Quando comentou pela primeira vez sobre o trabalho que estava desenvolvendo em Leopardo negro, lobo vermelho, Marlon James disse que estava escrevendo um Game of thrones numa África ancestral. O comentário repercutiu: até George R. R. Martin, autor da saga, ligou para ele. Como conta Raquel Carneiro, em uma matéria da Veja, James tentou explicar a piada e desconversar, mas ambos se encontraram para trocar ideias.
No Brasil, os trabalhos de Marlon James se tornaram mais conhecidos depois que o autor jamaicano venceu o Man Booker Prize em 2015 com o best-seller Breve história de sete assassinatos, romance que narra um atentado sofrido por Bob Marley sob a perspectiva de outros personagens. Em Leopardo negro, lobo vermelho, James nos guia por outro caminho, nas trilhas de um mundo épico fantástico.
O livro traz a história do Rastreador: um homem conhecido por seu faro excelente, sua tolice e sua impulsividade. É ele o responsável por parte do título, pois, ao ter um dos olhos devorado por uma mulher-hiena, recebe de presente o olho de um lobo. A outra metade do título é dedicada ao seu companheiro, o Leopardo, um metamorfo-fera que pode adquirir feições humanas ou felinas.
Ambos se conhecem durante o transporte de crianças rejeitadas para Sangoma, uma bruxa que habita um bosque encantado. Tais bebês são Mingi. O costume de seu povo é matá-los para que não tragam azar ao lar. Entre eles estão gêmeos siameses, a Garota Fumaça e uma criança albina.
Esse resgate é impactante na vida do Rastreador, pois marca sua jornada fora do abrigo familiar e dos momentos em que materializa a angústia com sua identidade: ele reflete sobre sua família, rejeita seus ancestrais e renega a espiritualidade com a frase que perpassa o romance: “Fodam-se todos os deuses”. Nesse momento, o amor que sente pela criança Kava ou pelo Leopardo é afastado quando ele aprende a lição de que “ninguém ama ninguém”.
A vida segue sem percalços nos primeiros momentos de sua independência, com pequenos trabalhos de localizar maridos e esposas infiéis. Tudo muda quando ele recebe a missão de resgatar uma criança. Sequestrada por seres misteriosos e envolta numa conspiração política e mística, ela é a única sobrevivente de um assassinato cometido por demônios que brotam do teto da casa de um conselheiro real.
Acompanhamos sua jornada ao longo de todas as Terras do Norte, de Gangatom a Dolingo, procurando a criança e a trupe de assassinos que a leva. Mas há um truque aí. Sabemos na primeira linha do romance que “a criança está morta. Não há nada mais o que saber”. Se sabemos que ele falha, então do que se trata o romance?
O que lemos é o depoimento do Rastreador ao Inquisidor, ou necromante, que o interroga. O Rastreador avisa sobre a maleabilidade dos relatos, nos quais “a verdade engole as mentiras como um crocodilo”, e a concretude passa a ser apenas a ficção dos deuses. Nesse tom, seguimos a trilha da memória de um narrador não confiável, raivoso, imprudente.
As aproximações feitas ao Tolkien, como na contracapa, ou com o próprio George R. R. Martin, não são exatamente verdadeiras. O que há de Game of thrones em Leopardo negro, lobo vermelho talvez seja a presença desses personagens dúbios, de uma narrativa violenta e a política no pano de fundo, que versa sobre a ameaça de um perigo branco se aproximando pelos mares; a necessidade de um continente unido para enfrentá-la; a briga entre o status quo masculino e o golpe que retirou o poder da linhagem feminina; além da morte dos deuses e a ascensão de uma ciência cruel.
A criação desse mundo é acompanhada por mapas feitos pelo autor, pela presença de maravilhas que desafiam os limites da ciência e da magia, e da presença de seres mitológicos, como os homens-fera, o Ipundulu (um pássaro trovão), as bestas sanguinárias Asanbosam e Sasabonsam, ou até mesmo as crianças Mingi — mitos que dialogam com tradições da Etiópia, Gana, Togo, Nigéria e Somália, entre outros países.
