A literatura que desestabiliza

Atual como nunca, "Sete anos e um dia", romance de estreia de Elvira Vigna, ganha nova edição
Elvira Vigna, autora de “Sete anos e um dia”
01/05/2025

Se o Brasil fosse uma casa, como ela seria? Em Sete anos e um dia — romance publicado originalmente em 1987 por Elvira Vigna, e que agora é reeditado pela Companhia das Letras —, a tão sonhada casa de Pendotiba, parecida com o Brasil e por muito tempo planejada por Caloca, é projeto que demora a se concretizar e que, após iniciado, nunca chegará a ser concluído.

A obra tem como pano de fundo o período de transição entre a ditadura civil-militar e a reabertura democrática, que se arrastou por sete anos em nosso país. Se em 1979 o general Figueiredo toma posse e anuncia o propósito de reduzir aos poucos os aspectos mais autoritários do regime instaurado após o golpe de 1964, o processo seguirá até 1985, quando o regime será oficialmente encerrado (e se escrevo “oficialmente” é porque, de algum modo, seguimos em processo quarenta anos depois, como um capítulo que não foi propriamente encerrado e que propicia repetições de tentativas de golpe que só agora começam a ser julgadas).

A casa é o sonho de Caloca, ou Carlos Alberto, homem fascinado pela estética pomposa do Brasil Colônia. Ele não vê contradição entre esse fato e seu posicionamento de esquerda e, mesmo com dívidas, mantém o desejo de construir uma casa colonial. Enquanto planeja a construção, está casado com Bete, de quem se separa logo depois. É por meio da voz dela que temos as primeiras informações sobre o projeto: a qualidade do terreno é ruim, e ela duvida que seja possível levar a cabo a construção. A casa de Pendotiba, afinal, é como o Brasil, porque aqui

(…) havia a comédia do poder, em todo o território nacional, com um general-presidente tentando, grotesco, vender uma imagem de pessoa do povo, de pessoa agradável e, para isso, achando que bastava mudar de modelo de óculos: saíram os escuros, marca registrada da comunidade de informações, entraram uns claros, modelo esportivo.

A oposição ao poder estabelecido
Já em seus livros infantojuvenis, publicados desde a década de 1970, Elvira escancara sua oposição ao poder estabelecido e às violências praticadas pelo Estado. Em A breve história de Asdrúbal, o terrível (1978), por exemplo, um monstro amarelo é incapaz de fazer maldades eficientes. Seu pai, no entanto, tem como especialidade entrar nos sonhos das pessoas, transformando-os em pesadelos. A reação às maldades logo aparece, com a criação de um Grupo da Resistência.

Aos poucos, a oposição ao poder estabelecido se torna, em toda a obra de Elvira Vigna, uma abertura às possibilidades, à descrição daquilo que está sempre em construção e que, portanto, também pode mudar. No infantojuvenil O jogo dos limites (2001), o jogo proposto se passa em um Castelo (com “c” maiúsculo) perenemente em construção, como a casa de Pendotiba, que vai desabar parcialmente antes mesmo de ser concluída, e preservará uma ambiguidade de coisas ainda por fazer e de materiais já velhos, antigos, deteriorados.

O Brasil, de fato, é um dos temas subjacentes à prosa de Elvira, mas o modo como ela aborda essa questão passa longe da ideia de um projeto de nação ou de uma identidade nacional. A autora chega mesmo a afirmar que usa com hesitação o termo “brasileiros”, que representaria uma totalidade que não faria sentido. Ela rejeita uma literatura identificada com aquilo que é especificamente nacional e apresenta um Brasil inacabado, repleto de versões.

Em Coisas que os homens não entendem (2002), a fotógrafa Nita chamará de picaretagem o trabalho para o qual é contratada: uma campanha publicitária em que demandam uma fotografia ilustrativa dos 500 anos do Brasil. A impossibilidade de traduzir o caráter nacional de modo homogêneo se une à recusa da narradora-protagonista de contar sua história de modo linear, estrutura que se repetirá em todas as obras da escritora. E os cenários de seus romances serão sempre lugares instáveis, desconfortáveis, transitórios.

