A imaginação dos exilados

Vasta obra de Orígenes Lessa se coloca à margem de escolas literárias em prol da arte de narrar
Orígenes Lessa por Tiago Silva
01/09/2013

Romance mais conhecido de Orígenes Lessa, O feijão e o sonho (1937) foi várias vezes adaptado para a teledramaturgia, atingindo altos índices de audiência quando transformado em “novela das seis”, com direção de Herval Rossano, em 1976.

Como ocorre em muitos casos, se a versão televisiva do romance por um lado ajudou a divulgar o autor, por outro o circunscreveu à classificação — perigosamente redutora — de produtor de obras açucaradas, capazes de cair, com facilidade, no gosto popular.

Assim, não é difícil lembrar da figura do poeta Campos Lara (o Juca), que encarna o papel do sonhador, alheio às demandas da dura realidade, em seus embates com a mulher, Maria Rosa, que a todo momento insiste em lembrar ao marido “quanto custa o feijão”. O contraste que aqui se põe seria, basicamente, o da radical oposição entre os ideais da arte, encarada como espaço fugidio e inútil, e o das necessidades urgentes e materiais da vida.

Em termos filosóficos, o romance mais famoso de Lessa aponta à exacerbação, conduzida ao limite máximo, das dicotomias entre o Discurso Utilitário (sinalizado por reiteradas expressões ao redor dos signos “feijão” e “preço”: “o feijão está custando o olho da cara”) e o Estético (consubstanciado na idéia de que a poesia não tem finalidade, utilidade, sendo, como diria Manoel de Barros, um verdadeiro “inutensílio”).

Feijão é sonho
Infelizmente, o protagonista do romance, entregue às exigências do cotidiano, das contas a pagar e do sustento da numerosa família, decepciona-se com o “sonho” e é arrastado para a visão pragmática da vida, em que não há lugar para o poético.

A inviabilidade — um tanto trágica — da conciliação entre o poeta e o mundo real, que faz com que o romance recaia fatalmente na estereotipia dos antagonismos, parece resolver-se, de modo bem-humorado, posteriormente na obra infanto-juvenil Confissões de um vira-lata(1959), em que o protagonista-narrador, um cachorro, a certa altura revela:

Tudo, na minha longa existência, todas as minhas recordações — e mesmo muitos casos de amor que eu não vou desprezar — estão quase sempre ligados à falta ou à conquista do pão, à luta pelo osso, com ou sem carne, no bicho morto ou no vivo. Pra mim, feijão é sonho…

À margem
Eliezer Moreira, no prefácio à 56ª edição do romance (Global, 2012), lembra o quanto a obra de Orígenes Lessa precisaria realmente ser compreendida por suas particularidades, um tanto quanto dissonantes às que se produziam à época de sua publicação. Com efeito, é necessário situá-la no contexto da década de 1930 e, conforme ensina o estudioso, o que marcou especialmente a literatura brasileira nos idos de 1938 foi o debate inconciliável entre duas fortes tendências: de um lado, o romance social, de cunho esquerdista, e de outro, o psicológico, de caráter intimista, dos autores católicos, tidos como direitistas:

A divisão, absurda, diga-se de passagem, ia do campo político ao geográfico, havendo tanto um romance do Norte quanto um romance do Sul. Alguns dos lançamentos editoriais de 1938 dão idéia dessas diferentes tendências. Além de O feijão e o sonho, foram publicados naquele mesmo ano Olhai os lírios do campo, de Erico Verissimo, Mãos vazias, de Lúcio Cardoso, Pedra bonita, de José Lins do Rego, e Vidas secas, de Graciliano Ramos, que formava com Jorge Amado a dupla mais notória da vertente dos autores esquerdistas. 

Sabe-se o quanto a animosidade entre os dois grupos acabou por prejudicar autores admiráveis do período, como Cornélio Penna, Octávio de Faria e Cyro dos Anjos, além do próprio Lúcio Cardoso, hoje escritores mais que consagrados.

Diante disso e compreendendo o que se dava então, como e onde situar Orígenes Lessa?

