À maneira de poemas

Marco Lucchesi e Ivan Junqueira fazem crítica como conjunção ao poético
Marco Lucchesi, autor de “Clio”
01/03/2010

Um crítico literário, para sê-lo de fato, não necessariamente precisa ser autor de literatura, ao menos no sentido mais habitual do termo, o que comprovam nomes como Harold Bloom e António José Saraiva, em âmbito internacional, e Antonio Candido e Alfredo Bosi, no espaço brasileiro. Apesar de reconhecidos eminentemente pelo ofício reflexivo, tais autores (e alguns outros não citados) são, ainda que de outra estirpe, poetas.

Ao lado desse conjunto, há em nossa tradição intelectual um farto rol de críticos (de artes em geral) notabilizados principalmente pelo trabalho estético, e então nos vêm os nomes — para ficar somente com os nacionais — de Machado de Assis, Mário de Andrade, Vinicius de Moraes, José Paulo Paes, Augusto de Campos e Ferreira Gullar.

Somando-se ao grupo dos que se bipolarizam entre criação e reflexão para se confluírem na unidade da realização artística (sim, porque a crítica é uma expressão da arte), surgem os livros Ficções de um gabinete ocidental e Cinzas do espólio, de autoria, respectivamente, dos poetas cariocas Marco Lucchesi e Ivan Junqueira.

Mosaico intelectual
O folheio prévio e a leitura detida são ações complementares e consecutivas que caracterizam as relações comuns entre aqueles que lêem e aquilo que é lido. No entanto, em se tratando de Ficções de um gabinete ocidental, tais ações revelarão duas realidades distintas do mesmo livro.

Ao observar as seções que dividem o livro, os títulos dos textos e as apresentações feitas no prefácio e nas orelhas, vê-se imediatamente o alto e sofisticado gabarito de Marco Lucchesi para a execução de suas tarefas literárias. Em seu “currículo” constam, dentre outros fatores, a fluência sólida de mais de quinze idiomas; a graduação em história e a pós-graduação em literatura; o contato íntimo com culturas ocidentais (famosas, como a italiana, ou incomuns, como a romena) e orientais, mas sem prescindir das de algumas regiões do interior do Brasil, como a nordestina; o conhecimento efetivo de ciências como a filosofia, a teologia e (surpreendentemente) a matemática; e uma candura na escrita a revelar vivo interesse em tocar o leitor.

A reunião desses itens — aqui atribuídos a um jovem de 46 anos — são um verdadeiro alento a quem assiste com pesar aos empobrecedores tempos da especialização, nos quais grande parte dos estudiosos literários limita-se a tratar exclusivamente de imagens e de metadiscursos. São esses itens que fazem de Lucchesi um intelectual na acepção da palavra, visto que sua vontade de saber extrapola as nocivas fronteiras segregadoras das disciplinas, e todo o aparato com que se equipa o autor torna seus estudos mais legítimos, pois as autênticas obras de arte são movidas pela vontade de integrar-se ao grão e ao turbilhão da existência, e o pensamento que intenta entendê-las pela perspectiva da cissiparidade é, de antemão, um pensamento traidor.

Isso posto, não é fruto do acaso ou apenas mero gosto a vocação do autor para a conciliação de práticas e saberes: “A minha paixão tem sido a de conjugar as partes quebradas de um diálogo. E tenho como certo que a cidadania vem dos âmbitos de uma conversa toda marcada de adição (…). Não quero ‘ou’. Quero ‘e’”, diz com singular felicidade em entrevista a Floriano Martins, no texto que encerra o livro. Noutra declaração, dessa vez no primeiro texto — Confissões na modernidade líquida —, Lucchesi revela, com maior beleza, os desejos que lhe frequentavam quando menino:

Olhava para as flores e as pedras e sonhava descobrir a secreta razão que as envolvia. Imaginava fórmulas para a máquina do tempo. Desejo de voltar ao passado e conversar com Jesus sobre a sua infância. Testemunhar a morte de Sócrates. Visitar o Egito de Amenófis IV e a teologia de seus raios. Ter os olhos claros nas primeiras imagens do Brasil. Contemporâneo de tudo, tomar parte nas assembléias da França Revolucionária; aplaudir Shakespeare no Teatro Globo; ir ao palácio do Czar de todas as Rússias.