Seus personagens também estão longe de serem aqueles que ocupam o centro das atenções. Em Sete anos e um dia, Caloca vai viver em uma espécie de comunidade à margem da sociedade. Junto ao amigo Pedro e a Catarina, ex-namorada de Pedro com quem Caloca vai se relacionar depois do divórcio de Bete, eles viverão de acordo com regras estabelecidas por eles mesmos.

O feminismo e as escolhas narrativas
Catarina é a personagem que mais se destaca em seu posicionamento contra os padrões (inclusive aqueles que só hoje, quarenta anos depois da publicação da obra, passaram a ser tema de discussão na sociedade, como o cuidado parental). Ela e Caloca terão um filho e, após o nascimento do menino, quando “Catarina percebeu na própria pele que o homem em geral e Carlos Alberto em particular consideravam filho um assunto estritamente feminino”, ela começa a fazer discursos e reivindicações feministas, o que vai ser descrito com grande tédio por Pedro e por Caloca. Se politicamente os dois amigos compartilham seus posicionamentos com Catarina, os conflitos de gênero se tornam evidentes.

Nas outras narrativas de Elvira, os papéis ocupados por homens e mulheres vão de fato subverter as hierarquias impostas pela sociedade patriarcal. A narradora de Por escrito (2014), Valderez, vai lembrar que “casamento é bom para homens. Divisão de despesa, uma cretina que se preocupa com as chatices da casa e que emite a cola emocional/afetiva necessária. E nenhuma obrigação de retorno com nenhuma dessas três coisas”. Entre as obras de Elvira, uma das que leva as discussões de gênero a pontos mais interessantes é o romance Deixei ele lá e vim (2006), exemplo do ataque que a autora promove às estruturas dominantes. Shirley Malone, a narradora, cria dúvidas sobre seu gênero: há indícios de que ela seja uma mulher trans, que comenta sobre “os seios de silicone que estou pensando em tirar. Afinal, estão tortos”, e sobre os “pelos duros que ainda nascem (poucos) no meu queixo”. É a própria Shirley quem narra a história, com fatos que vão além dos comumente associados a narrativas sobre pessoas transgênero, como a transição de gênero, as violências cotidianas ou o rompimento com laços familiares.

Lola, personagem de Como se estivéssemos em palimpsesto de putas (2016), último trabalho publicado em vida por Elvira, também se destaca por sua afirmação pessoal e profissional ao longo da história, apresentada ao final do enredo como uma mulher vitoriosa, independente e livre.

O posicionamento feminista e político, na obra de Elvira, está também em suas escolhas narrativas. Em entrevista ao Suplemento Pernambuco, a autora discutiu a questão de quase todos os seus textos partirem de uma primeira pessoa feminina, assegurando que essa não é uma opção apenas estilística. “Tem a ver comigo de saco cheíssimo de só encontrar narradores masculinos na vasta maioria dos textos literários.” “Para você avaliar a amplidão do alijamento, essa é uma pergunta que um escritor homem não precisa responder. Por que ele não tem narradoras femininas? O narrador masculino é considerado o ‘normal’.” Sete anos e um dia é o único romance de Elvira com um narrador homem, o Pedro, que se alterna com um narrador onisciente. Nesse primeiro romance, o papel das mulheres na sociedade ainda é apresentado de forma secundária, ganhando muito mais relevo nas produções seguintes.

A arte entre artes
A segunda parte de Sete anos e um dia tem poucas páginas. Intitulada …E um dia, narra um reencontro entre Pedro e Caloca, afastados há algum tempo. Entre os assuntos da conversa, relembram a casa de Pendotiba. Depois do desabamento do teto, em um temporal, a casa ficara desabitada. Caloca não sabia mais o que aconteceria com ela, porque há tempos deixara também de pagar as prestações. Antes de entrarem nos assuntos mais doloridos, os dois se despedem e Pedro vai rememorar um estudo que abandonou sobre o período militar, que para Caloca deveria se chamar “Sete homens e um destino”.