Tamanha criação, infelizmente, faz com que algumas vezes o protagonista se perca em sua falta de propósito. Em alguns momentos, acompanhamos frases bem-construídas e cenários estonteantes, mas o personagem carece de motivação para continuar seguindo — problema semelhante ao de Shadow Moon no romance Deuses americanos, de Neil Gaiman.
Brutalidade e oralidade
Na apresentação desse mundo, a violência tem presença forte. Parte da recepção do romance foi marcada por uma aversão a essa brutalidade. No site Black & Bookish, por exemplo, Albert Williams destacou seu incômodo com as cenas de estupro, bestialidade, violência gráfica e tortura e uma forte misoginia que fizeram repensar sua relação com o autor.
O incômodo é válido, mas talvez impreciso. Ao fundamentar a narrativa na oralidade, James apresenta um narrador visivelmente imaturo e agressivo. O que esperar do depoimento de um sujeito marcado dessa forma quando partimos do pressuposto de que não há Verdade, mas verdades? Como podemos assumir que sua narrativa é verdadeira?
Da mesma forma que as versões sobre um crime são postas em xeque pela falta de confiabilidade dos narradores do conto Rashomon, de Ryunosuke Akutagawa, é fácil perceber que o ódio do Rastreador deturpa suas falas. Em um determinado momento do livro, Mossi, um de seus companheiros, afirma: “Talvez você nutra ódio pelas mulheres. (…) Eu nunca o vi falando bem de uma que fosse. Todas parecem ser bruxas”, frase que desestabiliza o que lemos ao longo de diversas cenas anteriores.
E até mesmo sua revolta é ambígua, repleta de potencialidades. Pétala Souza, em resenha na Folha de S. Paulo, fez um importante destaque: “Ao mesmo tempo que o narrador apresenta culturas patriarcais e normativas de gênero, fundamentadas por imaginários que estruturam hábitos e culturas notoriamente machistas, misóginas e capacitistas, ele também confronta convenções sobre sexualidade e mostra possibilidades de existência para corpos e comportamentos dissidentes”.
Vemos isso no trajeto de vida do Rastreador. Em primeiro lugar, sua sexualidade é definida como shoga (alguém que estabelece relações homoafetivas). Parte da construção pode ser vista como elementos que constituem essa sociedade patriarcal, na qual o amor de um homem deve ser reverenciado a outro homem. Mas também mostra uma situação angustiante, instável e desenraizada quando ele se caracteriza como alguém que, por não ter sido circuncidado, não conseguiu extirpar a “metade mulher” de dentro de si.
Além disso, o Rastreador renega suas relações genealógicas. Mata seu pai e avó, esquece sua mãe e não toma parte na trama de vingança entre famílias, correndo o risco de ser amaldiçoado pelos fantasmas do passado. Mas isso não o afeta: ele trata de esquecer seu nome e abandona qualquer ideia de lar, tornando-se nômade. No entanto, não deixa seus costumes culturais de lado e cria laços fortes de amor pelas crianças rejeitadas que ele salva no começo da narrativa.
Conforme dito em entrevista a Raquel Carneiro, Marlon James rejeitou as tradições eurocêntricas, pautadas pela moral “cristã” do grande salvador, da luta o bem contra o mal, como vemos nas histórias de Tolkien e dos seus heróis na Terra Média, para adotar uma outra cosmovisão. Ao partir do folclore do continente africano e as diversas tradições do continente, James tentou adotar uma postura “mais complicada”. Suas lendas são mais maleáveis, bagunçadas, repletas de desconfiança, de mentirosos e de sensualidade.
A adoção dessa maneira de ver o mundo é o grande trunfo do romance. Junto da maestria narrativa de Marlon James, a construção desse relato distorcido em uma miríade de verdades nos deixa chocados com a brutalidade que habita o coração do Rastreador e desestabiliza nossa busca pela verdade sobre a criança perdida.