Embora fique evidente que O feijão e o sonhoacabou se afirmando como um clássico de nossa literatura no sentido de obra de larga aceitação e que tenha cumprido seu percurso à margem da dicotomia ideológica que marcou a data de sua publicação , talvez fosse importante, antes de buscar “engavetá-lo” em alguma categoria, ouvir o que teria a dizer a respeito o próprio autor, em diversas entrevistas recusando o vínculo que alguns críticos, como Wilson Martins e Bella Jozef, lhe atribuíram, buscando inseri-lo numa vertente modernista:

Eu vou fazendo minha coisa como sei e como posso fazer, (…) sem me preocupar muito com escolas e modas. Nunca fiz parte de qualquer grupo ou panelinha literária. Estive sempre à margem e pretendo continuar assim.

Ou ainda:

Não pertenço nem pertenci a “ismos”. Se alguma vez fiquei ao lado de um grupo é porque concordava com o que estavam defendendo naquele momento. Agora, quando as pessoas falam que fui influenciado pela Semana de 22, respondo: como não, se ela reformulou a linguagem usada até então?

E, de fato, em termos estilísticos, o que se tornou uma das habilidades mais interessantes de toda sua vasta obra (mais de setenta livros, entre romances, contos e livros infanto-juvenis) foi a destreza com que criou diálogos, o que justificaria, em boa medida, a versatilidade com que seus textos puderam ser adaptados, por exemplo, para a teledramaturgia.

Além disso e nesse sentido, talvez pudéssemos de fato reconhecer algum acento modernista: verifica-se a espontaneidade com que se apropria de certos jargões populares, provérbios, termos colhidos no interior ou no sertão (seja do estado de São Paulo como do Maranhão) e nos trocadilhos espertos com que manuseia a linguagem e suas variantes sociolingüísticas.

Língua latida
Se à primeira vista essas marcas da expressão popular oral soam um tanto quanto carregadas, tangenciando algo de muito estereotipado ou caricatural, numa leitura mais aprofundada do percurso literário do autor é possível notar uma intenção explícita em valorizar a cultura empírica, o falar caipira ou da periferia em contraposição ao da capital enfim, os múltiplos falares que se distanciam da norma culta, numa busca incessante por certa autenticidade. Essa prosa à vontade com o espírito lúdico que a linguagem oferece se reafirma ainda nas investidas de sua rica literatura “para crianças”, em que seres inanimados ou bichos, personificados, contam-nos sobre sua condição. É o que notamos, por exemplo, em várias das tiradas de Confissões de um vira-lata:

[…] Felizmente eu fui, sempre, um cachorro de paz. E uso a cabeça. Acho que a cabeça não é apenas moldura para olhos, orelhas, focinho e boca, órgãos indispensáveis na luta pela vida.

Cabeça foi feita para pensar.

E latido não foi feito apenas para espantar ladrão, assustar criança, perder tempo com a Lua.

Latido é língua.

Latido é conversa.

Quem não late não se comunica.

É latindo que a gente se entende…

Eu tenho a impressão de que, no dia em que ensinarem nas escolas a linguagem latida (eles perderam muito tempo com uma tal de língua latina, julgando talvez que fosse a nossa…), os homens e os cães se entenderiam melhor. Acabaria essa relação de patrão e escravo. Não comeríamos mais em lata de lixo ou de quintal. Comeríamos na mesa…

Destino de lenha
Ainda para ilustrar os procedimentos narrativos de que lança mão, trabalhando com os vários níveis de ambigüidade da língua, vale notar o quanto Lessa, em outra interessante obra de literatura para crianças, Memórias de um cabo de vassoura (1948), detém a capacidade de deslocar elementos lingüísticos meramente denotativos para contextos em que passam a conotar algo, remetendo a uma infinita polissemia de sentidos:

[…] Destino de quem foi árvore ou galho é dureza…

E ninguém pode ter idéia do que é, para qualquer de nós, depois de corta aqui e corta ali e desce o machado ou passa a plaina, a visão de um simples prego. Como não temos o dom de ficar arrepiados, o sofrimento é puramente espiritual. O prego é trazido por mão impiedosa, é posto contra nós, em posição vertical, o martelo se ergue, desce a pancada fatal. Pan! Pan! O prego entrando… A madeira rasgada… E a ironia de saber que o cabo do martelo ou do machado é de madeira também…

Vingança da gente é quando o sujeito erra o golpe e acerta, não no prego, mas no dedo… É cada palavrão que a gente escuta…

Pior, porém, do que machado, serrote e prego, destino trágico e sem conserto, é a madeira que o bicho-homem utiliza apenas como lenha.

Destino de lenha é fogo!

