grupos portugueses pretensamente surrealistas, num ponto elas se assemelhavam às promovidas, no Brasil, por indivíduos agindo quase que isoladamente: em nenhum momento, quer na ação doutrinária, quer na produção literária, produziram idéias realmente novas, que viessem a enriquecer o movimento surrealista francês e, conseqüentemente, o internacional (afinal, não postulavam a sua existência?). A poesia e as artes plásticas desse período guardam, apesar disso, fortes momentos de real inspiração, como atestam os poemas reunidos em livro, de Cesariny e Lisboa, e as pinturas de Antônio Dacosta e Cruzeiro Seixas. Já os poucos manifestos e ensaios, mesmo quando deliciosos — A afixação proibida, redigida a muitas mãos, e Erro próprio, de Lisboa —, não escapam do cacoete de, a todo instante, remeter o leitor à doutrina oficial presente nos textos de Breton. A bem da verdade, tanto quanto no Brasil, experiências como a do acaso objetivo e a do amor louco não foram aproveitadas em Portugal, muito menos enriquecidas. Já os exercícios de escrita automática, colagem e cadáver delicado foram largamente praticados. Mas não ampliados — a respeito da intervenção teórica e pedagógica do movimento surrealista português, Perfecto Cuadrado, na introdução à antologia de poesia surrealista por ele organizada, faz questão de assinalar dois pontos: “1. A pobreza de textos de caráter doutrinário (tanto quantitativa como qualitativamente), apenas atenuada por algumas comunicações de Antônio Maria Lisboa, por intervenções esporádicas, ainda que iluminadoras, de Mário Cesariny, ou pelos textos por vezes esquecidos e hoje felizmente recuperados de Ernesto Sampaio, textos que se situam entre os mais formosos e lúcidos de toda a literatura pragmática do surrealismo — português e outros. 2. A escassez, também, de textos coletivos de intervenção direta e imediata. Quando estes existem, ou bem caem em generalizações ou abstrações (e já nos referimos anteriormente à diferença em relação aos bretonianos, e à importância que nisso poderia ter tido a influência das condições políticas específicas), ou bem se trata de acusações e desqualificações pessoais ilustrativas das pequenas escaramuças domésticas que talharam a breve existência do movimento português: panfletos, cartas públicas, documentos privados esgrimidos publicamente sempre que a ocasião se mostrava propícia etc.” (Cuadrado 1996, 21)

O problema da rejeição da historicidade do surrealismo francês — embutido no conceito de super-realismo, de Candido, e de policentrismo, de Lima, comentados nos capítulos anteriores — é a munição que, sempre que o próprio surrealismo vê-se atacado, pode ser usada tanto pelos detratores quanto pelos defensores. Os primeiros, para desmerecer as conquistas do grupo de Breton, gostam de ressaltar que o cerne da ideologia surrealista já era do conhecimento de Peter Brueghel, o Velho, e San Juan de la Cruz; os defensores, para supervalorizar todo o rol de descobertas — melhor dizendo, de redescobertas — que julgavam perdidas graças à miopia da sociedade tecnicista, insistem na permanência do surrealismo eterno, atemporal. A discussão teórica, caso sejam levados em conta tais argumentos, diante da imensidão de território abarcado tende ou à paralisação ou ao moto contínuo. Ambos os passaportes não conduzem os interlocutores à parte alguma, razão pela qual fechamos mais uma vez com Nadeau: aventurar-se a realizar estudos do surrealismo pressupõe a aceitação incondicional de sua historicidade, e a sua conseqüente redução a um determinado tempo, espaço e grupo de atores, mesmo correndo o risco de, agindo assim, estar traindo o seu espírito e a sua mais profunda significação. Cuadrado, apesar da sua tendência à contemporização, também está de acordo quanto à importância de se optar pelo surrealismo histórico: “Uma vez aceita a sua historicidade, podemos abordar essa história a partir das mais diversas perspectivas, segundo o que decidamos entender por surrealismo histórico. Podemos, por exemplo, entendê-lo num sentido amplo, como uma constante histórica periodicamente atualizada (situando-nos assim no campo do jogo de oposições alternativas freqüente na historiografia e na crítica artístico-literária desde o início do Romantismo), ou limitarmo-nos ao âmbito temporal da modernidade, e, dentro dele, centrarmo-nos na história concreta do movimento — grupos, textos, polêmicas etc. — delimitado aproximadamente entre as datas do primeiro manifesto bretoniano (1924) e a morte de André Breton (1966) ou da dissolução formal do movimento (1969)” (Cuadrado 1996, 24).

