Comentando recentemente a situação do mercado editorial, Márcia Denser fez uma análise desencantada do que se anda publicando no país: “Há uma oferta imensa, massiva, indiscriminada — fica difícil separar o joio do trigo, até porque atualmente é humanamente impossível ler tudo. Aquilo que Mirisola quis dizer com ‘profissionais qualificados no ramo que organizam antologias, escrevem de graça em jornais importantíssimos do Paraná, dão workshops e oficinas literárias, lançam livros geniais toda semana na Mercearia São Pedro’ e que ao leitor parece piada, esculachos à parte, é a expressão da realidade, e o resultado é uma indigestão de maus autores e textos”.
Como se vê, a autora se deixa levar por uma onda de desânimo e, sem papas na língua, reparte conosco, como sempre fez, suas opiniões sarcásticas. Lamentando a “ausência de crítica especializada nos grandes jornais”, a multiplicação dos blogs que elimina o tempo de maturação e reflexão entre a escrita e a publicação, e, inclusive, permite que qualquer um publique seus textos sem o crivo das editoras; ela prossegue, nessa análise publicada na revista virtual Cronópios, apontando como um dos males atuais a “anomia (ausência de regras) do campo literário determinada por uma mídia irresponsável, sem critério, autofágica, anômica ela própria”. E termina por revelar a aposta das editoras em tempos difíceis: “[O] editor da Record, Sérgio Machado (aliás, meu editor), disse que em tempos economicamente bicudos o mercado só aposta em livros que garantem um retorno líquido e certo, tipo memórias, biografias e reedições de autores famosos. Faz sentido”. Márcia, no texto em questão, escrevia para comentar o (re)lançamento das obras completas de Jorge Amado pela Companhia das Letras. Mas acabou sendo auto-referencial, pois Toda prosa II é uma reedição de obras já publicadas pela autora e que foram escolhidas por ela para figurar nesta antologia de nome ambíguo.
O mercado literário brasileiro, visto pelo ponto de vista de uma leitora voraz, é deficiente. Deixou esgotadas, durante anos, as obras de Dostoiévski e de Faulkner, por exemplo. Distribui sempre os últimos lançamentos e deixa os livros mais antigos fora de circulação. Os leitores brasileiros se tornaram assíduos em sebos, à procura de obras tais como O presidente negro, de Monteiro Lobato, que acaba de ser relançado, tão oportunamente, neste momento em que um afro-descendente (expressão tão distante do universo lobatiano) e uma mulher branca se enfrentam na disputa pela Casa Branca. Enquanto isso, o mercado atulha as estantes das livrarias com quaisquer lixos garimpados em feiras literárias estrangeiras, deixando sem espaço os trabalhos literários de crítica séria e acadêmica, disputados em fotocópias (ilegais, e daí?) nas reprografias universitárias. As reedições, que parecem surgir nos momentos de crise, aparecem para suprir uma demanda de um grupo fiel, que prefere ler a assistir ao BBB229. Saudamos, assim, a iniciativa que nos trouxe de volta autores que brilharam em décadas anteriores, e que se mantiveram vivos no imaginário de leitores que, sem saudosismos, percebem que sem as diferentes peças do mosaico o desenho literário nacional não pode se completar.
A frase de Mirisola, que a autora cita e com a qual concorda, pode ser verdadeiramente cômica, mas é falha na análise. Se os críticos se vêem obrigados a escrever de graça em jornais literários, se os escritores se vêem obrigados a dar workshops, se os lançamentos são todos incensados como “geniais”, mormente quando feitos em lugares da moda, o erro não está em quem escreve e ensina e publica, mas em outro aspecto de nossa realidade cultural. Talvez se deva ao fato de valorizarmos apenas os holofotes que ofuscam e atordoam, e ignorarmos a luz própria que cada qual possa irradiar.