Na análise das várias manobras com que Orígenes Lessa se debruça sobre as questões da língua, vale ressaltar a persistência dos deslocamentos, tanto do eixo da norma culta para o das expressões populares, como dos deslocamentos de termos que meramente denotam para outros contextos em que possam assumir, deliberadamente, alta carga conotativa.

Assim agindo, ele investe na função poética da linguagem, em sua acepção mais plena.

Porém, percebemos que isso não se dá apenas em termos estruturais da narrativa. De fato, parece ser subjacente a boa parte da obra do autor a temática da mudança, da transferência, seja espacial ou espiritual.

Exilados
Já em O feijão e o sonho, Campos Lara, não conseguindo meios para se manter com a família na capital de São Paulo, muda-se para a pequena cidade de Capinzal. A partir de então, veremos desfilar diante de nós a série de desajustes sofridos pelo poeta, que, como um exilado, precisa dar conta de todo contraste entre a urbe e a vida rural, marcada pelo provincianismo de seus habitantes.

É claro que nosso autor consegue extrair dessas dicotomias muito do sumo de sua rica matéria-prima ficcional. Isso é tão notório que o crítico Afrânio Coutinho o teria alinhado a uma das principais correntes da ficção modernista, que aprofunda o debate entre “nacional e regional”. Além do mais, para o eminente estudioso, a escrita de Orígenes Lessa responderia às preocupações do documentário urbano-social, que quer registrar a realidade simples “à custa da observação de problemas e costumes da vida urbana da classe média”.

Timotu Kalu
Mas é no conto Timotu Kalu (A cidade que o diabo esqueceu, 1932) que melhor se aproveitam as contradições do deslocamento, que muito revelam sobre a poética do autor.

O título se refere ao nome do protagonista, um “homem longe de sua terra”, “moreno, de olhos apertados e duros, cabelo grosso e negro, sem um fio branco, maçãs salientes”, que tentava obter a cidadania brasileira. É ele o pensionista mais antigo da casa de Dona Belinha, em São Paulo, do qual se sabe apenas que se trata de um estrangeiro:

Os poucos pensionistas internos, tão amigos de conhecer a vida alheia, quase nada saberiam dizer sobre seu mais antigo companheiro de casa. (…) Timotu Kalu era desafio permanente às imaginações ociosas daquela pensão a vegetar numa São Paulo orgulhosa de sua ascensão, já quase a alcançar trezentos mil habitantes.

No brilhante estudo A cidade fictiva: visões e mundos da cidade em contos contemporâneos brasileiros, chilenos e portugueses, Paula Andrea Vera-Bustamante de Lima reconta, detalhadamente, como se deu o “abrasileiramento” do personagem e a transição de sua vida hermética e misteriosa para a epifânica revelação do lugar de onde viera. Tratava-se da Zululíndia, que Timotu descreveu com a maior riqueza de detalhes:

Era a ilha mais bela dos mares do sul. A pérola dos mares do sul. Cascatas maravilhosas. Rios soberbos. A baía da Guanabara mal podia ser comparada à de Kikango, a terceira em beleza da ilha encantada. Árvores altivas, ainda não conhecidas pela ciência euro-cristã, eram a réplica vitoriosa da Zululíndia aos flamboyants, aos ipês, às quaresmeiras, às paineiras, que ele nas épocas de floração ia procurar no interior, para rever em árvores isoladas, o que era esplendor florestal nas encostas e vales de Panatu, Dinkobar e Sanasara. Djanira ouvia. Xarazade falava. 

E assim, aos poucos, a terra de origem do estrangeiro passa a ser assunto de todos, que faziam fila para ouvir suas histórias.

Zululíndia e Timbuktu
A Zululíndia de Orígenes Lessa evoca também Timbuktu, decantada pelo poeta inglês Alfred Tennyson (1809-1892), assim como na literatura contemporânea por autores como o americano Paul Auster (Timbuktu, 1999) e o italiano Alessandro Baricco (Mundos de vidro, 1999):

Timbuktu. A pérola da África. A cidade inencontrável e maravilhosa. O cofre de todos os tesouros, morada de todos os deuses bárbaros. Coração do mundo desconhecido, fortaleza de mil segredos, reino fantasma de toda a riqueza, meta extraviada de infinitas viagens, nascente de todas as águas e sonho de qualquer céu.

