A língua encurralada

A palavra falada é um fenômeno natural, a palavra escrita é um fenômeno cultural.
Mia Couto, autor de “O último voo do flamingo”
01/04/2001

A palavra falada é um fenômeno natural, a palavra escrita é um fenômeno cultural. O homem natural pode viver perfeitamente sem ler nem escrever. Essas palavras de Fernando Pessoa, parte de um discurso em que o poeta esmiuça a língua portuguesa, abre um debate sobre a extensão da natureza verbal do homem e sua relação com a escrita. Mas o ato de promover o pitoresco encontro entre a fala e as letras é trabalho para qualquer um de nós. Dá-se tanto numa carta para a mãe, num cartaz de “vende-se”, poema, ou neste pobre parágrafo. Espichar o domínio da fala até submetê-la à total escravidão da letra, isso já é mania de poucos.

Um dos escritores mais levianos do idioma do “sim”, o moçambicano Mia Couto, brinca com a linguagem como uma criança com cubos. As conseqüências desse gracejo são muitas, difícil é enumerá-las. Mia (de Emílio), natural de pátria em que não é nativo, está à mercê de muitos fatores naturais e culturais. Nasceu na cidade da Beira, às margens do Rio Pungüe, em 1955. Filho de imigrantes portugueses, hoje apenas um em cada cinqüenta moçambicanos vive no caldeirão lingüístico de um país africano que, como outras ex-colônias, acabou encurralando o idioma europeu na zona urbana. Há dez anos, o gajo estourou em Portugal, país que praticamente descobriu Mia e deslanchou sua carreira internacional. Agora divide com seu comparsa, o poeta José Craveirinha, e um punhado mais, títulos beneméritos, prêmios e, depois de enfrentar certa resistência, merecido reconhecimento em Moçambique.

Vida amorosa? Mia “apaixonou-se” pela literatura de alguns autores brasileiros, em especial de Guimarães Rosa, João Cabral e Carlos Drummond, além de outros pré, pós e modernistas que fundaram todo um império sobre a captura da fala popular e sua inserção na literatura. Brasileiro é sem-vergonha mesmo. É só um escritor estrangeiro gastar umas bajulações na nossa engalfinhada literatura, que já o adotamos: virou sócio-correspondente dos louros da nossa Academia de Letras, em 1998. Por essas bandas é difícil aceitar que o Mia Couto não seja daqui. Quando abro um livro seu, mesmo com estampa de editora estrangeira, confundo-o com o Amapá. Até parece que não existe, perdido lá naquele cafundó. O Amapá é brasileiro, último que se sabe. O Couto, não.

Vergonhosamente, constam apenas três livros seus publicados com selo brasileiro: Estórias abensonhadas (título relacionado com as Primeiras estórias do Guimarães Rosa, com quem Couto encontra profunda afinidade), Terra sonâmbula e Cada homem é uma raça, todos pela Editora Nova Fronteira. Dada a facilidade para publicá-lo — livre de tradução — como se explica esta escassez? Se o Couto também é nosso, por favor.

Universo rescrito
Imagine a boca cheia de palavras. Ao ler Mia Couto tem-se a impressão de que todas as palavras que nunca iam, vão. É uma vertente, para não dizer vômito, porque queria dizer mesmo era outra coisa, mas descrever Couto é terminar afônico. Tentam encaixá-lo em correntes literárias, já que, à primeira vista, há intensas semelhanças entre o “realismo mágico” latino-americano e as maravilhações do Mia. Ledo engano: essa não é apenas uma comparação falsa, mas também completamente ilegítima. Em primeiro lugar, a ficção por simples etimologia, concede uma liberdade de criação ilimitada, pondo à disposição do autor recursos atemporais e inclassificáveis. Na obra de Mia Couto o “realismo” é apenas uma forma passageira, mas a “magia”, uma constante. Mesmo os próprios hispanistas de sempre cansam de afirmar que Cervantes desde muito fazia “realismo mágico”. Se Cervantes, no século dele, já era um García Márquez, imaginem o resto. É só ir ao fantástico, saltar ao intimismo psicológico, ou ao retrato social, que os teóricos já tem um nome para isso, seja lá qual for. Alguém um dia poderá ser original?

