A impossibilidade da beleza

“Meu nome é vermelho”, de Orhan Pamuk, trata da falta de liberdade imposta pelo islamismo na Turquia
Orhan Pamuk, autor de “A maleta do meu pai”
01/10/2006

Orhan Pamuk passou pelo Brasil na Flip de 2005, quando era apenas um ótimo e premiado escritor. Logo depois, tornou-se o mais novo símbolo da luta pela liberdade de expressão (alvo de um processo pra lá de esquisito na Turquia) e de um movimento internacional de defesa que uniu escritores como José Saramago, Günter Grass, Vargas Llosa e outros do mesmo calibre.

Pamuk se safou, por enquanto. O governo da Turquia, na sua tentativa de entrar na Comunidade Européia, considerou que, para isso, precisaria se comportar um pouco como um país europeu, e não deu continuidade ao processo. O crime de Pamuk? Ter afirmado em entrevista a um jornal suíço que a Turquia cometeu genocídio contra curdos e armênios, algo mais do que sabido, que talvez somente a velhinha de Taubaté, quando viva, ainda duvidasse de sua veracidade histórica.

Desgraça essa de ser escritor em um país do mundo islâmico, mesmo numa Turquia que tenta o equilibrismo mais do que complicado de ser uma suposta democracia laica com uma população islâmica, algo que até agora ao menos nunca deu muito certo.

Mas falemos do belo romance Meu nome é vermelho, ganhador de prêmios como o Melhor Livro Estrangeiro na França, ou o Cavour, na Itália, ambos em 2002.

O livro sugere O nome da rosa, em seu título e tema, conflito entre liberdade e repressão, entre a necessidade humana e a pressão das religiões em negar essa humanidade ao humano, submetido aos desígnios divinos, quase sempre interpretados e aplicados por gente misantropa no geral, misógina no específico e despossuída do mais mínimo senso de humor.

A diferença entre os dois livros é marcada pelo futuro de cada uma das civilizações: na Ocidental, a Igreja perde e o bem vence. Na Oriental muçulmana, o resultado tem sido o que vemos nas teocracias obscurantistas que povoam aquela região do mundo.

Meu nome é vermelho se passa na Istambul do final do século 16. O império turco está no apogeu, conquistou e eliminou o último reino cristão do Ocidente; afirma-se como potência autocrática, e se prepara para celebrar o primeiro milênio da Hégira muçulmana. Para comemorar e propagar ao mundo e ao Ocidente todo o poder e riqueza do império otomano, o sultão Murad III encomenda um livro único, a ser produzido pelos maiores ilustradores do mundo árabe.

O problema começa com o contato entre as duas religiões e culturas. No Ocidente, a Itália explode em arte e humanismo. A pintura a óleo veneziana já mostrou toda a sua força transformadora. Os turcos, em contato com Veneza, admiram essa glorificação do humano, mas sem poderem replicar a experiência em seu país de origem.

Os pintores turcos ou árabes, proibidos de reproduzir a realidade humana pela religião de Maomé, assistem a esse momento de glória com uma mistura de admiração, amor e medo. Ao amarem o proibido, tornam-se pecadores em uma religião onde o pecado significa o inferno, neste mundo e no outro. Ao amarem a pintura como amam, ao reconhecerem a pintura ocidental como superior, negam os princípios básicos de sua religião, e sabem do perigo que correm, enquanto tentam desesperadamente ocultar sua admiração pelo divino que percebem no humano.

O livro, desejo do Sultão, deve ser realizado. E o Sultão, que é humano em sua vaidade, deseja um retrato de si mesmo feito no estilo ocidental, heresia que precisa ser disfarçada. Os ilustradores do ateliê do mestre Tio Efêndi correm perigo.

A obra é narrada por vários personagens que se apresentam ao leitor pelo seu nome. “Meu nome é Vermelho”. “Eu, o Cão”. “Serei chamado Assassino”. “Meu nome é Negro”. Eles são narradores e objetos de narração no estilo criado por Pamuk para este livro, que utiliza o cenário de um dos cafés de Istambul, locais dos únicos debates públicos possíveis no mundo árabe. Lá, um cego contador de histórias usa ilustrações para simbolizar seus personagens narrados. Entre personagens vivos e ilustrações que falam de si mesmas, somos conduzidos pela história que inicia com o assassinato de um dos ilustradores, o Elegante Efêndi. Ele dá inicio à narrativa descrevendo sua morte, sua surpresa e indignação com o acontecido e nos passa aos personagens seguintes, que irão construir a nossa compreensão desse mundo de ação e intriga, um mundo de faz de conta, imposto a todos por uma religião especialmente voltada para a negação do real.

Não há beleza possível. Existe apenas a contemplação dela, a perplexidade diante da liberdade que torna a beleza possível, liberdade essa que é e será negada aos ilustradores no particular e a todos os demais muçulmanos no atacado.

Meu nome é vermelho termina onde tinha que terminar. No Islã ninguém pode perseguir o belo, ninguém pode ir além do que foi um dia decidido por um profeta em seus sonhos. A beleza é intangível, porque irrealizável, proibida porque os humanos devem se submeter (Islã significa “submissão”) ao que não é humano. E tudo isso é tornado mais doloroso pelo saber que o que separa os ilustradores dessa beleza, que reconhecem, é apenas uma travessia: a travessia possível de um mar que os levaria para a liberdade européia; a travessia impossível que teriam de fazer desde a sua religião até uma heresia definitiva.

Orhan Pamuk vive hoje no exílio. A Turquia laica, porém oriental, não é uma democracia nos termos que compreendemos. O restante do Islã é muito mais duro e parece sorte que não tenhamos ainda nenhuma fatwa a la Rushdie, com a diferença de que Pamuk escreve bem demais.

Não sei se os ilustradores narrados em Meu nome é vermelho puderam imaginar, apenas olhando para as pinturas italianas, para onde o Ocidente acabaria indo. No livro, parece que sim, sabiam. Tanto que o sonho desses ilustradores aprisionados ao Islã, que passam a vida pintando o que não vêem, é, ao final, tornarem-se cegos e então, finalmente, passarem a ver somente o que Alá sempre desejou que os homens tivessem diante de seus olhos.

A arte no mundo islâmico, mostram os pintores de Pamuk, não é livre, não traz liberdade, e não é humana. Triste a vida desses artistas a quem é negada a essência da arte. Triste a vida dos demais humanos que vivem sob essa mesma impossibilidade. Tudo isso nos diz Pamuk, lindamente, em Meu nome é vermelho.

Meu nome é vermelho
Orhan Pamuk
Trad.: Eduardo Brandão
Companhia das Letras
536 págs.
Marcelo Carneiro da Cunha
Rascunho