O lugar utópico da narrativa de Timotu Kalu passa a ser o parâmetro mais fidedigno para as grandes transformações pelas quais São Paulo deveria passar, e seu narrador se converte numa espécie de guru, capaz de dar respostas mágicas para solucionar graves problemas como o analfabetismo e a pobreza.

Mas o contraponto ao idealismo do protagonista será encarnado por um personagem alemão, Kurt Weiss, cujo sorriso irônico diante de toda a ingênua platéia entusiasta de Kalu acabará por revelar a verdade: a de que a Zululíndia não era absolutamente nada daquilo que o estrangeiro contara. Conforme o que se vem a saber, era “a ilha mais torpe, mais podre, mais pobre, mais corrupta dos mares do sul. É a ilha da miséria, do analfabetismo, dos políticos mais venais do mundo!”.

O idealismo de Timotu Kalu estaria para o sonho de Campos Lara tanto quanto o realismo de Kurt Weiss para a visão pragmática de Maria Rosa ao alertar o marido para o “preço do feijão” e, enfim, da sobrevivência.

Na verdade, explicará o alemão, Timotu não era um farsante como se poderia supor —, mas sim o único ser puro, honesto e idealista que nascera naquela ilha, o único “patriota que houve por lá, nos últimos cem anos… Por essa razão foi expulso… Principalmente por ser honesto”.

Importa notar que, por meio da fabulação, do exercício excitante de imaginar e, mais do que tudo, narrar (segundo Todorov, narrativa é vida), o exilado consegue resistir às hostilidades do lugar de chegada. As mentiras contadas sobre a terra imaginária criam uma Zululíndia perfeita, nada mais do que a deformação absoluta da Zululíndia real.

Nesse caso, toca-se no debate sobre os limites da ficção, uma vez que a literatura pode ser encarada como o espaço do possível, uma vez que a vida é sempre falta e a arte estaria, assim, ligada à capacidade de reinventar-lhe o sentido. A partir da fabulação é possível habitar o inabitável, suportar o insuportável, narrar o inenarrável.

A Zululíndia perfeita de Timotu Kalu pode ser comparada a um dos recursos de que trata o personagem Kublai Kan quando indagado por Marco Polo acerca da existência do inferno, na obra As cidades invisíveis (1972), do genial Italo Calvino. Segundo aquele sábio, o inferno não estaria em outra dimensão, mas seria o que vivemos todos os dias. Haveria dois modos de suportá-lo: não tomando conhecimento de sua existência, alienando-se e conformando-se ao mesmo; ou elegendo o quê e quem não o representasse, fazendo com que essa experiência positiva durasse, permanecesse.

De certa forma, o estrangeiro do conto de Lessa cria saídas para o inferno de se saber oriundo de uma terra abjeta e a reconfigura, por meio de seu narrar pleno de arroubos imaginativos, quase delirantes, sendo assim também amplamente aceito na terra de chegada, São Paulo.

O estrangeiro e a fantasia
A propósito da condição do estrangeiro que é obrigado a migrar, o estudioso italiano Alessandro Dal Lago, ao tratar das crescentes questões migratórias que vêm tomando conta do cenário de seu país, conta a história de um menino de oito ou dez anos (imigrado, não italiano) que, levado por policiais a uma prisão para menores, na tentativa de fugir às forças da ordem, sem qualquer documento, fornece-lhes nomes pouco críveis, como Dumbo, Mickey, Pato Donald. Declara ser americano, mas parece árabe; os agentes sociais, entretanto, reconhecem-lhe traços eslavos. A um certo momento, ele começa a delirar e afirma ser um extraterrestre vindo do espaço. Mais tarde, confessa a uma assistente social: “Mas por que, em vez de ser extracomunitário, não posso se um extraterrestre?”.

A fantasia seja fruto do desespero, seja da resistência é sempre fecunda e é matéria essencialmente narrativa.

Retratos da infância
Ela também é característica marcante de Paulinho, o narrador-protagonista de outra importante obra de Orígenes Lessa: Rua do Sol. De extração autobiográfica, publicado em 1947, pode ser incluído no rol das boas obras literárias sobre a infância. Como bem observa Adolfo Casais Monteiro, este não é o romance de Paulinho, e sim uma “série de relances da sua descoberta da vida”. De fato, as narrativas se apresentam como retratos da infância que tangenciam as impressões do autor, no período aproximado entre os seis e os nove anos.

