Três fatos importantes marcam a recepção da literatura de Thomas Bernhard (1931-1989) no Brasil em 2014. Em primeiro lugar se trata da exposição internacional Thomas Bernhard e seus seres vitais — Fotos — Documentos — Manuscritos, que em setembro esteve em Curitiba (PR) e em outubro chega a Porto Alegre (RS). Os outros destaques ficam por conta das traduções, tanto do respectivo catálogo homônimo da exposição, como do livro O artista do exagero: A literatura de Thomas Bernhard, coletânea resultante do Simpósio de 1999 da Universidade de Yale e editada por Matthias Konzett, ambas publicadas pela Editora UFPR. O catálogo foi traduzido do alemão por Daniel Martineschen e Ruth Bohunovsky; o livro é resultado de um louvável projeto dessa professora da UFPR, desenvolvido com estudantes do Bacharelado em Estudos da Tradução.
O escritor Thomas Bernhard afirmava ser importante a informação sobre a personalidade do escritor para a compreensão de uma obra. Certamente afetaria a leitura saber se o sujeito era um serial-killer ou se algum dia estivera doente. Sobre a sua própria concepção existencial ele disse (no filme documentário Das War Thomas Bernhard, 1994) que a morte provavelmente lhe fora dada ainda no berço e sempre o perseguia. Ele a carregava consigo, a vida junto com a morte. Não tinha nada contra ela, nunca tivera medo dela. A morte até o fortalecia, ela, que podia às vezes fragilizar a pessoa. Sobretudo, sem a consciência da morte, a pessoa corre o risco de se deixar envolver e dançar com ela, se afundando de uma vez por todas, o que ele nunca quisera. Sempre se rebelara contra ela. Recusá-la seria uma bobagem, não há como recusar a morte, ela está sempre presente. Era possível seguir com ela, com cautela. Mas para conseguir essa proeza, dizia o escritor, precisava da morte em seus livros.
Ao admitir portar consigo inerente à vida já o fardo da morte, travando com ela uma consciente disputa de forças, Thomas Bernhard argumenta em prol da exposição com um panorama sobre a singularidade de sua vida e seu trabalho. E as peças dessa exposição, que instigam o jogo da elaboração autobiográfica na obra literária, contribuem com elementos chaves para a recepção dessa literatura que é uma operação intrincada e infindável. A miscelânea de sua autoria — papéis, romances, poemas, peças de teatro, a colossal pentalogia autobiográfica em cinco volumes (Sérgio Tellaroli juntou A causa, O porão, A respiração, O frio e Uma criança num único livro, Origem, que a Companhia das Letras publicou em 2006) — apresenta, não somente a perspectiva no sentido literal de biografia, mas deixa observar aspectos do modus operandi, passível de ser acompanhado nos procedimentos de correções e nas alterações, através dos diversos estágios dos manuscritos e tiposcritos em prosa, em verso, em drama, em cartas. O escritor, que no final das contas conquistou tamanha coerência em sua produção de sentidos, rabiscava e alterava de cima a baixo seus poemas, romances, peças, num processo incessante de reelaboração e aprimoramento de suas reflexões. É consolador para ensaístas, em constante insatisfação com a qualidade das expressões em textos, constatar as marcas que mostram vestígios das motivações íntimas de insatisfação, modéstia, bem como da busca obsessiva de autoconsciência e de identidade. Nesse sentido a exposição Thomas Bernhard e seus seres vitais — Fotos — Documentos — Manuscritos, cujo layout e distribuição das peças pelo espaço é um deleite à parte, constitui uma oportunidade aos estudiosos da crítica genética e a todos os interessados pelo processo de produção literária.
Seres vitais
O catálogo sintetiza a exposição e está dividido em capítulos atribuídos respectivamente ao avô materno do escritor, Johannes Freumbichler, ao próprio Thomas Bernhard e à sua companheira, Hedwig Stavianicek.
Manfred Mittermayer assina o ensaio O avô materno Johannes Freumbichler na literatura de Bernhard. Sobre o avô, que o adotou e foi um interlocutor afetuoso, Thomas Bernhard legou inúmeros depoimentos orais e literários. Para ilustrar, cito a declaração de amor ao avô, que ao mesmo tempo se inscreve no contexto da vida como teatro a que o escritor sempre recorre:
Os avós são os professores, os verdadeiros filósofos de cada um de nós; eles sempre escancaram as cortinas que os outros vivem fechando. Quando estamos com eles, vemos o que é real, não vemos apenas a plateia, mas o palco também, e vemos tudo que se passa nos bastidores. Há milênios, os avós criam o demônio onde, sem eles, só haveria o bom Deus. Graças a eles, ficamos conhecendo o drama por inteiro, e não apenas a farsa de um fragmento miserável e mentiroso.