Inclassificável, Mia tem mesmo é o dom da fábula, distanciada dos elementos reais pelo jargão regional que resgata, e neologismos que costuma cunhar, entre eles divertidíssimas fusões: “vidabundo”, “maltrimônio”, “administraidor”, “luaminoso”, “suspendurar”, “hematombos”. Seus neologismos não só confirmam que esse autor delira palavras, mas dão abundância de significados ao seu texto, que é sempre urgente e direto, e ideal para o conto porque é antidescritivo. A descrição, ato típico dos barroquismos, é arte de carpintaria: pesada e pouco etérea. Na sua ironia rápida e inventiva, vê-se uma paisagem humana que mescla o pessimismo social da nação com a fartura imaginária moçambicana.

O estilo do Mia é rebelde com, fundado em, arquitetado por, sensível a: a língua portuguesa. Seu estilo, a língua. Ao escrever, Mia comunica desde dentro o que enxerga fora, embora nem por isso dentro signifique intimista. Há um bocado de realidade em tudo que o Mia escreve. E nem por isso sua escrita é social. Como bom biólogo que é, e com uma curiosidade própria de um estrangeiro, foi atrás das lendas de sua terra tentar classificá-las. O resultado que lemos é uma abundância cultural africana que se choca com a pós-colonização, racismo, babélia étnica, assassinatos políticos, enchentes e as ruínas de uma guerra civil devastadora que durou dezesseis anos. O que é Mia Couto? Um naturalista pessimista ou um realista sonhador? Ignorem as teorias acadêmicas sobre literatura. Aqui está a oportunidade de começar tudo do zero.

É isso mesmo: biólogo. O jornalista que disse ter descoberto o país, as falas, os costumes daquela gente, xeretando para periódicos como Notícias de Maputo, um belo dia cansou. Disse que precisava saber pelo menos uma coisa a fundo, e deixar de saber muitas coisas superficialmente, que culpou no jornalismo. Hoje, trabalha como professor universitário, pesquisador e ecologista, sem manter uma “relação vital com a escrita”. Eis que a biologia aparece, ora explícita, ora silente, nos seus dez volumes publicados. Veja o poema Miudádivas, Pensatempos, extraída dos Contos…, e dedicada a Manoel de Barros:

Nada se parece tanto: poente e amanhecer.
Defeitos na tela do firmamento?
Instantâneas aves,
pedras que depoentam.
A noite acende o escuro.
Tudo semelha tudo.
Só a coruja atrapalha a eternidade.

A influência de seu pai, jornalista e de-vez-em-quando poeta, e a leitura de escritores regionalistas brasileiros parece que incentivaram Mia a torrar gramáticas e ignorar o vigente. Como quem diz chega e decide começar tudo do zero para fazer direito, e realizar o antes impossível. Não é e nunca foi necessário citar os cânones para se fazer bons livros, por isso mesmo não espere encontrar menções aos grão-mestres. Por exemplo, no romance O último voo do flamingo, as citações no início dos capítulos pertencem aos personagens da própria obra, embora não apareçam em nenhum outro lugar do livro. É como se os personagens superassem a breve existência das duzentas páginas, para acabar na esfera da realidade. E são eles que nos revelam a sutil sabedoria moçambicana. Amparado numa simplicidade ilusória, Mia Couto é um artista das reviravoltas e redemoinhos. Em Contos do nascer da terra (1999), onde “estórias” curtas invariavelmente poéticas compõem um de seus livros mais impressionantes e representativos, Mia chega a contrariar o beija-flor: “um nome que deveria ser consertado. A flor é que levaria o nome de beija-pássaros”.

A novela Terra sonâmbula (1992) e os contos de Vozes anoitecidas (1986) fazem, em outro escalão, uma dupla impressionante. Já os contos de Cada homem é uma raça (“Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual”) são um pouco mais extensos, permitindo fustigar melhor seus personagens no desdobrar de cada história. Sua obra poética limita-se aos poemas recolhidos em seu primeiro trabalho, Raiz de orvalho (1983). Mia começou poeta e acabou no romance, evolução natural para muitos escritores. Sem nunca abandonar a soltura lírica, diz que escreve “em prosa mas por via da poesia”.

