A literatura e as máscaras

Crônicas de Contardo Calligaris revelam sentidos que o cotidiano tenta mascarar
Contardo Calligaris, autor de “Todos os reis estão nus”
03/11/2014

A crônica é, para dizer com Rubem Braga, o flash de um instante. E uma captura sempre transfigurada, ao ponto de Braga considerar ser “o luxo do grande artista atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos”. Como o pavão que o autor descreve numa de suas belas crônicas, “de água e luz ele [o artista] faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade”.

A menção enfática a um cronista com elevado requinte e de posição emblemática em nossa literatura não é casual. De estilo bastante diverso do lirismo poético do escritor de Ai de ti, Copacabana, Contardo Calligaris revela, ao coligir seus textos em Todos os reis estão nus, a mesma capacidade de revelar sentidos que o cotidiano humilde, sob o véu da normalidade, mascara. A coletânea de crônicas curtas — textos a que os leitores têm acesso assíduo, desde os últimos cinco anos — revela os pés leves que poderiam mudar o mundo (Nietzsche): trata-se de escritos que discorrem sobre os acontecimentos ainda quentes e, sem o distanciamento temporal que favorece a lucidez, exigem percepção aguda para análise de suas circunstâncias.

Terapeuta e psicanalista de formação, Calligaris suspende a prática, infelizmente corriqueira entre nós, de interpretar o real sem auscultá-lo, com um instrumental pronto e a priori, que a complexidade do mundo só teria o dever de confirmar. Aqui, ao contrário, Procusto não tem vez: os eventos do dia a dia (que vão dos adultérios na internet à sexualidade dos candidatos americanos à presidência) são abordados no que têm a dizer em “baixo-falante”, para usar a expressão de Antonio Carlos Secchin. Da leitura sensível e desautomatizante dos fatos é que, mostra-nos Calligaris, alguma teoria pode ser percebida e formulada. A extração teórica é, ou deveria ser, atividade segunda (mas não secundária), e pede necessariamente os eventos que irá glosar.

Lendo com atenção, veremos que Todos os reis estão nus condensa a fixação dos fatos, mas sempre com certa nuance de consultoria espiritual. Pautada, porém, em saberes densos e bem assimilados, como a percepção linguística de Austin, por exemplo, em Amores silenciosos. Ali, depois de fazer a distinção entre as expressões constatativas e as performativas, arremata com uma indagação reveladora: “Pois bem, nunca sei se as declarações de amor são constatativas (‘Digo que amo porque constato que amo’) ou performativas (‘Acabo amando à força de dizer que amo’). E isso se aplica à maioria dos sentimentos”. O cronista, agora, inverte a observação de Novalis, segundo a qual o discurso é tanto mais verdadeiro quanto mais poético. É na surpresa do verdadeiro, na iluminação súbita de certas zonas sombrias que a poesia, mesmo involuntariamente, emerge e pulsa.

O clichê, o pensamento provável e constituinte de tópicas muitas vezes milenares (que findam por sedimentar-se em preconceitos), não dá perspectivas para a ação, destituída ali de uma bússola ou de uma linguagem imantada. É pela palavra incandescente que interventores como Calligaris fazem-se auctores, no sentido clássico que os imperadores tomavam, para si, a expressão: o de indivíduos que podem anexar à pátria novos territórios conquistados. E, então, ampliar os horizontes que os olhos, cerceados pelas fronteiras impostas, habituaram-se a contemplar. Num tempo de coletividades que sabem, por força das reivindicações de grupo, dissolver a individualidade e reduzir o homem ao credo de sua manada, o escritor altera a endoxa e, corajosamente, expõe: “É óbvio que grupos particulares (constituídos por raça, orientação sexual, ideologia, etnia, etc.) podem e devem militar coletivamente pelos direitos de seus membros, mas, em uma sociedade de indivíduos, a liberdade de cada um, por mais ‘diferente’ que ele seja, é condição da liberdade de todos” (“Milk”, o preço da liberdade). Reforçando-o ainda, em outro momento, adverte o cronista: “Todas as liberdades são essenciais. As liberdades ‘inessenciais’ são apenas aquelas às quais já renunciamos, covardemente (Segurança ou liberdade?)”.

