A Lolita de Faccioni

Resenha do livro "Duplo dublê", de Mauro Faccioni Filho
Mauro Faccioni Filho, autor de “Duplo dublê”
01/02/2003

A poesia de Mauro Faccioni Filho não aceita um leitor inerte. Requer participação — erótica e mental — a cada verso e assim se constrói uma forma ímpar de alteridade. O Estranho, reclamado como fio condutor da obra pelo autor, em seu Índice-Introdução, é o elemento por meio do qual cada poeta-leitor — quem lê poesia hoje no Brasil a não ser os poetas? — pode acessar o estranho mundo que se entreabre em Duplo dublê, a segunda recolha de poemas do autor.

E que poesia é essa que se mostra de forma tão violenta, com elipses e perversão da sintaxe, com imagens aparentemente desconexas e longos períodos caudalosos que teimam em dizer em vinte linhas o que o cânone atual manda dizer em duas? Antes de tudo, é poesia libertada, já que o autor conscientemente segue um caminho próprio, afastando-se dos dogmas peculiares à chamada “poesia contemporânea brasileira”, que tanto prejudicam o desenvolvimento de uma voz própria. Ao preferir o verso longo e declamatório, Faccioni Filho abandona o servilismo que caracteriza nossos poetas, tensos ao imitar as “vanguardas” paulistas e cariocas, e assim engendra sua própria obra com um traço de independência marcante. É bastante nítida a influência da beat generation norte-americana: seus períodos e sintagmas quase-pensantes invadem a página, o senso de beleza se desdobra em um cotidiano pornográfico e o coloquial se mineraliza em pequenos momentos.

Uma poesia que privilegia a dança do intelecto, em detrimento da sonoridade — eis mais um ponto em que o poeta se afasta da moda dominante (em poemas como Quando as bolas de fogo rolaram pelo céu e Caminho para a montanha das palavras). Além da racionalização do discurso poético, Faccioni propõe ao seu leitor um complexo jogo de anatomias e geometrias. Anatomia porque o desejo sexual, a fome dos séculos, é um dos motes do livro (no poema Obtusos como o pó). A referência, às vezes elegante, às vezes propositalmente vulgar, ao corpo do ser e a narração de um orgasmo da palavra na belíssima série dos Teoremas da entropia — o melhor é o segundo — dão ao livro um caráter extremamente perturbador. A insistência em nomear peitos, mamilos, nucas, bocetas e pênis — além de outros objetos da ars erotica de Faccioni Filho — obriga o autor a desconstruir a massa informe de recordações que o assedia.

A erotização sublime da memória em Faccioni Filho ganha dimensões frutíferas e extasiantes na segunda parte do livro, na qual se localizam os melhores textos, sem dúvida, o que torna a obra desigual em termos de qualidade, já que Teoria dos duplos, diferenciais & integrais vale por si só, sem estar integrado ao conjunto. É que nessa pequena suíte, a anatomia particularista do poeta encontra a geometria generalizante e abstrata das formas. Um bom exemplo de tal tendência, que talvez encontre em João Cabral um mestre privilegiado, é Matemática do fugaz. O gosto pela descrição científica e matematizante, ao ser deglutida pela excitação nervosa do instante carnal ressurge na forma de poemas nos quais o fluxo verbal, sem ser comedido, sem ser sonoro, quer apenas ir ao encontro da experiência direta. Faccioni Filho sabe apunhalar-se como um cavalheiro, e o faz sem piedade em seu Teorema dos números perplexos, no qual o autor, exilado numa realidade onde existem “filas de coxas”, declara ter estudado os movimentos, o desejo da posse e a força de atração e repulsão dos corpos. Esse rico teorema pode resumir toda a teogonia da obra, que não nos deixa jamais serenar. Poemas provocantes, como a deliciosa, sádica e molhada série de textos pornográficos (por exemplo: A star is born, Lição de cálculo (ou o marquês em Twin Peaks), Matemática gangbang girl, Matemática dos dildos e Cálculo das vergastas) nos quais o autor evoca, com redobrada e cínica seriedade, o prazer proporcionado por múltiplas penetrações vaginais, anais, chupadas lácteas e gozos impuros.

Que poesia é essa?, nos perguntamos no início. É poesia da impossibilidade do amor, envelhecido pelo constante remoer de palavras na língua. É poesia que anseia ter a beleza, mas não terá, confessa-nos o autor, apressado em admitir a derrota para a bela de cinco mil e quinhentos dias (Quinze anos). A posse de uma verdade nova, de um prazer em flor: impossível. Vejamos o que queria — e não consegue, daí sua raiva — Faccioni Filho, em A todos eles, obrigado, por exemplo:

“(…)
já acabou o tempo dos poetas de conquista
que sob a rude máscara dos versos
conduziram doces bocetas para o leito
mentindo prazeres, amores e doces eternos (…)”

Mauro Faccioni Filho, tal qual o personagem emblemático de Nabokov, persegue sua doce Lolita, sem chance de possuí-la. E é nos destroços dessa busca que se constrói sua poesia.

Duplo dublê
Mauro Faccioni Filho
Letras Contemporâneas
78 págs.
Rascunho