A mesma praça

Uma praça em Antuérpia, de Luize Valente, é um romance de fundo histórico para quem apenas quer passar o tempo
Luize Valente, autora de “Uma praça em Antuérpia”
26/11/2015

O avanço do Nazismo, os episódios que desencadearam a Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, o Holocausto são assuntos muito sérios. Por mais que se queira narrar e descrever o que passaram suas vítimas, nossas palavras estarão sempre aquém de seus sofrimentos. Portanto, a utilização desses temas num romance precisa dar-se de modo a resgatar a memória, a permitir que as atrocidades cometidas não caiam no esquecimento ou não se banalizem. Creio que o romance de Luize Valente, em parte, esteja dentro desta linha de reflexão. Pois usar tais temas para escrever histórias que venham obedecer à lógica de mercado tornaria suspeitos escritores e editores.

Composto por um prólogo, cinco partes e setenta e quatro capítulos desenvolvidos em quase quatrocentas páginas, Uma praça em Antuérpia tenta se inscrever no lastro do grande romance de fundo histórico. A trama principal conta a vida de Clarice e, em parte, de sua irmã gêmea Olívia. O livro apresenta um pouco de tudo do que aconteceu de mais importante no século passado: a guerra civil espanhola, o início da ditadura salazarista, a Segunda Guerra Mundial, a expansão do Nazismo e a tentativa de fuga de judeus poloneses, belgas e holandeses através de uma França prestes a se render. Tudo acompanhado de intensos bombardeios aéreos, avanço de tropas terrestres e de pessoas, em massa, percorrendo estradas inviáveis. No meio disso tudo, um amor impossível.

A narrativa, que assume ares de oralidade, é desenvolvida em flashback por Clarice — logo nas primeiras páginas ela revela sua verdadeira identidade — à neta Tita, e transcorre a partir da madrugada do dia primeiro de janeiro de 2000, durando pouco mais de vinte e quatro horas. O que a mulher de oitenta e três anos, no entanto, apresenta é todo o seu percurso de vida (e de parte da família), iniciado em Portugal dos anos 1930, estendendo-se até o dia do réveillon da virada do século, concentrando-se, sobretudo, no périplo da Segunda Guerra Mundial, à qual a autora dedica quase duzentas páginas.

Clarice apaixonou-se por um pianista judeu, engravidou e viajou com ele para a Antuérpia. O casal tem um filho, Bernardo. Os três passam a viver em relativa felicidade. A mulher, convertida ao judaísmo, é bem recebida pela comunidade local. Theodor, o marido, já não exerce a profissão de músico, mas não deixa de ter um bom emprego. O problema é o que todos nós já sabemos. Alemanha invade a Polônia. Começa, então, a corrida contra o relógio. Os judeus precisam fugir.

A declaração de entretenimento, como vimos, ajuda a perceber a intenções de autor e editor. Não que isso seja condenável, mas deixa a desejar aprofundamento mais sério no universo da escrita. Outra falta que se percebe é a ausência de conflitos existenciais em personagens que extrapolariam o período da guerra.

Falta ousadia
Com o didatismo do romance romântico, através de complicações que dão margem a caracterizações e descrições cada vez mais pormenorizadas, Valente urde uma boa trama central conseguindo envolver o leitor. O problema é a quantidade de personagens–clichês ou estereotipados, o que impossibilita um romance revelador, ou mesmo uma narrativa que apresente algo novo. Como o editor Carlos Adreazza afirma na orelha do livro, trata-se de “entretenimento de fina qualidade”, mas não se pode dizer, com isso, que se trata de fina literatura. Para ser literatura, um livro precisa ter ousadia, e essa atitude não tem lugar no romance. Para quem, no entanto, deseja apenas passar o tempo, ou se distrair com uma boa história, Uma praça em Antuérpia não deixará de ser um livro interessante.

Alguns aspectos merecem ser discutidos. Em primeiro lugar, a narrativa iniciada com Clarice aos 83 anos, levando-se ainda em conta o estofo do romance (grande parte já do conhecimento de todos), revela ao leitor experiente a solução de muitas das subtramas. Segundo, como a história tem um interlocutor, a neta Tita, a linguagem em muitas passagens não combina com a oralidade, assumindo um tom solene:

A Espanha estava devastada pela guerra civil. Um confronto que tomasse o continente poderia ter consequências em Portugal. Era o que ele temia. Minha irmã achava um pouco de exagero do marido, Portugal vivia uma época de aparente prosperidade com Salazar.

As cenas da fuga através da França ocupada já foram narradas e descritas por outros bons autores, cito aqui apenas Irène Némirovsky, que com Suíte francesa narra a debandada de franceses em direção ao sul do país logo após os alemães terem vencido a linha Maginot, e Ian McEwan, em Reparação. Com Némirovsky, pode-se “sofrer” em primeira mão o que é viver uma guerra, sobretudo quando a história é narrada pela própria vítima. Ela caiu nas mãos da Gestapo e morreu em Auschwitz. McEwan, autor muito em voga, eterno candidato ao Nobel da literatura, ambienta pequena parte de seu romance na Segunda Guerra, para ser mais preciso, no episódio conhecido como retirada de Dunquerque. Ele nos apresenta, também, um par de gêmeos, que possui função distinta na narrativa. Embora a guerra não seja motivo nem tema central do romance, o autor inglês descreve de forma minuciosa a fuga dos soldados através do norte da França até a cidade que serviu como ponto de resgate das tropas inglesas que se mostravam em desvantagem no continente europeu no começo do conflito. Valente deve ter lido estes autores, demonstra ter estudado bastante os episódios. Mas vale a pena dar uma conferida nestes dois clássicos da literatura europeia.

Na Península Ibérica e, consequentemente, nas Américas Central e do Sul, é possível observar, algumas vezes, o predomínio de novelística extensa e lacrimejante, sobretudo quando levamos em conta o namoro desta com a forte presença da cultura de massa. O romance de Valente cai com uma luva para ser adaptado para a TV, ou mesmo para ser adaptado e apresentado como uma série, num desses canais pagos. A declaração de entretenimento, como vimos, ajuda a perceber a intenções de autor e editor. Não que isso seja condenável, mas acaba deixando a desejar aprofundamento mais sério no universo da escrita. Outra falta que se percebe é a ausência de conflitos existenciais em personagens que extrapolariam o período da guerra.

Volto ao que mencionei no início. As fronteiras entre a memória e o esquecimento, entre a literatura e o livro escrito para o mercado, são muito distintas. A literatura está no impacto causado por situações que se vejam fora da História, porque sobre esta todos já sabemos. Temos consciência também de que já não temos palavras suficientes para descrever as inúmeras atrocidades cometidas, os próprios acontecimentos pulsam por si sós. Além disso, num mundo dominado pelo mercado, muitos editores gostariam que a literatura fosse o que ela não é. Portanto, o estranhamento é a única medida para sabermos se um livro vale a pena.

Uma praça em Antuérpia
Luize Valente
Record
363 págs.
Luize Valente
É carioca e jornalista. Trabalha há mais de vinte anos com edição de texto em televisão. É autora, com Elaine Eiger, de Israel rotas e raízes (1999) e dos documentários Caminhos da memória — a trajetória dos judeus em Portugal (2002) e A estrada oculta do sertão (2005). Estreou na ficção com o romance O segredo do oratório (Record, 2012).
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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