A insistência em se aniquilar

Em “Voz sem saída”, a francesa Céline Curiol trata da solidão por meio de uma protagonista individualista e avessa a relações sociais
Céline Curiol: estréia marcada pela forma como retrata a solidão.
01/10/2006

Um beijo roubado no fim de um jantar entre amigos desestabiliza a garota como nunca antes.

Ela se apaixona por ele e não consegue imaginar a vida a não ser ao lado dele.

Ele, porém, é casado com a mulher perfeita. Parece até que tem asas e seu nome diz muito: Ange.

Depois do incidente no jantar, a garota procura reencontrar o homem que acredita ser o seu, mas a rotina os afasta e ambos demonstram uma incapacidade paralisante de lidar com a situação. Dessa forma, seguem com seus cotidianos, mais ou menos levados pela corrente.

A garota em questão está perto de completar 30 anos e protagoniza o romance de estréia de Céline Curiol, Voz sem saída. Em momento algum o nome dela é mencionado — nem o do alvo de sua afeição. Embora seja uma sem-nome e, por muito tempo, careça também de um rosto (uma descrição de seus traços surge somente no último terço do livro), ela fisga o leitor pela maneira de ser e de agir. O vínculo pode ser imediato.

A narrativa em terceira pessoa revela uma garota frágil, silenciosa e indiferente (ao menos na aparência) diante dos absurdos que pousam em sua frente. A autora a descreve como uma mulher que diz “sim” quando o “não” seria a resposta mais comum e sensata. Quando um homem a aborda na rua, dizendo que é seu aniversário e que gostaria de conversar, ela hesita, mas acaba cedendo aos apelos e aceita tomar um café com o tipo — mais tarde ele se revela menos confiável do que poderia parecer.

A história do dizer sim no lugar do não vale também para as boas coisas e não apenas para encontros bizarros — que ela experimenta em demasia durante a ação —, e significa que ela tem uma resistência natural à felicidade. Por vezes, assume o papel de uma mártir, daquela que deseja morrer por amor. Por outras, torna-se capaz de sabotar a si mesma de modo inconsciente.

A garota tem um emprego curioso, é locutora da estação Gare du Nord, em Paris, responsável por anunciar horários, números dos trens, embarques e desembarques. Essa poderia ser uma das razões para a voz citada no título da obra. Contudo, a voz sem saída, ou a voz aprisionada, é também uma descrição acurada da dificuldade crônica que a heroína tem de dizer o que pensa. Na maior parte do tempo, ela está arcando com as conseqüências de seu silêncio.

Em um bar a fim de beber e pensar em qualquer coisa que não seja a ausência do homem que ama, ela é abordada por um transformista que consegue convencê-la, facilmente, a fazer um pequeno papel no número musical que está prestes a apresentar. Logo no começo do show, ela deve sair correndo, atirar-se nos braços dele e exclamar “você prometeu!”. Ela interpreta sua versão da namorada contrariada, arranca risos do público e volta a falar com o travesti ao término do espetáculo. Bêbada a ponto de apagar durante alguns segundos sem se dar conta, ela aceita voltar para casa com seu “amigo”. Na manhã seguinte, fica surpresa de ter feito o que fez e por descobrir que, debaixo de toda a roupa espalhafatosa e da maquiagem, da voz e dos trejeitos femininos, o sujeito ainda tinha interesse por mulheres.

Situações como essa aparecem pelo menos uma meia dúzia de vezes ao longo da narrativa. É o modus operandi da protagonista. Leva-se tempo para entender as razões que a embalam. Mesmo ao final da história, elas não ficam muito claras. A garota fica entre o patético e o imbecil, entre a apatia e o sentimentalismo.

Ela deseja o homem com todas as células do seu corpo, mas não parece disposta a desistir de sua solidão. A incoerência dos seus sentimentos fica evidente no momento em que o casal planeja viajar às escondidas para Londres. Na noite da véspera, ela aceita se encontrar com o fotógrafo com quem fez uma sessão de fotos e, de novo, bebe o suficiente para perder a conta do número de taças de vinho que consumiu. Na manhã seguinte, acorda com apenas vinte minutos para se arrumar e chegar à estação. É quase certo que vai perder o trem e o encontro (e perde).

