Segundo volume de poemas do escritor, jornalista e editor Thales Guaracy, Além da memória é uma sequência de composições com uma proposta clara: buscar, na infância do adulto que escreve os versos, os momentos fundamentais de sua formação. Autodenominado “livro-espelho”, propõe a escrita poética não apenas como instrumento a partir do qual o “eu” busca a si mesmo, mas também como espaço para a expressão do próprio autor.
Nesse sentido, há continuidade evidente com o trabalho poético anterior, Asas sobre nós, no qual Guaracy propunha contar a história da geração crescida ao longo dos anos 1960. Desta vez, porém, o interesse se desloca da coletividade com a qual o autor se identifica e recai sobre elementos pessoais. “A infância não é lembrança/ é presente que se aviva/ quanto mais o tempo passa/ volto a mim mesmo/ reencontro a mim mesmo”, como se explicita logo na segunda página.
O fechamento não é absoluto, havendo espaço, por exemplo, para as transformações no bairro da Liberdade — onde o sujeito dos poemas nasceu e se tornou “menino de apartamento” (como se intitula uma das partes) — e também para referências à história do Brasil. A cena coletiva, porém, permanece incorporada ao universo lírico, não ganhando plena objetividade. Cabe ao leitor deduzir a que se referem os seguintes versos, operação reveladora, também, do posicionamento político do autor:
vi o Brasil dar uma lição
de como se constrói uma nação
depois de tempos infernais
democracia e justiça social
estandartes da minha geração
não são meras palavras de ordem
foram ação cotidiana
trabalho árduo para fazer o gigante
ser do tamanho da sua riqueza
e vê-la mais bem repartida.
Enquanto a proposta de narrar a história de uma geração pressupõe a singularidade dessa geração, a justificativa para o interesse no indivíduo caminha, pelo menos em princípio, no sentido inverso. Num poema que justamente começa com os versos “Para que contar uma história/ talvez sem grandes encantos”, uma estrofe responde: “O homem mais comum/ jamais será pouco/ infinito que cabe em um/ inversão do universo para dentro de si/ pois o universo nos cabe no peito/ somos pequenos e também somos grandes”.
Como se vê, há uma dimensão metalinguística importante, que se faz presente ao longo de todo o livro, mas é especialmente marcante no início. São seis ou sete poemas que antecedem a menção ao nascimento do sujeito e que cumprem, também por isso, a função de pórtico, oferecendo chaves de leitura e afirmando a que vem o livro.
Entre o prosaico e o sublime
O leitor ideal do conjunto, de acordo com o primeiro poema, é “quem vai do poço/ ao céu e do céu ao fundo”, ou seja, é alguém habituado à variação de registros poéticos. A expectativa de que Além da memória jogará com essa oscilação se fortalece mais adiante, numa composição em que a reflexão sobre o valor do livro se torna uma discussão sobre a própria vida — considerada “insignificante” quando vista no miúdo e grandiosa quanto tomada em sentido absoluto. O sujeito se situa, assim, na “rede incorpórea da humanidade”, a qual resume em quatro das estrofes do poema, passando pela sopa primordial (“onde a molécula primitiva e morta/ de repente se tornou/ vida”); pela seleção natural do animal “artificioso e inteligente”, em detrimento do maior; pelas transformações culturais humanas, dos nômades aos “gregos inventores da sabedoria”; pela valorização de reis, heróis e celebridades.
Nessa procura da dimensão universal se inscreve um dos pressupostos do livro: a noção de coletividade emerge do que é comumente partilhado pela humanidade, na contramão de um “nós” que, na literatura contemporânea, se afirma sobretudo por meio da identidade. O sujeito se configura, assim, nos moldes do que propunha a poesia moderna até o século 20 (“porque o universo só existe/ diante do meu olhar/ a lhe dar/ significado”), afirmando-se em versos que, por tomarem o gênero masculino como universal, podem espantar a sensibilidade contemporânea:
Levanto a bandeira do homem
rota, rasgada, inglória
frágil quixotesca insensata
de quem arrisca a vida
e no exílio da existência
inventa o sonho
dá sentido à Criação
ao cosmo
ao café na cama
ao trabalho transformador
à saudade
ao beijo roubado.