Mesmo assim, o livro de Lucchesi não alcança o êxito que se poderia esperar de uma obra assentada sobre tão rico e variado arsenal. É muito comum que livros teóricos sejam compostos por textos dispersos que seus autores apresentam em conferências ou em jornais, o que os coloca, normalmente, num patamar médio, pois nestes não se encontra total unidade ou o esforço de construção próprios das teses ou dos tratados. Apesar disso, os textos que compõem tais volumes críticos justificam-se por formular ou fortificar conhecimentos a respeito de escritos ou concepções, e Ficções de um gabinete ocidental tem sua maior falta justamente no tocante a tal aspecto, pois os textos que o compõem carecem da apresentação de um objetivo mais específico, e vagam, quase sempre, entre um impressionismo mais sentimental do que analítico — “Fico aborrecido com Sílvio Romero. E enternecido com Mário de Alencar. Pedindo um pouco mais a Viana Moog. E um pouco menos a Magalhães Júnior”, diz O homem subterrâneo, sobre Machado de Assis — e a exibição algo gratuita da bagagem poliglota do autor: “Trago outras montanhas em meu horizonte: o Popocatépetel, na Cidade do México, e o Illimani, em La Paz. E assim confundo essas montanhas do Oriente e do Ocidente (…). Nado nas águas de três línguas abissais: o turco, o árabe e o persa”, escreve Lucchesi em Rumi: diário de um tradutor, a partir do qual ele relata sua empresa-aventura de traduzir, in loco, páginas da literatura iraniana, mas sem que tenhamos uma clara apresentação contextual da obra (nem da autoria da mesma) a ser decodificada. Além, há nos textos propriamente ditos e nas notas explicativas num apêndice, incontáveis citações estrangeiras sem qualquer tradução, sendo duas delas em alemão.

O livro mostra-se também defasado da apresentação de uma razão de ser na seção consagrada às relações entre literatura e matemática, o que, sem a menor dúvida, aguça o interesse do leitor. A despeito de contar com uma bela entrevista com o professor e autor do conceito de etnomatemática Ubiratan D’Ambrosio (o qual não abre mão de salientar que o trabalho intelecto-educacional deve ter como diretriz primeira a busca de uma cultura da paz) e com mais quatro textos a respeito do assunto, não se demonstra, com exemplos nítidos e convincentes, como as duas disciplinas podem se tocar, estabelecer influências recíprocas e constituir uma nova unidade.

Entretanto, devem ser salientadas boas partes do livro, em especial aquelas que retiram do limbo páginas importantes de nossa história literária. Refiro-me mais especificamente a Frutas do Brasil, sobre o livro homônimo escrito por Frei Antônio do Rosário em nosso período colonial, e Jorge de Lima e o sertão, a versar sobre a prosa ficcional do poeta alagoano. No mais, as páginas de Ficções de um gabinete ocidental, embora grafadas com um tocante afeto, ficam mais como um caderno de anotações particulares de seu autor do que como contribuição efetiva aos estudos sobre literatura em geral.

As cinzas vivificadas
Não é só pela comparação ao livro de Marco Lucchesi que Cinzas do espólio, de Ivan Junqueira, faz-se um livro apreciável. Mas o cotejo é bastante válido. Ambas as obras têm caráter fragmentário, visto constituírem-se de escritos dispersos que seus autores produziram para finalidades diversas, especialmente para a apresentação de livros e para o discurso em colóquios. Já a partir disso, o livro de Ivan Junqueira mostra-se mais bem arrumado em seus detalhes, e transmite, por isso, sua mensagem com maior êxito, fato verificável na nota introdutória (na qual é flagrante a mão de um poeta, a extrair das palavras sons de violino): “Este pode ser entendido como um tecido algo fragmentário e descontínuo cujas partes não se articulam segundo nenhum princípio de coesão ou reciprocidade. Os textos que o compõem são, como sugere o título que lhes aponho, as cinzas de um espólio (…). Dou-os à estampa como quem colhe as miudezas que jazem no fundo das gavetas”.

