Quando concebi o projeto “Personagens do romance brasileiro contemporâneo (1990-2004)”, que depois seria levado a cabo por uma grande equipe de pesquisa da Universidade de Brasília, tinha consciência de que seus resultados causariam polêmica. Justamente por isso, foram redobrados os cuidados na metodologia, na escolha do corpus a ser analisado, no tratamento dos dados. A repercussão da pesquisa, da qual os sete depoimentos de escritores publicados no Rascunho de dezembro é uma boa amostra, confirma seu caráter polêmico. Infelizmente, parte das críticas revela tão somente o desconhecimento daquilo que é criticado: condena-se sem ter lido a pesquisa, por preconceito quanto a seu método ou por receio de defrontar o quadro que ela nos apresenta.
O corpus incluiu todos os romances de autores brasileiros, com primeira edição no período em foco, publicados pelas editoras Companhia das Letras, Record e Rocco. As editoras foram escolhidas após consulta a escritores e críticos, em que se indagava quais eram as casas publicadoras mais influentes no país desde 1990. Não quer dizer que os livros incluídos sejam melhores do que quaisquer outros, ou que sejam os que permanecerão na história da literatura. Mas são aqueles que têm mais chances de atingir o público leitor e, também, outros produtores literários, pois chegam às livrarias de todo o país, são comentados na imprensa, são respeitados graças à chancela do selo editorial. Não tenho dados para afirmar, mas suspeito que uma pesquisa com outras grandes editoras apresentaria resultados similares. Com as pequenas, talvez houvesse diferença — mas seus livros em geral alcançam menor penetração, portanto influenciam menos, no curto prazo, a produção literária.
A opção pelo romance se deveu à centralidade do gênero na produção literária brasileira atual. É claro que os resultados só dizem respeito ao romance — não podem ser extrapolados para o conto, por exemplo, ou para a poesia. A nova etapa da pesquisa, em andamento, está focando o cinema e o teatro, bem como o romance do período 1965-1979, com resultados parciais que já revelam diferenças significativas e interessantes.
Entre os equívocos de interpretação mais freqüentes, está o que julga que a pesquisa representa uma condenação do romance atual, como se cada obra precisasse conter uma “cota” de personagens femininas, ou negras, ou trabalhadoras, para ganhar validade. Não é nada disso. Para fazer uma comparação grosseira: se olhamos para os 513 deputados que compõem a Câmara Federal e lamentamos a ausência de mulheres, negros e trabalhadores entre eles, não estamos, por isso, questionando a legitimidade do mandato de qualquer parlamentar. Estamos questionando, isso sim, os mecanismos de exclusão, existentes no campo político, que afastam certos grupos sociais. Tais mecanismos estão presentes também no campo literário e cabe a nós optar por vê-los — e, vendo-os, entender suas implicações e pensar em formas de superá-los — ou fingir ignorá-los.
A ausência de tantos grupos sociais empobrece nosso romance como um todo, retirando imensas fatias da experiência brasileira de seu alcance. Mas não impede que, naquilo que é feito, no pequeno recorte da realidade que é o chão de quase todas as obras analisadas, exista boa literatura. Em suma, o que se vê como uma evidente falta no conjunto não se transfere mecanicamente para as obras singulares. Cada obra apresenta uma perspectiva do mundo, como é natural. Que todas estas perspectivas sejam similares: eis o problema.
Portanto, a pesquisa não ignorou a singularidade de cada obra literária. No entanto, da mesma forma que um romance, qualquer fato social também é único, qualquer homem, ou mulher, é único. Mas, em meio destas unicidades, podemos encontrar regularidades. É o que funda a possibilidade das ciências humanas, entre as quais se incluem os estudos literários.
Talvez seja este o ponto principal de incompreensão. A pesquisa nega a visão da obra literária como emanação sobrenatural de um Belo ou de um Sublime metafísicos. O romance (como o conto, o poema) é obra humana, de pessoas que estão tão submetidas aos constrangimentos sociais quanto todas as outras — e aí, aliás, reside sua (potencial) beleza. Nossos escritores têm cor, sexo, posição social, e falam a partir de seu lugar; podem (ou não) ser críticos em relação à sociedade, mas não deixam de viver nela.
Não sei se a literatura ganha alguma coisa deixando de lado os problemas vividos para se preocupar com dilemas “ontológicos”, mas não deixa de ser curioso que este “homem primordial” da escrita descarnada do mundo é quase sempre um intelectual branco do sexo masculino. Será que mulheres, negros, operários se reconhecem nele tão bem quanto pretendem seus autores? Tampouco creio que a literatura seja o lugar da “liberdade interior”, o que quer que isso signifique, mas, se for, temos que questionar porque só alguns grupos têm acesso a tal liberdade. E é isto, no final das contas, o que a pesquisa postula: não a “patrulha”, não a imposição de um “código de escrita” que seja “politicamente correto”, mas a ruptura com o código implícito hoje vigente, que nega dignidade de matéria literária às experiências de vida de tantas pessoas, que nega o acesso à voz autoral a todas as formas de expressão oriundas de baixo.
Quem quiser conhecer a pesquisa, com todos os dados e a interpretação que deles se faz, pode encontrá-la no número 26 da revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea (e-mail: [email protected]).