O que faz o leitor quando gosta pouco de um livro, mas não consegue parar de lê-lo até descobrir o que acontece com o personagem principal? O leitor larga o livro no meio e deixa o personagem sozinho com sua vida ou insiste na leitura para ver se encontra virtudes no texto? (Respostas para a redação, por favor). Confesso que, em vários momentos de As almas que se quebram no chão, último trabalho de Karleno Bocarro, tive vontade de simplesmente largar o livro e deixar o bunda-mole do Marco Dilthey, o protagonista do livro, ficar se achando o único azarado do mundo sozinho. Mas não consegui, e prossegui até o ponto final, sem saber se foi bom ou não.
A pouca simpatia com um trabalho pode ter várias origens. Uma delas: o livro mexe tanto com os nossos sentimentos que podemos nos sentir incomodados a um ponto em que ler é doloroso. E, se não temos coragem de enfrentar nossos demônios internos, largamos o livro para não doer mais. Mas esse não foi o caso de As almas… O livro nos conta a história de Marco Dilthey, um paulistano que, meio sem saber o que fazer da vida, consegue uma bolsa de estudos para ir à República Democrática da Alemanha, a antiga Alemanha comunista. Estamos no final dos anos 80 e o Muro de Berlim ainda não caiu, mas já balança.
Marco vai para Leipzig estudar alemão durante um ano e depois se muda para Berlim, recém-reunificada mas ainda com grandes contrastes entre as duas partes, a leste comunista e a oeste capitalista. Chegando a Berlim Marco conhece Barad, um brasileiro que havia morado em Moscou antes de chegar a Berlim, que sonha em um dia ser escritor, e Dias, um antigo militante comunista cujo maior mérito era ter traduzido o Manifesto Comunista em uma linguagem compreensível para os metalúrgicos do ABC. Ambos são inteligentes e estudiosos, além de esforçados, mas Marco não quer saber de nem de esforço nem de estudos. Marco sonha em agarrar uma alemã, mas, por não querer se esforçar com a língua e por não ser um representante do estereótipo do brasileiro (não é negro, nem forte, nem sabe dançar, nem tocar um instrumento), ele não chama a atenção. E aí você começa a ter raiva de Marco, pois ele sonha com as coisas, mas não faz nada para alcançá-las.
Um dia Marco vai ao encontro de Dias e conhece Bocas, um brasileiro mau-caráter que compreende como poucos as chances que o vácuo de poder abre para quem não segue as leis. Bocas invade um prédio abandonado na Berlim comunista e inaugura um bar, o Fawela, com uma única bebida disponível, a caipirinha. O bar é um sucesso nos círculos alternativos berlinenses, e vive cheio nos fins de semana. Marco é o barman e Bocas é o garanhão, o estereótipo brasileiro com um pênis mágico e uma lábia infalível que come qualquer mulher que passar pela sua frente. Marco inveja essa capacidade de Bocas, tenta ficar por perto para conseguir algumas migalhas do harém de seu chefe, mas tudo o que consegue fazer é ficar imaginando um futuro em que as mulheres virão até ele sem esforço. Ou seja, é um bunda-mole.
Por fim, Marco desiste de sua aventura alemã e retorna ao Brasil. Mas, em vez de ter aprendido com sua inércia, ele se torna ainda mais inerte. Acompanhamos o regresso de Marco e sua tentativa de readaptação ao Brasil com mais raiva ainda, pois Marco não toma decisões, deixa-se levar pelo ideal de um sonho sem fazer nada para se aproximar dele. Talvez Marco seja como milhares de pessoas, que sonham mas não fazem nada por esse sonho. Eu posso dizer que não me identifiquei com ele, e que por isso não me vi em sua pele. Não houve empatia entre nós. Confesso, porém, que é um alívio ver um personagem que é bem verossímil, pois há vários Marcos andando por aí, sonhando que a sorte lhes chegue como um prêmio da Mega-Sena, sem que seja necessário fazer a aposta. Nesse ponto, Bocarro acerta a mão.
Estilo
Outro motivo que pode nos fazer largar um livro antes de seu fim é o seu estilo. Bocarro escreve de maneira um tanto quanto agressiva, um pouco ao estilo dos escritores beatniks que tanto sucesso fizeram e fazem junto aos jovens. Frases curtas, nem sempre como mandam as regras (sujeito, verbo e predicado), um fluxo contínuo de pensamento, em certos pontos um fluxo mais veloz embaralhando um pouco a percepção do leitor, confundindo quem lê ao promover deslocamentos de tempo e espaço sem que se dê tempo para a transição. Se durante um tempo isso parece ser bacana, depois de um tempo pode se tornar cansativo. Pode ser que o problema seja eu e minha juventude que há muito já se foi, mas pode não ser. Em todo o caso, é um direito do leitor deixar o livro pela metade, e eu não o exerci pois queria que Marco tomasse uma decisão. Por isso, vamos até o fim.
