Presenciei certa vez na redação de um grande jornal a seguinte cena: uma escritora do Sul, que na época despontava como uma das promessas de nossa literatura, apareceu para fazer a divulgação de seu livro recém-lançado. O subeditor do caderno de cultura e variedades a conhecia e determinou a um repórter que a entrevistasse. A escritora, minha velha amiga, é pessoa arguta e muito inteligente (ao contrário do que se pensa, nem todo escritor é arguto e inteligente), disse coisas interessantes, foi fotografada e retirou-se. O repórter se pôs a escrever a matéria. Quando o editor chegou, perguntou no que se ocupava e ele informou. Na mesma hora o editor o atalhou: “Quem é essa mulher? Ninguém a conhece aqui; ela não é notícia. Não, não vai ter matéria”. A entrevista foi para o lixo, não se aproveitou uma palavra do que minha amiga disse, não saiu uma linha sobre o livro (e depois dizem que escritor brasileiro não vende; pergunto: vai vender como?).
A atitude desse editor nada tem de excepcional. Ela apenas reflete o papel que a nossa imprensa se atribui: ela é não-formadora, mera reprodutora de matrizes culturais, quase sempre importadas de fora. Vivemos no capitalismo e reproduzir em escala é muito mais fácil e barato do que produzir e divulgar novos conteúdos. É a lógica do sistema. Pouco importava se a entrevista pudesse ser inteligente ou o livro bom; isso nem chegou a ser cogitado. Apenas, não havia uma imagem já pronta a ser vendida (consumida), dentro de nossa sociedade de simulacros. Vamos ser bem sinceros: a grande mídia (embora ela não possa ou não ouse confessar isso abertamente) está se lixando para a cultura brasileira e, dentro dela, especialmente para a literatura brasileira. Na medida em que nós, ficcionistas brasileiros, vendemos em geral quinhentos, mil, três mil quando vamos bem, exemplares (cinco mil é considerado best-seller), na medida em que as tiragens são pequenas, insignificantes mesmo, em outras palavras, na medida em que a literatura sendo feita não tem relevância econômica, ela também deixa de interessar aos meios de comunicação. Para eles, relevante é o artista de comunicação de massa. Qualquer jovem cantor ou instrumentista lançando seu CD tem quase garantido que seu trabalho será avaliado, seja positiva ou negativamente, seja num maior ou menor espaço; afinal, a indústria fonográfica tem peso. Já o que determina hoje se um ficcionista brasileiro terá direito à glória de uma resenha, se um trabalho que consumiu às vezes anos merecerá míseras, ainda assim valiosas, vinte ou trinta linhas de apreciação, são fatores absolutamente insondáveis e aleatórios, que nada têm a ver com mérito literário — bem, se tiver algum, melhor.
Há poucos anos uma grande revista semanal (não leio nenhuma, mas um exemplar me caiu nas mãos, juro, no dentista, por puro acaso) em sua seção Livros diminuía a conquista do Jabuti por um contista radicado no interior de São Paulo, dizendo que se tratava de um desconhecido (como se nesse país de analfabetos, inclusive engravatados, isso tivesse algum significado). Aquilo me incomodou, inclusive pelo fato de eu ter sido premiado em 1986 com o feio animalzinho, que conservo na minha estante, pelo meu romance A idade da paixão, o que aliás pouco contribuiu para a divulgação do livro lançado na época pela José Olympio (depois de vinte anos esgotado, reescrito pelo autor, ele foi relançado no ano que passou pela Bertrand Brasil, em edição comemorativa). Enchi-me de brios e mandei um e-mail para eles, dizendo que ser desconhecido não significava necessariamente ser despido de mérito; e se o escritor era desconhecido, a revista com certeza tinha sua parcela de culpa nisso: por que não o entrevistaram, por exemplo? Às vezes, continuei, vejo notícias assim: um fulano qualquer ganhou um concurso de contos entre mais de mil e quinhentos concorrentes. Alguém se interessa em entrevistar o cara, em saber o que se esconde por trás disso, se um novo talento está mesmo nascendo? Espere sentado. Saudosos os tempos em que um autor estreante podia merecer a atenção de um Álvaro Lins, que num de seus famosos rodapés podia construir do dia para a noite uma reputação (ou inversamente acabar com ela, no caso de alguns).
Não publicaram minha carta; mas o editor me respondeu. Alegou que os livros que recebiam a cada semana entupiam toda uma mesa e que não dava tempo sequer de folhear uma parte daquela torrente, sendo virtualmente impossível saber o que continha. Ou seja, nós escritores éramos acusados de escrever demais; e os editores de publicar em excesso.
Não prossegui na polêmica; vi que seria inútil. Mas tive vontade de dizer ao meu missivista que se havia muitos lançamentos, isso era um problema deles, jornalistas culturais, não de nós, autores. Se existisse um real compromisso da (poderosa) revista com a cultura brasileira, eles pagariam uma equipe de leitores para examinar e, se fosse o caso, destacar alguma pepita em meio a todo esse cascalho; porque com certeza há gente boa escrevendo por esse país afora. E, boa ou má, a literatura que fazemos é a expressão da nossa gente e do nosso momento e deveria merecer alguma relevância. Mas essa comissão de leitores é apenas um sonho de verão e a simples idéia deve provocar sorrisos sarcásticos em muita gente boa, que deve pensar “temos coisas mais importantes com que nos preocuparmos”.
Bem, o que resta então? Resta, como já disse, os fatores aleatórios que levam este jornal ou aquela revista a abrir espaço para um livro e não para outro. O empenho (ou prestígio) maior deste ou daquele editor em prol de seu pupilo, a maior ou menor vocação ou saco deste ou daquele autor para o exercício do que se chama de Relações Públicas, o compadrio — “Vamos dar uma força pro fulano, ele é gente boa” ou “Ele é filho do nosso amigo beltrano” — a simpatia, o prestígio social. Ou ainda o fato de que João da Silva — famoso por qualquer estripulia relevante, mesmo que seja um crime, ou qualquer outro feito no campo da atividade humana, por ser um astro do rock ou um ex-Big Brother — descubra-se de repente um ficcionista. Em outras palavras, se algum fenômeno social, ou aberração que desperte curiosidade, se a Mulher Barbada lançar seus poemas ou seus contos, terá espaço garantido: a obra é o que menos interessa, interessa a figura do autor. Afirmo isso baseado na experiência de quem passou a maior parte de sua já longa vida profissional dentro de redações.
E no entanto é importante que se proclame: avaliar a obra de um autor brasileiro não é um favor que se faz a ele — é um direito legítimo que ele tem, do mesmo modo que o público tem todo o direito de saber que existe essa obra na qual ele poderá se refletir, ou não; o leitor deve ter acesso à informação, embasada e isenta, para decidir. Como os suplementos se transformaram em larga medida numa ação entre amigos (“você me elogia, depois retribuo”) ou numa extensão dos departamentos de mídia das editoras, a reproduzir releases, quase toda crítica que trazem vem hoje eivada de suspeição.
Comecei com uma história, termino com outra. Um dia, no jornal em que eu trabalhava, aproximou-se um colega, também jornalista e escritor e hoje famoso novelista da televisão brasileira, e me mostrou a capa do caderno de variedades. Era ocupado pela reportagem com foto sobre um fabricante de best-sellers americanos. Motivo: ele estava indo para a Austrália, onde ia se dedicar à elaboração de seu próximo livro.
— Veja só — comentou rindo meu colega — o cara ainda nem escreveu o livro e já tem toda essa cobertura. O que sobra para nós?