Os termos da definição do que seria — ou teria sido — o movimento surrealista têm variado bastante, às vezes mais do que o desejável, conforme a menor ou maior condescendência dos especialistas envolvidos no debate. Essa variação ora contrai ora expande o conceito original, francês, fazendo deste, no segundo caso, a enorme plataforma em que cabe quase tudo. Como vimos, no Brasil há a polêmica entre os que, como Paes, apontam poucos e ocasionais exemplos de artistas que teriam sido tocados, muitos apenas de raspão, pelo surrealismo e os que, como Lima, Martins e Willer, argumentam contra essa afirmação. O discurso de ambas as partes baseia-se ao menos em um ponto comum: na crença de que o surrealismo seria um conjunto de experiências passíveis de exportação. Em desacordo com essa idéia há o terceiro modo de ver o problema, qual seja, o que não crê que escolas estéticas possam migrar dessa maneira sem perder suas características fundamentais, sem se transformar em outra coisa no instante mesmo do desembarque em terra estrangeira. Tanto no Brasil quanto em Portugal, metamorfoses as mais diversas aconteceram quando aqui e lá chegaram o romantismo, o simbolismo, o futurismo, o dadaísmo e, é claro, o surrealismo. Não tivemos o movimento surrealista brasileiro pela mesma razão que não tivemos o movimento futurista brasileiro, apesar de a cartilha de Marinetti ter sido a principal referência do nosso modernismo. Isso posto, é necessário dar o segundo passo e se perguntar se o que ocorreu em Portugal com a designação de movimento surrealista português terá sido realmente surrealismo, e não algo de outra natureza, cuja riqueza e originalidade adviria justamente do processo de aclimatação das idéias de Breton em território lusitano.

Mudando de assunto, de leve: Antonio Candido, ao analisar os versos dos primeiros poetas brasileiros que produziram, na década de 1870 e começo da de 1880, sob a influência de Baudelaire, demonstra que foram justamente as deformações do original francês que fizeram com que esses versos, de poetas secundários, cumprissem em parte a promessa de renovação que os animava. Contra o Romantismo que chegava ao fim os jovens poetas cultuavam o sadismo, o sexo e o comportamento bestial, fazendo uso de elementos característicos de Baudelaire, porém exagerando-lhes as arestas, descartando aspectos que não lhes interessavam, sendo muitas vezes mais baudelairianos do que o próprio Baudelaire. Essa apropriação parcial não passou despercebida pelos seus contemporâneos, chegando a incomodar até Machado de Assis. Porém, como argumenta Candido, “Machado tinha razão formalmente; mas hoje podemos perceber que historicamente a razão estava com os moços que deformavam segundo as suas necessidades expressivas, escolhendo os elementos mais adequados à renovação que pretendiam promover e de fato promoveram. (…) Em Carvalho Júnior e nos outros de tendência parecida, esta visão parcial, ou esta escolha, serviu como arma de polêmica anti-romântica, adquirindo um sentido e um significado que a nova concepção do sexo nunca teve em Baudelaire. Do mesmo modo, não havia neste o curioso animalismo dos jovens poetas brasileiros, que por meio de imagens tomadas ao mundo animal, ou pela idéia de uma amor que passa de carnal a metaforicamente carnívoro, manifestaram ao seu modo o sadismo que ele suscitou na poesia moderna, por meio de outros temas e imagens” (Candido 1989, 23). As necessidades e as características do grupo que importa determinado objeto cultural sempre fazem com que ajustes e adaptações sejam levados a cabo no corpo desse mesmo objeto. Quando tais ajustes e adaptações ultrapassam determinado limite, como ocorreu com o surrealismo no Brasil, em Portugal e em toda parte fora da França, o objeto resultante torna-se praticamente outro, e é assim que tem que ser encarado e nomeado.

Obras citadas

BRETON, André. Manifestos do surrealismo. Tradução de Sérgio Pachá. Rio de Janeiro, Nau Editora, 2001.

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo, editora Ática, 1989.

CESARINY, Mário (organizador). A poesia de António Maria Lisboa. Lisboa, Assírio e Alvim, 1977.

CESARINY, Mário. A intervenção surrealista. Lisboa, Ulisséia, 1966.

CESARINY, Mário. Pena capital. Lisboa, Assírio e Alvim, 1982.

CORREIA, Natália. O surrealismo na poesia portuguesa. Lisboa, Publicações Europa-América, 1973.

CUADRADO, Perfecto E. You are welcome to Elsinore. Porto, Edicións Laiovento, 1996.

LIMA, Sérgio. A aventura surrealista. Rio de Janeiro, editora Vozes, 1995.

MARTINS, Floriano. O começo da busca. São Paulo, editora Escrituras, 2001.

MOISÉS, Carlos Felipe. O desconcerto do mundo. São Paulo, editora Escrituras, 2001.

WILLER, Claudio. Poética surrealista: arte e/ou vida?. Fortaleza, revista Agulha, 2001. Texto disponível em www.secrel.com.br/jpoesia/ag18willer.htm.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho