A marca do imprevisto

Rinaldo de Fernandes utiliza o inesperado para enriquecer os contos de O perfume de Roberta
Rinaldo de Fernandes: finais impactantes e nem sempre felizes.
01/02/2006

Uma orelha que fala bem de um livro é constrangedora. Mais elogios na capa do livro começam a levantar suspeitas sobre a qualidade do mesmo. E quando dentro do livro há uma enxurrada de comentários críticos, sempre a favor, a indisposição do leitor é inevitável, mesmo sabendo que a culpa, na maioria das vezes, é do gerentão de marketing da editora.

O livro de contos O perfume de Roberta, de Rinaldo de Fernandes, tem tudo isso: orelha, contracapa e comentários internos carregados de bajulações, desencorajando o leitor. Mas o que causa uma indisposição inicial acaba por se revelar um efeito favorável, pois já no primeiro conto a expectativa negativa se esvai, surpreendendo o leitor. E nada mais agradável na literatura do que a surpresa.

O imprevisto acaba sendo a marca nestes contos de Fernandes. Não apenas pela surpresa de encontrar um bom livro quando a expectativa era o contrário, mas, principalmente, porque o autor usa o inesperado para enriquecer suas histórias. Que isso é positivo na literatura todo mundo sabe, mas são poucos os autores que dominam a técnica ou se arriscam nela.

Rinaldo de Fernandes é nordestino, mas parece um mineirinho na arte de contar histórias. Começa de leve, vai descrevendo o cenário com detalhes, valoriza bastante cada um dos personagens e prende o leitor com um texto correto e saboroso. Mas há sempre uma surpresa à espreita, seja por meio de uma guinada completa na rotina do conto, seja por um final impactante e nem sempre feliz.

Ilhado, o primeiro e um dos melhores contos de O perfume de Roberta, já dá uma mostra do que vai ser o restante do livro. O ritmo começa com suavidade, na descrição de um velho restaurante e de seus elementos, como o garçom preguiçoso, a cozinheira que põe a cabeça na janelinha de atendimento e a presença pacata de seus fregueses.

O garçom cochila, a cortina de tiras na porta da cozinha se retorce com o vento. A cozinheira, agora recostada ao balcão, estira o olhar morto na extensão do restaurante. A sombra de um dos coqueiros azula a areia próxima a um velho balanço de criança.

O que parecia ser mais uma noite tranqüila de bebidas, pratos de camarão e conversa à toa nas mesas quase vazias começa a se transformar com a chegada de um mendigo, que rouba um par de tênis largado por um dos fregueses enquanto este namora na beira da praia. Em minutos, a calmaria vira um inferno de luta, sangue, facão e morte.

O mendigo vem no meu rumo, o facão erguido, já torto. Desce-o firme em minha cabeça, mas desvio — e a lâmina raspa meu ombro, fende a madeira do barco.

Essa transposição de um estado de absoluta tranqüilidade para um cenário violento não é prerrogativa apenas de Ilhado. Fernandes volta a explorar esta mudança radical e repentina em contos como O cavalo, A morta, Duas margens, Negro, Confidências de um amante quase idiota, Pássaros, A tragédia prima de Sílvia Andrade e Sariema.

A estratégia usada pelo autor nestes contos é forte, mas não visa a apenas assustar. Na verdade, a violência excessiva surgida do nada serve também para uma reflexão sobre a instabilidade humana, sobre como o homem sai tão facilmente da racionalidade pacífica e chega a atos extremos, insensatos e, infelizmente, de violência gratuita. Afinal, como pode alguém estar num minuto namorando alegremente, e noutro duelando a vida por causa de um par de tênis?

Fernandes também explora esta questão sob outros aspectos. O autor mostra que, além do apego a um bem material, o desejo banal e a humilhação moral também são fatores que fazem o homem sucumbir de seus valores para um comportamento animalesco e até assassino.

O importante é que Rinaldo de Fernandes não busca dar lições de moral. A profundidade em seus contos existe, mas não é o caminho obrigatório da leitura. Mesmo em histórias com o delicado tema da prostituição infantil, como os contos Oferta e O perfume de Roberta, é a literatura que está em primeiro plano. A força está no próprio texto e não na denúncia.

No conto O perfume de Roberta, o narrador transa com uma menor sem-teto dando-lhe em troca um prato de comida. Ele é tão sem escrúpulos que leva roupas da filha adolescente para que a mendiga possa acompanhá-lo a um restaurante.

Ela já se habituou a todo final de noite me devolver a roupa e o perfume de minha filha. Paro o carro diante do depósito, fico esperando ela ir se trocar atrás da parede. Sinto um pouco de cansaço.

A habilidade de Fernandes não se restringe ao uso inteligente da surpresa. Ele também perambula pelo fantástico em O cavalo, quando a mulher que cansa de apanhar do marido vê no animal a chance de sair pelo mundo em busca da liberdade. O detalhe é que ela mora na cidade e o cavalo entrou por acaso em seu jardim. Em O mar é bem ali uma mulher solitária se desespera e acredita que um porco pode ser uma companhia, no apartamento.

Já no último conto do livro, Sariema, inspirado em A hora e a vez de Augusto Matraga (Guimarães Rosa), Fernandes esbanja domínio da linguagem ao transformar a mulher do sertão em uma guerreira. Sariema tem a honra tirada por Nhô Augusto, que também mata o seu marido. Mas ela não aceita a condição da fragilidade feminina e enfrenta o desafeto.

E ele veio vindo, trocando as pernas, jogando a lâmina, do mesmo jeito que com o Orósio, eu me derreando, ele querendo resolver logo, o movimento forte no braço, a mão ligeira, ô homem liso! Eu caçando um meio de mandar a faca, mas nada, ele firme, me feriu…

Assim como a jagunça Sariema, O perfume de Roberta é uma obra de muita força. O agradável fator surpresa e o texto exemplar quase que desobrigam a reflexão, mas ela está sempre ali, como opção para o leitor. Definitivamente, é um livro que dispensa a edição provinciana de elogios na orelha, na contracapa e nos comentários internos. Mas, com certeza, os elogios são pertinentes.

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O perfume de Roberta
Rinaldo de Fernandes
Garamond
183 págs.
Rinaldo de Fernandes
É professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal da Paraíba. Organizou as coletâneas O Clarim e a oração: cem anos de Os Sertões e Chico Buarque do Brasil. Como contista, publicou O caçador (1997). No Rascunho, assina a coluna Rodapé.
Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho