A língua, essa coisa viva

Em "A mulher do padre", Carol Rodrigues adentra a infância, suas descobertas e suas maldades
Carol Rodrigues, autora de “A mulher do padre” Foto: Gabriela Barreto
01/08/2023

“Sempre fui levada da breca/ brincar de médico é melhor que boneca”, provocou Rita Lee em Tatibitati. Findavam os anos 1980 e a rainha do rock não tinha medo de arrombar a festa, misturando na mesma frase curiosidade infantil e brincadeiras que não são assim tão pueris. Na mesma década nascia Lina, protagonista de A mulher do padre, novo romance de Carol Rodrigues, cujo destino de diversas formas irá reverberar os versos da cantora que tantas vezes rimou amor e sexo.

Lina é uma criança brasileira e vive em Londres, nos anos 1990, junto aos pais carinhosos, porém um tanto desnorteados. Um irmão está a caminho. A primeira parte do romance narra a vida da família na cidade inglesa, instalada em uma casa escura e cheia de tapetes mofados. A epidemia da vaca louca — que desencadeou a morte de milhares de animais e trouxe grande prejuízo econômico — ronda as preocupações do grupo, temeroso de comer carne contaminada pela doença. Mas não se resume a isso a ameaça; volta e meia surge uma “sombra na testa da mãe”, anunciando um abalo no equilíbrio familiar. A partir da segunda parte, narra-se a volta ao Brasil, em busca de uma saída para os períodos de depressão maternos. Infância em Londres, adolescência matriculada em escola de freiras em Brasília: está armado o cenário dos muitos (des)aprendizados da narradora. Ela conta em primeira pessoa tudo o que vê e sente.

O uso das palavras
A indagação sobre o uso das palavras ocupa centralidade no romance. Isso aparece de várias formas, uma delas no choque linguístico entre inglês e português, permitindo que se acompanhe a subjetividade da criança deslocada:

Eu tenho saudade da vovó do guaraná do sol e de suco maguary. Ventilador no banheiro short-saia sandália de fivela. Como fala tomato? Tomate.

Outra dimensão se faz presente na própria fatura do texto que, do início ao fim, reproduz o modo de falar da criança, e depois da adolescente. Nessa particularidade, vale destacar o caráter engenhoso da forma narrativa que emprega a oralidade do mundo infantil. Nesse registro, a escritora dispensa muitas vezes a pontuação e constrói um discurso marcado por intenso efeito de coloquialidade, estratégia que remete ao livro de estreia Sem vista para o mar, formado por contos produzidos em uma oficina de escrita ministrada por Marcelino Freire.

Na busca por encontrar esse tom, a autora não cai no lugar-comum de uma crônica da infância como lugar de ingenuidade e harmonia, tempo sem mácula ou sofrimento. Não se narra o fim da inocência — ela sequer existiu. Sim, as crianças são cruéis, matam bichinhos, planejam vinganças em um lento aprendizado de pequenas perversidades. Isso de modo algum equivale a dizer que sua maldade se equipara àquelas praticadas por adultos. Elas existem, mas são de natureza distinta.

Lina olha os adultos e pensa que são seres meio atrapalhados, distraídos com suas próprias questões e problemas; uma gente como Miss Madeleine, que passa tardes a bebericar um “copinho com uma coisa escura na frente da televisão” enquanto os dois filhos se trancam no quarto para brincar de médico, explorando (sem cerimônia e sem supervisão) o corpo de Lina. A narrativa descreve tais cenas a partir da perspectiva infantil, de alguém que não entende de todo o que está acontecendo. Essa incompreensão passa pela vaga sensação de estar fazendo algo de errado e também pelo deleite de experimentar algo prazeroso. São brincadeiras que acabam “porque ninguém sabe como continuar”, e terminam às vezes no retrô brinquedo de aquaplay.