A volta da caçadora
Voltando à prosa de Márcia Denser, que não é toda mas é íntegra, este livro traz de volta a instigante Diana Marini, a Diana caçadora de outras épocas, que agora faz um balanço de suas escolhas no texto pungente de O quinto elemento. Uma quase novela se destacando entre os contos, com o subtítulo de A história privada de uma mulher pública, texto em primeira pessoa, confessional, revelador da irônica mirada com que a narradora contempla as escolhas feitas em sua trajetória como “persona”. Já na primeira parte do texto, acompanhamos sua descoberta de sentido através da literatura, e, conseqüentemente, de um futuro, que, atônita, vai perceber compartilhado pelo de Diana Marini, personagem que toma as rédeas de sua vida e passa a representá-la: “um não-eu, um eu-também”, a “face dominante”, que decide viver de literatura, decisão que se revelou “catastrófica, algo que ocorre fatalmente a alguém que se atribui poderes divinos, e quem ultrapassa o Métron”. Mas, tendo transgredido, tendo apostado todas as fichas na queda, a persona se desconstrói até que “EU” retorna, um eu que se torna taróloga, proficiente em esoterismo, eu que conhece a solidão do fracasso. “Diana Marini voltou a ser personagem de ficção, isto é, voltou para dentro com o rabo entre as pernas.” E as histórias que protagoniza nesta seleção revelam mais seu lado frágil e suscetível à dor que o lado em comum com as deusas “Ártemis, Astarté, Afrodite, Ishtar, aquelas deusas biscates”. A Diana que aparece em Cometa Austin, em Exercícios para o pecado, Sodoma de mentiras e Todos os amores é aquela temperada pela Júlia das difíceis recordações do pai, dos desafios que demonstram a solidão de quem é sensível e reage com ímpeto autodestrutivo às dores maiores que o mundo e que aparece nas histórias Adriano.com, Memorial de Álvaro Gardel, O último tango em Jacobina e Primeiro dia de aula. Outra personagem aparece viva e pulsante nas histórias de Márcia: a cidade de São Paulo. Lugares, recantos, ruas e restaurantes, redações, apartamentos em edifícios decadentes e cobertos de pastilhas, a cada evocação, uma materialização de um espírito que se assenhoreia de seus freqüentadores e lhes determina o comportamento. Ler (e transcrever) os fragmentos da cidade é tarefa a que se impõe essa narradora, com olhos nublados de dor e de álcool. Conhecendo seus descaminhos, Denser se aventura, construindo labirintos para perder-se e perder-nos. Imprimindo a marca de sua solidão a cada passo, a cidade se transforma numa paisagem humana: “então vi aquela muralha de corpos e bancos na minha frente”; atemporal: “o lusco-fusco é a atmosfera permanente desse bairro labiríntico fora do tempo”; e também mítica: “a cidade podia ser infinita porque a julgara apenas imensa não a cogitara simultânea, ilimitadamente agonizante”. Cenário perfeito para as histórias de “desejo e pó”, ou seja, sexo e morte. Outro tema explorado neste conjunto de histórias é o da passagem do tempo: um tempo sem ordem cronológica, que caminha para trás, e permite o vaivém etário das personagens, que ostentam sua juventude frente a amantes de muito mais idade. A consciência da passagem do tempo, a certeza da perda da juventude, o retorno a temas e palavras e personagens que se repetem, infinitos, simultâneos, agonizantes dão um novo sabor às narrativas, um travo amargo como uma ressaca existencial. A impressão que fica nos leitores é a de que Diana Marini envelheceu. Mas, se a linguagem endureceu, cada vez mais ácida, a narradora não perdeu a ternura pegajosa de bêbada, que olha com olhos lacrimosos os outros falidos que a acompanham em sua peregrinação pelas ladeiras e parques da cidade. Diana já não é mais a “deusa biscate” da juventude, é uma cobra no bote, analisando e aguardando o momento certo de atacar, ou de se espojar na lama da autopiedade. Temerosa, ela se apresenta ladeada por quatro “cartas de recomendação”: orelha, quarta-capa, prefácio e posfácio, parecem dar a mão a uma dama trôpega que aparece mais uma vez no palco, numa performance que visa revelar, para as novas gerações, o encanto de uma era que, se ainda não totalmente desvanecida, se cristaliza num “horizonte de marcos. Ou cruzes”.