A literatura e o logro

Resenha do livro "Em breve tudo será mistério e cinza", de Alberto A. Reis
Alberto A. Reis, autor de “Em breve tudo será mistério e cinza”
01/03/2014

O leitor de romances não gosta de ser enganado. Essa verdade é mais fácil de ser observada na literatura policial. Entre os cultores do gênero, sobretudo entre os escritores, é regra que o narrador não pode ser o personagem que praticou o crime. Ainda outro ponto: o bom narrador desse gênero, junto com o seu detetive, segue pistas que levarão ao criminoso. Quando este é descoberto, parecerá ao leitor que o próprio narrador vem a reboque do seu herói-detetive. O autor de literatura policial não deve, no final da narrativa, apresentar uma solução em que nas páginas anteriores tenha enganado o leitor. Apesar de alguma controvérsia, em toda a literatura tal concepção de certo modo vigora. Ninguém quer ouvir história de uma voz que, no final do relato, o terá passado para trás. Na literatura brasileira, temos a questão do narrador suspeito. Mas ela geralmente vigora em narrativas em primeira pessoa. Caso este narrador participe da trama e ele seja o protagonista, muitas vezes há de se perdoar o logro. O personagem quer salvar os seus interesses. Neste caso, no entanto, mesmo assim, o logro não será total. O bom leitor olhará com suspeição este tipo de narrador desde o início.

No romance histórico Em breve tudo será mistério e cinza, de Alberto A. Reis, o leitor experimentado não sairá da narrativa logrado, mas perceberá o pecadilho que cometeu o autor. Ao optar por um narrador em terceira pessoa, narrador onisciente, que paira acima da trama, o autor tenta ludibriar o leitor no começo da história.

O livro tem início na Paris da segunda década do século 19. Um casal de franceses embarca para o Brasil. A mulher é filha de um joalheiro que dirige uma casa famosa à época, a Gerbe D’Or. François Dumont é convencido pelo sogro a se aventurar no interior do Brasil, precisamente nas Minas Gerais, em busca de diamantes.

A aventura é suspeita. Pois não é praxe ser oferecida tal missão a um homem até certo ponto medíocre, não acostumado a aventuras, tanto mais quando se trata de um bom freqüentador do fastio parisiense. Mas François aceita a missão e, depois de uma tempestuosa viagem, desembarca com a mulher no Rio de Janeiro.

Após ser informado da morte trágica do sogro ocorrida em Paris, por intermédio da Missão Diplomática Francesa no Rio de Janeiro, Dumont cavalga como o amigo Fernando Murat, de volta à chácara onde este último o hospeda. Em meio a uma conversa entremeada por longos momentos de silêncio, o narrador interpõe um flashback remontando a Paris no momento anterior ao embarque de François. Neste trecho, somos informados de um grande roubo na Gerbe D’Or. Trata-se do desaparecimento de quatro graúdos diamantes pertencentes a uma condessa. Na página 79, o narrador em terceira pessoa (é bom sempre reafirmar esse ponto) engana o leitor: “François, no entanto, estava triste. Sentia-se só no mundo. Havia perdido, em poucos segundos, o sentido de sua viagem e a herança do sogro”. Mas próximo ao final, principalmente a partir da página 489 (capítulo chamado Pedras mortas), na conversa que tem com Dona Beja (ela mesma, a tal deusa da beleza de Araxá), François Dumont fará uma contundente revelação. O leitor, então, perceberá que não foi exatamente isso que o narrador proferiu no começo do livro.

Outro ponto negativo refere-se aos diálogos. Com exceção de uma palavra ou outra, mesmo quando se trata da fala de escravos, eles seguem um padrão único. Em determinadas passagens é difícil de acreditar no discurso indireto livre de personagens como Maquim, Rosa Xangana e Duzinda. Algumas dessas reflexões beiram problemas filosóficos, difíceis de serem atribuídos a personagens que estiveram ainda recentemente ligados à vida tribal.

Mas a narrativa não deixa de ter virtudes, principalmente por se tratar de uma obra com 564 páginas onde a trama principal e histórias paralelas se desenvolvem e se resolvem satisfatoriamente. O romance é dividido em cinco livros (ou partes), cada um deles possui título: Por terras e por mares, Tempo de guerras, Batalhas cívicas, Rebeliões e Passim. O primeiro aborda, em sua maior parte, a viagem de François Dumont e a esposa. Também se situa neste trecho parte da história da joalheria Gerbe D’Or e de seu proprietário, o sogro de Dumont; a chegada do francês ao Recife e ao Rio de Janeiro depois de muita intempérie; e a rede de influentes contrabandistas, que inclui pessoas de renome. Elas facilitam o envio de pedras preciosas para a Europa, conseguindo a inserção de ouro e diamante no mercado, uma espécie de lavagem de dinheiro da época. O segundo livro já enfoca a questão da escravatura e como os brasileiros brancos lidavam com ela; depois introduz política e aventura na busca desenfreada pelos minérios mais valiosos. Batalhas cívicas e Rebeliões descrevem a tentativa de um mundo ainda rústico ter como fiel da balança o Direito, mas tudo de modo combinado e fingido. Quando as coisas fogem do controle, desemboca-se nas rebeliões. Na última parte, há o suplício do escravo Maquim, e a já citada revelação (objeto de controvérsia na escritura do romance) que o narrador põe na voz de Dumont.

Como romance histórico, o livro nada acrescenta, proporcionando a personagens reais apenas traços caricatos. A narrativa prima em apresentar a sensualidade das escravas negras, do cortejo de Dona Beja, em Minas, e a voluptuosidade de padres homossexuais e pedófilos, sendo alguns entre eles ricos.

Como todo livro tem um quê de romance policial, Em breve tudo será mistério e cinza também vai por esse filão, mas o narrador em terceira pessoa, ao se colocar sob a perspectiva ideológica do protagonista, elimina qualquer sutileza de surpreender o leitor em relação ao problema principal que motiva a viagem do casal Dumont ao Brasil.

Em breve tudo será mistério e cinza
Alberto A. Reis
Companhia das Letras
568 págs.
Alberto A. Reis
Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1947. Mudou-se para Paris em 1968, onde se graduou em Psicologia Clínica. Lecionou na Argélia e foi professor da Faculdade de Medicina da PUC–SP. Atuou como psicanalista e hoje é livre-docente da USP, universidade em que coordena o Laboratório de Saúde Mental Coletiva. É autor de numerosos artigos e livros sobre psicanálise, saúde mental e saúde pública. Em breve tudo será mistério e cinza é seu primeiro livro de ficção.
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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