Olhar machadiano
A prática do escrutinador, que percebemos na obra o tempo inteiro, exige de Contardo o olhar machadiano, que ele exercita com mestria. Apesar de todos esses qualificativos, restrições são, sem dúvida, bem-vindas, e dentre elas assoma alguma condescendência crítica em relação a produções literárias de qualidade no mínimo duvidosa. Parecendo estar mais interessado nos conteúdos dos textos ou no que eles têm de potencial para ser explorados do ponto de vista analítico e filosófico, o autor italiano não está atento a certo continuísmo que as escritas de perfil mercadológico promovem. Exemplo evidente do que dizemos se lê em seu juízo breve — mas de forte influência — que Adoráveis vampiros dá a ver. Nessa crônica, de 25/12/2008, lemos que Crepúsculo e Lua nova compõem uma “maravilhosa” saga elaborada por Stephenie Meyer: “Também, na semana passada, estreou no Brasil a versão cinematográfica de Crepúsculo (gostei, embora menos do que dos livros)”. Aqui, a voz norteadora e formadora de comportamentos — ainda que à sua revelia, talvez — se esquece do valor que a literatura concentrada, extraindo da água uma infinidade de matizes, deve ter na formação daquele público infantojuvenil, que precisa ver seu universo ampliado. E, de saída, a partir de uma experiência poderosamente estética com a linguagem, o que os livros citados estão longe de oferecer. Seria muito sugerir, ao menos como contraponto, a fabulosa obra de Bram Stoker (Drácula) para os jovens ou para os pais que, às vezes carentes de referências mais requintadas, alargarão os hábitos de seus próprios filhos?

A observação restritiva ocorre exatamente em decorrência da perspicácia que Calligaris desenvolve e emite. O texto que intitula o volume nos faz pensar, a partir do filme O discurso do rei — no qual negamos vocações ou desejos de que, eventualmente, nos envergonhamos —, sobre os disfarces que todos trazemos e dos quais necessitamos para seguir exercendo nosso ofício ou vivendo nossas escolhas: “Não há como ser terapeuta nem rei sem alguma impostura. Todos carregamos máscaras. Avançamos mascarados, enfeitados por mentiras que nos embelezam”. Mas o cronista nos faz notar que uma diferença, no entanto, se impõe: o heterodoxo terapeuta de Sua Majestade, na obra de Tom Hooper, tinha um trunfo que lhe outorgava o exercício de intérprete de nossas almas labirínticas: “a leitura de Shakespeare”.

A alta literatura — e muita gente certamente torcerá o nariz para um adjetivo tão “elitista” —, ao potencializar a percepção do humano, alarga o buraco da fechadura e permite que, vendo melhor o outro, conheçamos mais sobre nossas próprias turbulências. O mundo interior é caótico: aquecido por paixões efervescentes — e no mais das vezes subterrâneas —, pede que uma linguagem plástica, mas rigorosa, lhe dê ordem e expressão. Eis a função cosmética da linguagem, que Platão compreensivamente destacava. Assim, é pelo convívio com escritos que cultivam o humor, a ironia, a frase lírica e sintética gerada pelo olhar dilatado, que as pessoas — sequiosas pela orientação que o próprio Contardo Calligaris entrega — poderão se dar conta dessas fantasias que carregam e das personagens que encarnam. Afinal, “acreditar nas máscaras que vestimos é um delírio que nos torna perigosos”. A desarticulação dos discursos viciados — tão presente em Todos os reis estão nusé um efeito inevitável da participação cívica pela poesia. E isso é tudo o que uma obra mascarada de literatura, como Cinquenta tons de cinza (E. L. James), que o escritor exalta, não consegue exercer — contrariamente às notáveis perversões que um Marquês de Sade faz radioativas. E a empatia com o livro — mero reconhecimento espiritual — longe de constituir um argumento plausível (e de que o nosso cronista lança mão) apenas ratifica a noção continuísta que já observamos.

Paradoxalmente, tal redundância é o que Calligaris, apreciando-a, efetivamente não traz. E a simples possibilidade de suspender a performatividade das declarações que, por força de circulação, erigem-se em verdades, daria à sua coletânea o desejo de frequentá-la.

Todos os reis estão nus
Contardo Calligaris
Três estrelas
277 págs.
Contardo Calligaris
Nasceu na Itália, em 1948. É escritor, psicanalista e psicoterapeuta, doutor em psicologia clínica e colunista do caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo. É autor, entre outros, de Introdução a uma clínica diferencial das psicoses, A adolescência, Cartas a um jovem terapeuta e dos romances O conto do amor e A mulher de vermelho e branco.
Peron Rios

É mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco e doutorando em Literaturas Africanas pela Universidade de Lisboa e pela Université Paris III – Sorbonne Nouvelle. Autor do livro A Viagem Infinita: estudos sobre ‘Terra Sonâmbula’, de Mia Couto, é professor de Literatura do Colégio de Aplicação da UFPE.

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