A inutilidade da poesia

Ela não pode ser definida ou domada pelos tempos utiliários; sua autenticidade reside na inutilidade
Jorge Luis Borges, autor de “El hacedor”
06/01/2014

Poetas são seres bastante incomuns que escrevem com o corpo todo. Diferem, pois, de tantos outros escrevedores que para isto usam tão somente as mãos, os mais simples; ou as mãos conjugadas à memória, ou conjugadas ao pensamento, ou, ainda, conjugadas à imaginação. Mesmo quando, privilegiados, alguns aliam estas várias habilidades, não atingem a dimensão do poeta, o que escreve com todo o corpo.

Parece complicado, e é mesmo. Se afirmo que escreve com “todo o corpo”, insinuo não apenas uma interação entre os sentidos, os órgãos e membros com as inumeráveis faculdades mentais, mas uma aliança superior de tudo isto com o que chamamos “alma”. As células todas, provavelmente, são envolvidas no mágico esmero que leva ao poema.

Se altero, porém, a ordem das mesmas palavras para insinuar que ele, o poeta, escreve com “o corpo todo”, talvez esteja indo além, admitindo que seu corpo e o corpo do mundo se juntam num único corpo. Pode, pois, incorporar as aves, as árvores e as montanhas; as crianças, os homens e as mulheres; os mares e suas criaturas; as nuvens e até o céu com seu palpitar constante. Exagero? Bem pode o talvez inspirar o caminho do que transcende a compreensão.

Indefinível
Jorge Luis Borges, em palestras que deu na Universidade de Harvard (EUA) nos anos 67 e 68 do século passado, socorreu-se de Santo Agostinho para dobrar-se ao mistério da poesia: “Sei o que é, mas se me perguntam, já não sei”. Do poema, sim, artefato urdido em palavras, sabia explicar seus recursos preciosos, as artimanhas dos poetas prediletos, as técnicas exercidas com virtuosismo. Mas a poesia, este era um domínio do mistério!

Filha do acaso ou fruto do cálculo? Octavio Paz (O arco e a lira) enumera dezenas de conceitos, ou quase-conceitos, que permeiam os livros que tratam deste assunto: oração, litania, exorcismo, magia, sublimação, súplica ao vazio, diálogo com a ausência, pensamento não dirigido. Impossibilitado de chegar a um termo conclusivo, vale-se da metáfora para buscar uma aproximação: “O poema é um caracol onde ressoa a música do mundo”. A analogia é mais do que válida, pois é de supor-se que todo poema possa conter ou emitir poesia, essa vibração que nos “soa” sempre inaugural e íntima.

Ela, porém, senhora de mil e um sortilégios, não é moradora exclusiva do poema. Sabemos nós, aqueles de sentidos boquiabertos para as manhãs de cada dia, que as orquídeas, petúnias e margaridas são generosas em conteúdo poético. E o que dizer das pontes ao crepúsculo, do farfalhar das ondas do mar ao pôr-do-sol, dos cantares do uirapuru e do sabiá-laranjeira?

O corpo do mundo oferece, ininterruptamente, inesgotáveis fontes de poesia. Seriam prêmio ou estímulo à vida? Crianças, mulheres e homens em todos os tempos souberam colher esses mimos da criação. Mas tal se tanto não bastasse, a natureza criou, ainda, os poetas. García Lorca os entrevia como médiuns da natureza. Na verdade são apenas artífices do poema, ou seja, “arteiros” capazes de pôr poesia num conjunto organizado de palavras.

Havendo o poema, necessita-se evocar um terceiro elemento, sem o qual nada acontece: o leitor (ou ouvinte). É ele, o leitor, incluindo você que lê estas linhas, que opera então o “milagre” de fazer surgir, do poema, a poesia.

Voltamos, pois, a ela, um produto abundante que não se deixa definir e ao mesmo tempo um “luxo” apenas acessível pela combinação de vários elementos: poeta, poema, leitor.

Enfim, para que serve este capricho que resulta em tantas paixões, prêmios milionários e centenas de milhares de livros publicados, todos os anos, ao redor do planeta?

Alma da poesia
O poeta Paulo Leminski, que em sua época associou sempre à atividade poética uma performance pessoal ousada e intensa, defendeu a idéia do poema como um in-utensílio. “Eu escrevo apenas./ Tem que ter por quê?”, questionou num de seus textos de Memória de vida (Fundação Cultural de Curitiba, 1989). Dizia que vivemos num mundo em que tudo precisa ter uma utilidade. Para que serve isto? — é a pergunta que rege a vida em sociedade. Tudo se pauta no ganho e no lucro. Em muitas situações, como no trabalho do escritor, pode valer o lucro ideológico!

No contexto amplo do utilitarismo e do consumismo, a poesia é a “estranha no ninho”, pois não é utilitária e, até prova em contrário, não serve para nada, nem mesmo ao entretenimento. É, pois, inútil! Talvez sirva, dirá o coração, ao exercício da liberdade. O poeta, em sua natureza “sui generis” e ao buscá-la em seus escritos, não se submete a nenhum tipo de aprisionamento. Não se faz refém do jogo de mercado. Não a negocia. Antes, se desprende, se descobre, se reinventa. E, assim, ela surge, fulgor existencial, chama da vida, celebração e prazer, resgate de elos perdidos no templo da criação.

Não fosse inútil, não seria o que é: expressão autêntica desse prisma enigmático que é a vida. Em ser inútil, poderíamos dizer, encontra-se a sua utilidade. E a sua inquestionável veracidade.

Alcides Buss

É autor de mais de vinte livros de poesia, entre eles Janela para o mar (Caminho de Dentro Edições, 2012). Coordena o Círculo de Leitura de Florianópolis.

Rascunho