O título é emprestado de um faroeste clássico de 1960, dirigido por John Sturges e que tem como um de seus roteiristas o aclamado diretor japonês Akira Kurosawa. Na trama, uma vila mexicana é periodicamente invadida por bandidos, em busca de comida e suprimentos. Vários anciãos, então, apelam para a ajuda de homens armados, que chegam para defendê-los. O filme, por sua vez, é um remake de Os sete samurais (1954), de Akira Kurosawa.

As obras de Elvira dialogam a todo o tempo com outras produções culturais, sejam elas textos ou vídeos. Em Por escrito, por exemplo, um dos diálogos explícitos é com a obra teatral Vestido de noiva (1943), de Nelson Rodrigues. No texto dramatúrgico original, encenado pela primeira vez no início da década de 1940, duas irmãs (Alaíde e Lúcia) disputam um noivo endinheirado (Pedro), exibindo as aparências e farsas da vida familiar. No romance, a triangulação amorosa ocorrerá mais de uma vez, entre várias personagens.

Elvira revela em alguns de seus escritos que, em A um passo (2018), livro que ela dizia ser o seu preferido, usou a mesma estrutura que Shakespeare na peça A tempestade. Já no romance Às seis em ponto (1998), a referência é a vida e a obra do pintor espanhol Diego Velásquez. O pintor, amigo do rei e seguidor fiel da Igreja, faz em suas obras uma caricatura do poder.

Já os textos do tcheco Franz Kafka serviram como ponto de partida para a criação de 20 textos curtos reunidos em Kafkianas (2018), publicado postumamente pela Todavia. A obra interage com textos como Diante da lei e Um médico rural de modo paródico, provocador, divertido até. Nos textos, Elvira alude à leitura que faz das obras do autor.

Nas obras de Elvira, narradoras e personagens buscam se afastar do poder estabelecido, apresentando assim as fissuras que estão lá (aqui), mesmo que a gente insista em fingir que elas não existem. Nem sempre a leitura de seus livros é fácil. A literatura dela é dura, e precisa ser lida como se olhássemos algo pelo avesso. Porque, para ela, arte é fricção e precisa fazer a gente sair do lugar em que está. Com a reedição de Sete anos e um dia, no momento em que o Brasil ensaia uma possível punição, pela primeira vez, àqueles que idealizam tramas golpistas e tentam instaurar regimes autoritários, é também a obra de Elvira Vigna que se reposiciona como fundamental: porque a arte dela, acima de tudo, se opõe a autoritarismos de todas as ordens (inclusive os literários), buscando desestabilizar todo e qualquer poder estabelecido.

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Crônicas
A Arquipélago lança em breve a coletânea de crônicas Morrendo de rir, de Elvira Vigna. São dezenas de crônicas que a autora publicou entre 1999 e 2016 em veículos como O Estado de S. Paulo e a revista Pessoa. Na mira da cronista, as veleidades do ambiente literário, da política nacional, do meio editorial e do mundo das artes.

Sete anos e um dia
Elvira Vigna
Companhia das Letras
184 págs.
Elvira Vigna
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1947. Foi escritora, tradutora, ilustradora, crítica de arte e jornalista. Trabalhou em veículos de mídia como O Globo, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Como escritora, deixou uma produção extensa, que inclui dez romances, livros infantojuvenis, ensaios e contos, além de uma obra póstuma em que dá novos contornos a textos de Franz Kafka e um livro sobre história da arte escrito a quatro mãos com a filha, Carolina Vigna. Morreu em 2017, em São Paulo (SP).
Lúcia Nascimento

É escritora e pesquisadora de literatura contemporânea. Autora de Ruínas (Edufes, 2020), livro de contos vencedor do Prêmio Ufes de Literatura, e do romance, Aqui, ontem, a ser publicado em 2025 pela 7Letras. É mestra e doutoranda em Teoria Literária pela USP. Suas pesquisas refletem sobre a produção de autoras contemporâneas a partir da aproximação com teorias críticas feministas.

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