Apesar de não encontrar o amante, decide ir a Londres na esperança de encontrá-lo na estação. Não gosta da idéia de viajar sozinha, mas despreza a possibilidade de continuar em Paris. Chega ao ponto de se conformar com a solidão e pensa até em aproveitar o que puder da cidade inglesa sozinha. A face perdedora se revela sobretudo no trecho em que descobre uma xará atriz e até se diverte com a idéia, mas a narradora diz:

A celebridade nunca a seduziu. Jamais procurou fazer algo que pudesse render o reconhecimento alheio. Nada em sua vida lhe parece digno de ser louvado ou exposto. Seu consiste em falar num microfone enunciando informações do modo mais sintético possível. Produz sons. Qualquer um poderia fazer isso no lugar dela. Aliás, nunca desejou ser imprescindível. Ver seu nome impresso num jornal, ser reconhecida e bajulada por gente que faz dela uma imagem ideal e falseada seria um incômodo. Teria a impressão de ser uma usurpadora.

O desejo de “nunca ser imprescindível” denuncia uma pessoa avessa a relações e até a responsabilidades. A certa altura, ela deixa claro que não deseja ser mãe e nem sequer tem um animal de estimação — algo bastante raro vindo de uma mulher solteira que vive sozinha em Paris (cidade em que mais de 50% da população tem gatos ou cachorros).

Céline Curiol criou uma protagonista que está preocupada demais consigo própria. Ela parece desejar o homem de Ange na medida em que ela deseja o que ela tem. A garota faz comparações e vê Ange como uma mulher decidida, sensível e radiante. Mais de uma vez ela se envolve em circunstâncias e se pergunta o que Ange faria no lugar dela.

Na verdade, pela insistência em se aniquilar, a garota quer chamar a atenção — uma mulher de 28 anos agindo como se tivesse 15 ou 5. “Novamente aquele desejo infantil de desaparecer por vingança, de sumir para provocar nos outros um efeito nunca obtido em vida, de saborear as reações das poucas pessoas informadas de sua morte.” Ao constatar que, de fato, não é imprescindível, ela surta. Confunde certo e errado e se expõe da pior maneira que julgava possível — justamente no trabalho.

Voz sem saída engasga ao exagerar em metáforas que ficariam melhores em um melodrama. A história do “bloco de chumbo” que lhe inseriram no peito — resultado de um encontro com o homem de sua vida que terminou sendo desajeitado, frio e desconfortável, longe de qualquer intimidade — dura 12 páginas, tornando-se cansativa e involuntariamente cômica. Termina com o chumbo virando “uma borracha viscosa”.

Outra decepção é a opção por dar à protagonista um trauma de infância. Não fica claro quem teria sido responsável pela experiência perturbadora, mas sabe-se que foi alguém de sua família, talvez o pai. O velho recurso de justificar certas atitudes ou personalidades com uma infância traumática é tão batido que se tornou uma espécie de fórmula para os filmes americanos. Sempre que um personagem demonstra um comportamento não-convencional ou doentio, tratam de arranjar um trauma de infância para explicá-lo e justificá-lo. É assim com bandidos e inclusive com alguns mocinhos. É ainda algo típico de histórias em quadrinhos, quando o trauma funciona como um estímulo para o combate ao crime ou algo do gênero.

A estréia literária da jornalista Céline Curiol — celebrada em coro pela imprensa francesa a partir de um texto elogioso do escritor americano Paul Auster — marca pela forma com que retrata o paradoxo da solidão, um sentimento (ou situação?) capaz de aterrorizar e de inspirar. Um anseio que é também uma aflição.

Voz sem saída
Trad.: Bluma Waddington Vilar
Céline Curiol
Nova Fronteira
230 págs.
Céline Curiol
Nasceu em Lyon (França), em 1974, e vive em Nova York. Trabalha como free-lancer para os jornais Libération e France Inter. Voz sem saída é seu romance de estréia.
Irinêo Netto
Rascunho