Autor indelicado
Quando duas pessoas conversam, uma tende a buscar expressões e palavras que facilitam a comunicação. Durante essa troca de sinais, há um processo de adaptação do pensamento, condicionando as idéias aos limites da palavra, ao diâmetro do verbo. Uma simplificação das idéias em prol da claridade e entendimento, que ocorre tanto na casualidade da fala, como na geométrica da escrita. Quando falamos ou escrevemos a um inglês, tentamos nos comunicar em inglês. Ou, menos provável, ele tentará se comunicar conosco em português. Um processo parecido existe entre pessoas de mesmo idioma, mesma cidade, e até mesmo sangue. É um processo de redução, resumo ou condescendência de idéias para poder transmiti-las em um tempo adequado e de acordo com as expectativas do emissor e receptor. Desprendimento para entendimento, é a lei.

Essa cordialidade é a maior inimiga da linguagem, porque, pouco a pouco, sentidos complexos não tomam parte na comunicação verbal, e resta apelar para gestos, tonalidades, expressões faciais, por sua vez difíceis de reproduzir no papel. Finalmente, palavras caem no desuso, o idioma se modifica em prol da praticidade. O filósofo Schopenhauer há muito tempo reclamava a beleza do latim, por ser superior ao alemão. O latim aprofundava muito mais significados que qualquer outro idioma. Em Moçambique, depender só do velho português não é suficiente, porque é falado por uma em cada quatro pessoas. Usado no âmbito político, econômico e cultural, mas sem ser a língua dentro das casas, escrever em Moçambique requer mais audácia e menos delicadeza que em qualquer outro lugar.

Se a obra de Mia Couto possui uma fragilidade, é então a própria língua portuguesa. O autor reconhece que, por furungar demais com o idioma ao tentar fazer leituras avançadas da realidade, parte de seu trabalho perde-se na tradução. Mas essa fragilidade não é bem uma fraqueza. Grande parte do trabalho de Mia é traduzir o inconsciente de sua nação poliglota a um idioma que ele mesmo trata de criar e adaptar. A situação especial da língua em Moçambique dita que o escritor vai não só tentar se expressar com o velho, como também transgredir o novo. Lentamente a lusofonia moçambicana, sitiada pela língua maconde, chissena, bitonga e outras, encontra seu espaço social ao passar de “língua oficial a uma língua de sentimento, da alma”. Mia ainda tem o cuidado de evitar fazer uma “espécie de colonização interna” com o idioma, que o transformaria em arma de alienação política. Mas, inevitavelmente, ele luta com o português em duas frentes: contra os guardiões de Camões e contra a inexprimível polifonia moçambicana.

É claro, ideal seria se Mia, e o resto de nós, pudéssemos nos comunicar sem os diferentes meios que isolam um indivíduo do outro, e a realidade do homem. Com a tradição oral sucumbindo à prontidão, e a escrita, à coesão, a distância parece cada vez maior. Os computadores, e os gramáticos, tão insensíveis e virtuais, até agora não ajudaram em muito. Só autores como esse Mia louco, tentando eliminar forros e revestimentos entre idéia e palavra, talvez sejam capazes de, não melhorar a comunicação, mas aniquilá-la completamente.

Não é por acaso que a fala está longe da escrita, pois esse nosso universo mundo foi criado com a palavra falada, com um gesto verbal, e não por escrito ou extenso. Que idioma era esse com que Deus disse “haja luz”, e Adão deu nome às bestas na terra e aves no céu? Puxa, no começo, ser e significar eram a mesma coisa, tudo era mais fácil. Depois veio o castigo de Babel e a Bíblia tentando transcrever os eventos. Ou seja, o caos. O mistério do idioma pré-babélico, puro e exato, segue mistério. Mas, se por acaso alguma espécie de gênese venha a acontecer de novo, espero que seja primeiro por escrito.

Rodrigo Gonzalez
Rascunho