O binômio criança e erotismo é ainda capaz de instalar algum incômodo, uma vez que a sexualidade infantil segue envolta por inúmeros tabus e moralismos, muito embora estejamos há mais de cem anos familiarizados com o tema como algo constitutivo de nossa subjetividade, como formula Freud. Guardadas as devidas diferenças, pela presença dessa peculiar voz feminina infantil, A mulher do padre pode ser aproximado a O caderno rosa de Lori Lamby (1990), de Hilda Hilst. Lori, protagonista e narradora, tem oito anos e conta de forma aberta em seu diário as diversas experiências sexuais vividas (ou imaginadas) com homens adultos. Por seu conteúdo, o texto foi considerado obsceno, no limite do pornográfico, ainda que propusesse sofisticada discussão sobre o fazer literário. Segundo a crítica Eliane Robert Moraes, Lori quer “conhecer o funcionamento da língua no seu duplo registro: falar, narrar, fabular, assim como lamber, chupar e sugar (…)”.

O erótico
O romance de Carol Rodrigues dialoga com o elemento erótico de forma onipresente, já que a curiosidade das brincadeiras infantis se prolonga na tumultuada adolescência de Lina e suas tentativas — muitas vezes falhas — de pertencimento: “Ainda bem que pensamento ninguém escuta”, afirma, aliviada. Claro, ela pensa em sexo e constata que desejo, nojo e medo andam mais juntos do que supõe:

 (…) ele diz que não tem outra forma de beijar e sem beijar não tem namoro e eu não consigo porque línguas me lembram peixes voltando pra vida e pimentões que viram parasitas mas eu não posso falar isso e é também uma questão de lesma que Gaspar mete a língua dele no sininho lá no fundo ocupando toda a boca e fazendo umas cosquinhas de antena e a língua ser assim coisa viva demais eu não quero vomitar na boca dele.

A língua é “essa coisa viva demais”; por um lado assusta na dimensão pulsante do desejo, e por outro é o lugar de experimentar formas de dizer a forte sensação de inabilidade — dúvidas, vergonha e espanto proliferam nessa caminhada tortuosa em direção à vida adulta. Daí a beleza das passagens em que se encena a leitura em sala de aula. Isso ocorre em dois momentos, em A caçada, momento em que o texto enlaça fragmentos do célebre conto de Lygia Fagundes Telles aos devaneios eróticos de Lina, e com O homem que sabia javanês, de Lima Barreto, em que se pede aos alunos que circulem palavras desconhecidas. “Circulei o texto inteiro, dá vergonha”, assume, em relação ao primeiro.

Às vezes, as palavras são mesmo ilustres desconhecidas, criam um universo cifrado e perturbador. Por isso, em sua dimensão tão humana, a personagem nos atinge de forma amorosa — ela não sabe a hora certa de rir, sente vontade de fazer xixi na hora errada, percebe que seu corpo não se adapta à rígida disciplina do balé, pinta o cabelo de um jeito esquisito para tentar descobrir quem realmente é. O cotidiano, parece nos dizer, não é tão simples assim. A trajetória de Lina revela como o aprendizado não se dá em linha reta, mas repleto de ziguezagues, idas e vindas, titubeios. Brincar com a língua, retirando dela suas múltiplas potencialidades, é mais um desafio que deve enfrentar.

A mulher do padre
Carol Rodrigues
Todavia
185 págs.
Carol Rodrigues
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1985, e vive em São Paulo (SP). É autora da coletânea de contos Sem vista para o mar (2014), ganhador dos prêmios Jabuti e Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional. Seu primeiro romance O melindre nos dentes da besta (2019) foi finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Jabuti.
Stefania Chiarelli
 É doutora em Estudos de Literatura pela PUC-Rio e professora associada de Literatura Brasileira na UFF. Publicou o ensaio Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum e coorganizou coletâneas sobre literatura brasileira contemporânea. Sua publicação mais recente é Partilhar a língua – leituras do contemporâneo (7Letras, 2022).
Rascunho