Mais um motivo para se largar um livro é perceber nele algumas pontas soltas na narrativa, que não se fecham direito. No caso de As almas…, Bocarro consegue concluir a história de Barad, dá um desfecho bom para Bocas, mas Dias fica pelo caminho. O início do livro também traz um narrador em primeira pessoa que desaparece e que, se sabemos que é quem conheceu a história de Marco e dos outros através do contato com eles, não mais interage conosco. Para onde ele foi? Há outras personagens menores, de quem sabemos mais ou menos, como por exemplo Mohammed, o churrasqueiro palestino do restaurante onde Barad trabalhou. Bocarro começa a descrever o personagem, dá um pano de fundo interessante para ele e, de repente, ele some. O que aconteceu? Outro ponto que desequilibra o livro é que Barad é um personagem bem importante na história, e não se dá a devida importância a ele. Barad poderia ter crescido.
E como falar e criticar é fácil, poderia ter implicado com o uso de expressões em alemão ao longo do texto (o que se justifica, pois Bocarro morou oito anos na Alemanha), com o início da história não revelando seu fim, mas um ponto intermediário na narrativa, com um final meio estranho, uma vingança de polichinelo executada por Marco. Mas isso é fácil. É preciso reconhecer que Bocarro tem talento e que conseguir estrear com um romance de mais de 300 páginas e com um personagem que nos intriga não é para muitos.
Por tudo isso, poderia ter largado o livro, mas não o fiz. Marco é por demais interessante para se deixar para trás. Descobrir ao final qual é o seu destino é quase um regozijo, uma vingança pela sua falta de vontade de agir e deixar o mundo fazer as escolhas para ele. Quase dizemos: “Bem feito, bem que mereceu esse destino”, o que Bocarro tem muitos méritos por conseguir criar tal personagem. As almas que se quebram no chão tem méritos e defeitos, e seus méritos superam os defeitos. Muito provavelmente, precisamos aguardar que Bocarro lapide seu talento para que os próximos trabalhos venham ainda mais interessantes. E que, ao fim desta resenha pretensiosa, me faça descobrir que o livro é bom, sim, instigante pois nos prende, trabalhoso, pois nos faz pensar, e curioso por nos fazer pensar diferente a respeito de uma época que é definidora da história contemporânea. Ainda bem que não larguei o livro.
3 Perguntas – Karleno Bocarro
• Como foi o seu primeiro contato com a literatura? E o que ela representa atualmente em sua vida?
Na infância. Meu pai deu-me de presente Os contos dos Irmãos Grimm. Eu adorava os contos que tratam de pactos demoníacos, duendes ávidos por almas ingênuas, pais que vendem os filhos, bruxas promíscuas… Embora à noite sofresse pesadelos. Bem, acho que um dos demônios dos contos resolveu brincar comigo. Eu tinha 12 anos quando sonhei — dias antes da morte de meu pai — com algo grave e implacável, o qual me invocava a um compromisso: realizar-me como escritor. Obviamente isso influenciou minhas escolhas futuras: a ida à Alemanha, o retorno ao Brasil… Escrevi quatro romances antes de conseguir publicar o primeiro! Se a arte tivesse a ver com felicidade e paz de espírito, há muito eu teria desistido. As recompensas são mínimas, os sacrifícios enormes e permanentes. Na verdade, a arte confunde-se com um chamado: vocação! Não se foge disso; ela nos arrasta por toda a vida.
• O que você pretende com sua escrita, o que espera alcançar?
Primeiro, a auto-suficiência, tempo e condições para concentrar-me nos vários romances que pretendo escrever. Ao mesmo tempo, a realização de um projeto: refletir, através da escrita, sobre nossa época de cinzas de um fogo que se extingue, o fogo de um estado anterior, melhor para o homem, de um ponto de vista espiritual, do que este em que se encontra agora. No momento, o faço por meio de uma trilogia instigada pela filosofia de Kierkegaard. A partir de uma pergunta aristotélica — Como devemos viver? —, eu discuto as fases da existência: a estética, a ética e a religiosa. Em As almas que se quebram no chão, a reflexão é a vida de pessoas — no caso, estudantes brasileiros em Berlim — que desprezam a seriedade para com o destino, a percepção de um dever a cumprir e as responsabilidades inadiáveis. Em O advento, romance em fase de conclusão, a questão é ética, e gira em torno das conseqüências da recusa ou aceitação da paternidade. Num terceiro romance, O bosque do meio-dia, livro pronto e inédito, trato do amadurecimento de um garoto na época da Ditadura Militar. Ele “desperta” de uma difícil infância, como quem estende os braços para rezar, “a extremidade dos dedos encosta na luz e afasta o medo”. Uma atitude do homem diante do Criador.
• Por que a escolha do romance como gênero literário a ser encarado em seu trabalho de criação?
Tem algo a ver com talento. A poesia é uma arte admirável, mas a mim impossível. Embora, ao descrever as personagens, o tempo, uma paisagem, eu me permita um certo diletantismo lírico. Mas no romance cabem os mais diversos gêneros literários: pequenos contos, diálogos dramáticos… E ele ainda é o melhor e mais abrangente meio de entendimento da realidade, ainda que ela se encontre em dissolução e trincada. Se ao fim da leitura o leitor, provocado a refletir, percebe, que num mundo de cinzas, ainda restam fagulhas às quais se apegar: a compaixão, a força de vontade, a paciência, a esperança… Então, a realização do escritor, como ser humano, inevitavelmente acontece.