Esse excerto mostra também como o trânsito entre o sublime poético e o prosaísmo, a despeito da expectativa inicial, é achatado. Parece haver a tentativa de contrapor, de um lado, o sonho, a Criação, o cosmo a, de outro, o café na cama, o trabalho, o beijo roubado. Mas a mera enumeração dos elementos no poema é incapaz de produzir efeito poético. Em primeiro lugar, por se tratar de clichês, o que de saída rebaixa termos como “cosmo” e “Criação”. Além disso, não há, entre essas duas esferas, uma oposição forte — muito embora exista, na lírica brasileira, uma tradição poética relevante e expressiva nesse sentido, facilmente exemplificada por Manuel Bandeira, mestre em produzir versos sublimes sobre banalidades como um cacto ou uma maçã.
Arquitetura ou suspensão
Entre os pressupostos assumidos inicialmente no livro está, ainda, o contraponto entre prosa e poesia. A primeira, afirma o poeta, é “arquitetura”, enquanto a segunda é “suspensão” — vista, aqui, como resultado do trabalho poético: “esmerilhar a palavra/ até que ela baile na página/ como na brisa/ anti-palavra/ busca não o sentido/ mas o sentimento/ não o coração/ mas sua aura”. Por se tratar de um parti pris literário, vale a pena tomá-lo como parâmetro para a leitura crítica do livro, interrogando em que medida ilumina seus caminhos.
Em defesa do poeta, é importante dizer que a arquitetura não é uma dimensão ausente do livro. Da espera na cama pelo beijo da mãe à entrada na creche, da limitação física na primeira infância ao futebol jogado na sala com o pai, os episódios são evocados pela capacidade de iluminar o presente. E, embora não haja rigor cronológico, é possível notar, na sequência de poemas, a constituição da narrativa biográfica: o retrato dos avós, o romance dos pais, o amor capaz de gerar, o nascimento, a mudança de casa, a correção do problema físico no fêmur, os primeiros passos, as brincadeiras de infância e assim por diante. Considerada em conjunto com a uniformidade do registro, essa característica permite ler o livro como uma longa peça única, ainda que dividida em partes.
Já no que diz respeito ao esmero, o recurso poético mais evidente é a rima, que surge em versos intercalados e, embora renda alguns achados interessantes, com frequência se constrói de obviedade: “Não há aflição ou dor maior/ nem nada mais infeliz/ tormento ou destino pior/ que um filho estar por um triz”.
Sem o apoio da rima, contudo, é difícil identificar o que determina a quebra da linha: “O mundo nunca mais é o mesmo/ depois de descobrirmos o Lobo Mau/ saber que existe a maldade muda a vida/ desfaz a criança/ e só a resgatamos/ muito mais tarde (e por breve tempo)/ quando os filhos nascem”. Diante da ausência de trabalho sonoro, sintático ou imagético, torna-se difícil compreender a razão para a adoção dos versos.
Mas a questão não é meramente formal, encontrando expressão também no ponto de vista do eu lírico, excessivamente colado à infância. A passagem mais exemplar, nesse sentido, diz respeito a Zica, empregada que acaba demitida após ameaçar fisicamente o menino. São os afetos deste, esperadamente incapaz de capturar nuances e contradições, que reduzem o conflito a uma oposição entre fortes (Zica) e fracos (a criança).
Como ensinou Bandeira, o desafio do verso livre é equivalente a encontrar, na floresta, o caminho sem bússola. Cabe ao poeta forjar o próprio ritmo, o que está longe de ser uma tarefa apenas do sentimento, da aura ou do coração.