Há atualmente grande propagação da idéia (generalizada) de que os estudos literários são viciados em suas velhas fórmulas de falar sobre as obras, e não com as mesmas. A orientação para que a ensaística não manifeste uma relação separatista entre sujeito e objeto com a literatura é sem dúvida importante e fascina por seu caráter revolucionário (em algumas passagens, o livro de Marco Lucchesi mostra-se adepto dessa proposta), mas não se pode perder de vista que a justificativa de toda prática crítica, em seus diversos matizes, é dar clareza, ou mais clareza, àquilo que subjaz nas cavernas da incompreensão, devendo ser o crítico aquele que se lança à brisa ou ao dilúvio da tarefa, sempre arriscada, da interpretação. E há nisso mais um ganho de Cinzas do espólio, porque em todos os seus textos o leitor tem plena noção de onde pretende ir o autor, sabendo também, ao final, que a pretensão foi alcançada com brilho.

Notável tradutor e genial poeta, Ivan Junqueira confirma com este livro ser um distinto homem de letras também no que tange ao ensaísmo, daqueles que, raramente, não são originários das faculdades de letras. Apesar da modesta intenção de todos os textos, não há um só escrito em que o autor não deixe patente sua fina inteligência: “O problema é que não podemos — e, mais grave ainda, não devemos — estar a todo instante reinventando a língua e a linguagem, sob o risco de jamais conseguirmos uma e outra enquanto realidades literárias”, afirma ele em A poesia brasileira no fim do milênio, uma importante reflexão acerca da obsessão presente no discurso dos poetas contemporâneos, muitos dos quais nascidos com a escrita já enrugada pelo estatuto da novidade.

A senda mais percorrida por Junqueira em sua atividade reflexiva é a análise de poesia, porém isso não o impede de empreender firmes incursões pelas vias da prosa ficcional, cronística e também ensaística, como provam os textos José Veríssimo e a crítica, Machado de Assis cronista e Cervantes e a literatura brasileira, com o qual, inclusive, o autor mostra-se respeitável pesquisador.

Estão presentes noutras partes do livro fatores de uma leitura global da realidade e de outras vertentes artísticas, a fazer com que Cinzas do espólio não se circunscreva somente à contemplação do fenômeno literário (não se entenda com isso que a crítica específica de literatura seja menor), sendo, antes, um livro de crítica de cultura: “O piano incorporou-se à nossa vida social durante a segunda metade do século 19, quando chegou a tornar-se quase uma febre entre as jovens de família que o martelavam para o deleite de pais e amigos”, constata Junqueira em Arte do piano: sabedoria e opulência. E é saudável aos que prezam a associação entre intelectualidade e senso crítico observar que o autor de O fio do dédalo não se isenta de lançar juízos sobre as tortas pernas com que tem caminhado o planeta — “(…) toda a humanidade, cujos mais estimados valores se aproximam agora da ruína, sob o signo de uma única e melancólica preocupação: a do dinheiro”, diz ou autor em Ernesto Sabato: 90 anos, e, um pouco antes, em A criação literária: “Quem sabe o Terceiro Milênio não nos reserve um outro Renascimento ou um novo Século de Luzes que nos liberte do imediatismo pragmático e do desenfreado hedonismo em que nos consumimos?”.

É como leitor de poesia — na especificidade de livros brasileiros ou na grandeza da tradição ocidental, em suas vertentes clássica e moderna — que Ivan Junqueira eleva a maior grau sua atividade crítica. Seja em comentários a respeito de A divina comédia, de Dante, seja sobre a poesia do injustamente estigmatizado Lêdo Ivo, o autor conjuga, neste Cinzas do espólio, acuidade de leitura a uma escrita erudita e clara, tornando manifesto seu apreço por determinadas obras ou companheiros de ofício, como Otto Maria Carpeaux e Hélcio Martins. Numa despretensiosa empreitada, o autor, poeta que é, faz dela um feito notável, vivificando as cinzas que porventura pareciam condenadas à morte do ocultamento.

Ficções de um gabinete ocidental
Marco Lucchesi
Civilização Brasileira
287 págs.
Cinzas do espólio
Ivan Junqueira
Record
336 págs.
Marco Lucchesi
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1963. É poeta, tradutor, ensaísta, professor da UFRJ e cavaliere da república italiana. Autor de livros como A memória de Ulisses, Sphera, Os olhos do deserto, Saudades do paraíso e Bizâncio, entre outros. Vive em Niterói (RJ).
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho