A justiça em julgamento

"O caso dos exploradores de cavernas", de Lon L. Fuller, é um clássico dos cursos de Direito e coloca o leitor nos bastidores de um dilema jurídico
Lon L. Fuller, autor de “O caso dos exploradores de cavernas”
01/01/2022

O que vem a ser Justiça? Seria um valor essencial, dentro do pacto civilizatório, responsável pela manutenção do contrato social, de sua integridade para o viver coletivo? Ou antes não um valor, mas uma entidade de Estado sempre empenhada em tangenciar o ideal do que seja justo, o que é a eterna busca da humanidade no decorrer de sua existência?

E de que maneira se dá essa busca? Como assegurar uma unidade lógica de juízo que não atente contra seu próprio alicerce, uma vez que seu exercício compete a diferentes homens, cada qual representante de uma forma de ver e administrar a justiça? No contexto desse exercício, deve-se abrir um abismo entre os competentes vigilantes das leis e a massa da sociedade que os revestiu de poder jurídico, responsável inclusive por subvencioná-los, ou o contrário é o que deve ser observado?

O leitor não se aborreça com essa sucessão enorme de questionamentos, nem tampouco com a escassez de respostas a eles: se optar por ler O caso dos exploradores de cavernas, de Lon L. Fuller, muito provavelmente estenderá por si mesmo a lista com muitas outras interrogações.

Cinco juízes e uma sentença
Publicada em 1949 com fins predominantemente didáticos na Revista de Direito da Universidade de Havard, pelo professor de Filosofia do Direito Lon Luvois Fuller, a obra transcendeu esse escopo e se tornou atemporal. Por baixo da superfície verdadeiramente simples há uma elaboração formal refinada e rica em ideias; o leitor se depara não com um texto hermeticamente técnico, destinado apenas a acadêmicos de direito, mas sim com uma trama ficcional atraente, própria não apenas para suscitar reflexões de natureza filosófica, moral e jurídica, como também magnetizar qualquer leitor, mesmo o leigo.

A obra inicia com uma sucinta, mas completa, exposição dos fatos: cinco exploradores, após se aventurarem a explorar uma caverna, nela ficam presos por conta de um deslizamento que lhes impede a saída. Seus mantimentos são escassos, não bastando para os aproximadamente trinta dias necessários para que a equipe de resgate os possa tirar da clausura. Uma equipe médica assevera que a morte por inanição é uma perspectiva bastante provável; tendo ciência disso, através de uma comunicação via rádio, o grupo de exploradores primeiro cogita, depois põe em prática um plano tenebroso que consiste em sacrificar um deles para que possa servir de alimento aos demais, e assim assegurar o bem coletivo.

Em linhas gerais, esse é o resumo dos fatos transmitidos ao leitor pelo presidente do Tribunal da Suprema Corte, a quem os réus apelam para escapar da condenação de morte. A lei do estatuto vigente do fictício condado é intransigente a esse respeito: “Quem quer que tire a vida a outrem intencionalmente será punido com a morte”. Após dar seu parecer, o presidente abre a oportunidade para que seus quatro colegas de corte também o façam, e assim o leitor se vê diante de uma narrativa não convencional, empenhada mimetizar as condições reais de um julgamento em plenário.

Dado esse fato, a narrativa do caso e seus (importantes) pormenores ocupam um espaço reduzido no livro: o que está realmente em jogo são os pareceres de cada juiz. Eis aqui a essência, o escopo da obra.

Apontamentos e perplexidades
Cada um dos cinco posicionamentos reflete uma postura jurídica mais comum do que se possa crer no mundo dos tribunais. São escrutínios que vão do legalismo ao “direito criativo”, do moralismo ao positivismo. Não é intenção desta resenha esquadrinhar o perfil de cada juiz, e enveredar excessivamente numa análise técnica mais propensa a afastar o leitor comum que a convidá-lo a descobrir por si a obra; tal intenção seria mesmo contraproducente ao espírito dela. O caminho mais fecundo é pincelar certos apontamentos e perplexidades dos juízes, o que aproxima nossa humanidade à dessas figuras, comumente caracterizadas por sua distância fria e rígida do cidadão comum.

A posição do presidente é a de condenação dos acusados, com um olho no Poder Executivo (este pode monocraticamente conceder perdão aos réus); a expectativa seria manter, segundo esse juiz, o verniz da legalidade, poupando a corte. A esta postura se insurge o juiz Handy, que em seu voto declara a simplicidade do caso, com uma postura não menos polêmica: propõe que a corte, no veredito, volte-se à opinião pública; desta forma, a absolvição seria assegurada: cerca de 90% da população local perdoaria os réus. Antecede-o os juízes Tatting (que se abstém do voto) e os juízes Forster e Keen, antagonistas entre si, aquele em absolver os réus, este em condená-los, balizado na fidelidade à letra da lei.

Leitura participativa
A leitura mais proveitosa que se pode fazer do livro não é a busca ávida pela decisão que prevalecerá, nem pelo destino dos exploradores. O essencial está em participar da perplexidade dos juízes e seguir sua linha de raciocínio, observando como instrumentalizam um valor tão complexo e abstrato como é a Justiça. Também especular a que rumo seus vereditos levariam a sociedade, se endossados.

Sem dúvidas, o voto do juiz Forster é dos mais interessantes. Ele se apoia em dois argumentos: 1) o da clausura como um retorno ao “estado natural” do homem, onde vigora o “direito natural” em detrimento do “positivo”; 2) o da linha moral limítrofe, limitadora como a da jurisdição (nesse caso, geográfica), onde a letra de lei e sua intencionalidade “dissuasória” não podem vigorar.

Como se vê, é um voto que tangencia o viés naturalista, uma vez que entende que o homem pode tomar uma atitude bárbara, animalesca, quando apartado do estado civilizatório. Contudo, suas implicações podem resultar perigosas quando se entende que em situações extremas, em que o Estado não garante os direitos essenciais, o homem pode rescindir o contrato social.

Não é mais bem realizado, embora igualmente convincente, o voto em sentido oposto do juiz Keen. Sua postura pode ser entendida como positivista, no sentido de crer na concisão da forma jurídica e no espírito das leis. Em suma, ao juiz cabe tão somente aplicar o que foi legislado. Porém, numa sociedade em constante mudança, como esperar que as leis tenham inerentemente uma adaptabilidade atemporal, uma lógica interna que lhe preserve a eficácia? E quando a aplicação literal da lei, longe dos limites da razoabilidade, perpetra um absurdo: a condenação à morte de quatro homens cujo resgate custou a vida de outros dez?

O que vem a ser justo em tal caso? As leis podem alcançar tal valor? A tecnicalidade excessiva pode acabar por esvaziar o que há de humano nelas? E como manter sua integridade em meio à constante tensão entre os poderes que constituem o Estado (questão tão premente no Brasil atual)?

É a capacidade de levantar tantas perguntas sem prescrever uma solução que torna O caso dos exploradores de cavernas uma leitura cativante e tão fecunda. Obra tão complexa e, ao mesmo tempo, simples e acessível ao leitor comum.

O caso dos exploradores de cavernas
Lon L. Fuller
Trad.: Artur Padovan
Nova Fronteira
128 págs.
Lon L. Fuller
Nasceu no Texas (Estados Unidos), em 1902. Durante anos, atuou como professor da Universidade de Harvard, onde desenvolveu importantes teorias sobre a relação entre o Direito e a moral. Ganhou grande notoriedade após a publicação de O caso dos exploradores de cavernas. Morreu, aos 75 anos, na Alemanha.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

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