Hedwig Stavianicek — fatos e ficção é um capítulo com a perspectiva biográfica sob o viés da companheira com quem Thomas Bernhard viveu mais de 30 anos, muito apropriadamente destacada no catálogo, considerando que em seu livro O sobrinho de Wittgenstein o autor a chama de “meu ser vital”, e confessa que a ela devia praticamente tudo.
escrevia, escrevia e escrevia…
O capítulo central do catálogo da exposição é assinado por Martin Huber que, após a morte de Bernhard, organizou o espólio completo, desde 2001 disponível no Arquivo Thomas Bernhard em Gmunden, na Áustria. São anotações do curador sobre o espólio que tem textos inéditos e curiosidades sobre o processo de escrita. É difícil destacar fragmentos em detrimento do conjunto dessa coleção que possui um arranjo bem equilibrado de unidades contemplando aspectos diferentes. À guisa de exemplo, chama a atenção um poema laudatório, A rainha das cidades, homenagem à cidade natal do escritor, Salzburg, escrito ainda na juventude, em 1948. Não há como evitar o contraste entre esse encantamento e a indignação saturada de veneno da inflamada literatura de Bernhard dirigida contra a incapacidade moral da Áustria de admitir fatos históricos no pós-guerra.
O artigo de Buber contém um acervo de fotos. Para elaborar essas complexas implicações do dilema em relação à origem (política e familiar), o que será crucial na definição da singularidade de Thomas Bernhard, o escritor empreende exercícios formais de escritura, passa do poema à prosa, e essa guinada no percurso é uma passagem que inclui a composição de várias peças experimentais e fragmentadas de teatro, bem como do ensaio literalmente modificado, Tamsweg, que o escritor não conseguiu ver publicado. A versão submetida a alterações se torna uma versão de Frost (Geada), de 1963, o primeiro dos grandes romances (Auslöschung, 1986, e Verstörung, 1967, publicados respectivamente no Brasil como Extinção, pela Companhia das Letras em 2000, e Perturbação, pela Rocco em 1999). As metamorfoses existenciais do escritor Thomas Bernhard manifestam-se como uma metonímia formal.
Para elaborar por sua vez a tradição literária o escritor afirmou que o processamento da filosofia escrita consistia para ele num grande desafio. Dias a fio, ele evitava o caldo, por outro lado, acontecia que justamente aqueles atores que lhe eram mais importantes, representavam ao mesmo tempo seus maiores antagonistas, inimigos. O ato ininterrupto da composição era justamente contra aqueles, a quem incondicionalmente se rendera: Musil, Pavese, Ezra Pound, que para ele não escrevia lírica, mas prosa absoluta. No mesmo depoimento, Thomas Bernhard confessou que o afetara profundamente a literatura do diário de Pavese, de Lérmontov e Dostoiévski, mas não os franceses pelos quais nunca se interessou tanto, com exceção de Senhor Teste, de Valéry, livro que sempre o fascinara, e que ele lera tantas vezes que seu exemplar estava todo desfeito. Ante autores como esses, Henry James inclusive, o escritor confessou sentir uma hostilidade amarga, sempre oscilante. Sentia-se ridículo e achava que contra eles não se devia operar. Mas aos poucos crescia nele uma fúria contra os grandes, e assim se tornava possível enfrentá-los, rebelar-se diante de Virginia Woolf e Forster. E isso o levava a escrever.
Simulacro e vertigem
A coletânea de artigos resultante do Simpósio de Yale, quando da comemoração de 10 anos da morte de Bernhard, contempla as abordagens Bernhard e seu público, As poéticas de Bernhard, Bernhard e o drama e Os mundos sociais de Bernhard. No que diz respeito à recepção positiva em outros países, inclusive no Brasil, Bohunovsky proporciona uma introdução à literatura de Thomas Bernhard, o artista do exagero e à sua fortuna crítica, buscando demonstrar que o escritor foi “suficientemente específico nas suas acusações e insinuações contra seu país para ter se tornado tão aclamado e odiado (…), mas foi também suficientemente generalizante para permitir ao público internacional uma identificação com os personagens, enredos e situações”. Além disso, a autora se detém em marcas de estilo, a fim de assegurar que o interesse não se restringe ao caráter crítico e incitador, mas depreende em grande parte de artifícios da linguagem.
Essa afirmação se coaduna com a hipótese formulada no artigo A poética de Thomas Bernhard, no qual Wendelin Schmidt-Dengler adverte contra a pesquisa restrita à qualidade moral dos textos, defendendo, antes, alternativas espúrias. Consoante, ele aponta a ambivalência entre o trágico e o cômico, uma argumentação que pensa a linguagem sobre o pano de fundo de uma “comediotragédia” (Komödientragödie), longe de pretender atribuir rótulo ou síntese à ouevre de Bernhard.