Em Quincas Borba (1891), de Machado de Assis, Rubião recebe como herança a fortuna de Quincas Borba, com a condição de que cuide de seu cachorro, cujo nome era o mesmo do dono. No entanto, o modesto professor primário herda, além do dinheiro, a loucura do amigo, dissipando o capital ao sustentar diversos amigos parasitas. O romance traz um desenlace comovente e genial, em que, no ápice do delírio, o herdeiro acredita ser o imperador Napoleão III. Morre pobre e louco, abandonado pelos falsos companheiros, percorrendo, na companhia do cão e debaixo de chuva, as ladeiras de Barbacena.
A investigação de estados alterados da mente foi questão cara ao bruxo do Cosme Velho, que antagoniza “razão contra sandice” em muitas de suas obras, a exemplo do conto O espelho e da novela O alienista. Muitos de seus personagens, como Simão Bacamarte, Brás Cubas e Bentinho, em algum momento da trama passam por algum desequilíbrio ou mesmo enlouquecem, evidenciando a tênue fronteira entre loucura e sanidade. Essa ameaça constante — a sensação de que um fio de cabelo separa uma situação da outra — sustenta muitos momentos de sua prosa, que investiga a identidade como um dos problemas fundamentais, como afirma Antonio Candido. A obra machadiana gira, de acordo com o crítico, em torno da pergunta “Quem sou eu?”.
“Eu só não queria que pensassem que eu estava louca. Estava?” A indagação constitui o eixo do belo João Maria Matilde (2022), de Marcela Dantés. Mais de cem anos a separam das narrativas de Machado de Assis, mas elas se encontram unidas pela presença de personagens desequilibrados, criando uma contiguidade entre esses destinos marcados pela frágil saúde mental. No romance, Matilde Belo tem 38 anos, um relacionamento estável com o namorado Abel e um trabalho como tradutora de inglês e espanhol. Há algum tempo, a mãe adoeceu com o mal de Alzheimer, já não reconhece a filha e vive em uma casa de repouso. Matilde nunca conviveu com o pai, figura sobre quem possui escassas informações. Somada a isso, a luta da protagonista é enfrentar os próprios demônios, lidando desde a adolescência com várias questões psiquiátricas: “Deixo livre quem está comigo, porque só coexiste com a minha mente quem quer”, alerta. Um telefonema informando a morte do pai em Portugal a convoca para a leitura do testamento e traz um ponto de virada no romance, dando início à jornada para compor o retrato possível do pai ausente.
Matilde decide então viajar sozinha para a pequena vila medieval em que o pai nascera, caracterizada por ruas de pedra e uma muralha histórica. Ali, a personagem se instala em um hotel que se assemelha a um claustro, e passa a ter sucessivos encontros com o advogado Pedro Cruz e sua mulher Rute, ambos amigos da família. Só então compreende que herdara não somente o dinheiro paterno, mas também sua instabilidade mental. Renascer em Portugal às vésperas dos quarenta anos passa pela consciência de estar finalmente diante do segredo a respeito do desaparecimento do genitor, ligado à impossibilidade de se manter emocionalmente estável, uma vez que a esquizofrenia estabelecera uma rotina de internação, medicamentos e medo dos surtos. Entrar em contato com essa verdade traz certa libertação, mas também grande sofrimento.
Modo certeiro
Uma das virtudes da escrita de Dantés é nomear a enfermidade psíquica de modo certeiro, mas com toques de ironia. Dentro do peso dessa história, a autora recorre por vezes à metalinguagem, expediente eficiente para esvaziar o que poderia facilmente desandar em tom piegas: “Essa história dava um livro, mas merecia uma heroína melhor do que eu. Alguém estável, com vista boa”. A sagaz autoconsciência e a capacidade de rir das próprias mazelas torna o texto mais saboroso. Afinal, como afirma a narradora, trata-se do clichê da filha em busca do pai (um defunto, uma ausência, um drama), mas a escritora se equilibra bem ao evitar o registro lacrimogêneo apostando na possibilidade de se distanciar para ver melhor.
Não à toa surge a menção ao fato de estar sem óculos, sendo incapaz de enxergar como deveria. Isso fica evidente na própria viagem para Portugal, momento em que a ansiedade diante do desconhecido e o pânico do avião se transformam em pretexto para a análise do próprio desconforto:
A comida indigesta, a circulação comprometida, a boca seca. O pânico iminente, o pânico mas, sobretudo, as pessoas. Desconfio que as pessoas mostram o pior de si numa viagem (…).
A não compreensão sustenta belas passagens do romance; Matilde é uma tradutora, alguém que lida com palavras e reflete o tempo todo sobre a linguagem. No entanto, Portugal traz sensação permanente de angústia, lugar de pertença do pai e de não pertencimento da filha: ela escuta uma língua que é sua, mas falada de forma a soar estrangeira, prosódia na qual não se reconhece. A língua paterna é estranha; a materna, familiar. O primeiro morreu e a segunda alienou-se na doença, uma morte em vida.
O próprio título evoca a incapacidade de distinção entre os nomes do pai, João Maria, e o da filha, Matilde. Onde começa um, em que ponto termina o outro? Distinguir, separar-se, constituir uma unidade autônoma, todas são questões prementes para a jovem cujo pai sempre foi um fantasma no passado da mãe carinhosa que proveu suas necessidades. Mas o vínculo com a lucidez é batalha antiga e permanente, “uma sucessão de delírios e tardes enevoadas”, afirma.
A pergunta definitiva sobre a própria identidade na tradição literária fica evidente, muitas vezes, na perspectiva de um animal sobre o humano. Vem da Odisseia a célebre cena em que o cão Argos surge como único a reconhecer Ulisses após vinte anos, no retorno a Ítaca. Apenas ele percebe o que todos ignoram. Maltratado, velho e cansado, morre aos pés do guerreiro após o reencontro. Em João Maria Matilde, um eco dessa presença se manifesta na figura canina cumprindo função narrativa determinante: Bitoque, espécie de hóspede honorário do hotel, passa a acompanhá-la dia e noite, em inexplicável sintonia que culmina na constatação da impossibilidade de se separar dele.
Na Odisseia, assim como em Quincas Borba, o cachorro, apesar de tratado com displicência, segue fiel ao dono, mostrando-se seu amigo mais verdadeiro. Em Dantés, também o animal parece o único a se insinuar de modo definitivo na vida da protagonista após a viagem a Portugal. Aquela que vive da escolha criteriosa de palavras encontra em Bitoque uma comunicação que prescinde delas. Nessa equação complexa, herda-se a instabilidade emocional e o dinheiro paterno. Tal legado indigesto deve agora ser incorporado por Matilde, ciente da reversibilidade dos afetos e da impermanência dos estados de espírito: “Eu tinha medo, mas isso não era nenhuma novidade”. O olhar amoroso do cão será talvez o frágil fio a sustentar a jornada em direção à nova vida por construir.