Independentemente das classificações e dos julgamentos da crítica, o que aqui se evidencia é outra espécie de deslocamento, uma vez que a família do menino, devido a problemas de saúde da mãe, que acabará morrendo, precisa se mudar de São Luís do Maranhão para Cajapió, lugar atrasado que, na realidade, não era muito diverso da Zululíndia real do conto Timotu Kalu:

Casas de palha, erguidas sobre moirões de carnaúba, a mais de metro do chão, que no tempo das chuvas era a terra invadida. A escada, um tronco de carnaúba, os degraus cavados ao longo. Dentro, pequenos bancos rústicos, modestas imagens, redes enroladas, pendentes de ganchos. A sensação de insegurança lhes cortava a alma. O pão era escuro, tinha um gosto amargo. Almoço era peixe e pirão. […] Mas o campo alagado a se perder de vista, os coqueiros emergindo da água, a floresta densa, cheia de mistério, ao fundo, a certeza de que os jacarés rondavam e o silêncio, um silêncio vazio, pesado, apenas cortado pelo voo das aves, não permitiam a Paulinho e Tito compreender o deslumbramento com que o pai derramava os olhos pela paisagem de abandono.

Diante do inusitado da nova paisagem e do temor que a travessia significava, o menino, de certo modo também um “exilado”, passa a transfigurar o que lhe está em torno, encarnando, poderoso (de modo análogo a Kalu), o papel do contador de histórias:

Logo tinha amigos. E amigos dos que mais lhe agradavam. O menino da capital tinha o que contar, formava público, tinha ouvintes deslumbrados. Começou por estranhar que só conhecessem o carro de bois.

Como vocês são atrasados! Já ouviram falar em bonde?

E descrevia os humildes bondinhos de São Luís como coisa de conto de fadas, estalava o chicote no lombo dos burros, mandava os passageiros entrarem, falava nos grandes passeios. Mas havia mais. E então chegava o grande capítulo: o automóvel. Os garotos mal acreditavam. Muitos punham em dúvida.

Sem nada puxando?

Ele aí pintava com cores fantásticas o estranho veículo, aparição quase infernal, espocando nas ruas, alarmando a cidade, arrastando os passantes. Logo foi dando asas à imaginação, à medida que os via boquiabertos. O carro passava numa nuvem de pó. Os jornais, os papéis eram puxados pela voragem do vento. Pouco depois já eram as crianças. Logo a seguir, os homens. Não demorou, realizava autênticas mortandades. O automóvel não era mais um carro, já encarnação mesma do demônio. O motorista, vestido de vermelho, tinha chavelhos e barba, um fabuloso garfo na mão, que agitava no espaço […] Uma tarde estava brincando na calçada quando pressentiu de longe a aproximação do automóvel. […] Todo o mundo fugiu. Ele não. Ficou esperando. Pegou uma pedra e esperou, seguro num lampião, por causa do vento. Quando o homem de vermelho quis lançar-lhe o garfo, ele — zás! — atirou a pedra. Foi direitinho no olho.

E tem muitos assim? — perguntou um negrinho.

Se tem? E tu ainda pergunta? Automóvel agora é praga em São Luís. Todo mundo está saindo de lá. Foi por isso que nós viemos pra Cajapió…

Se lembrarmos do Miguilim de Guimarães Rosa, talvez pudéssemos ver alguma possibilidade de aproximação a este Paulinho de Orígenes Lessa no quesito fabulação, já que os dois guardando-lhes toda diferença e distância necessárias são detentores da capacidade inesgotável de reinventar a vida por meio do narrar.

Longe de seu lugar, a criança “deslocada” cria, por meio das narrativas que engenhosamente inventa, outra realidade, de modo análogo ao que Kalu ou o poeta Juca (de O feijão e o sonho) cada qual a seu modo faziam.

Até mesmo o cabo de vassoura do referido livro de literatura infanto-juvenil do autor, a partir do momento em que é “deslocado”, retirado de dentro do armário da despensa pelo menino Mariozinho, passa a se chamar Bonaparte e a ter uma vida repleta de aventuras, trotando mundo afora com a criança que o monta.

Na curva do tempo
As novas edições da obra do autor receberam, por parte da editora Global, glossários de termos e expressões e prefácios de abalizados críticos. Isso se justifica porque, de fato, ainda mais hoje, em tempos pós-modernos, faz-se necessário atualizar tendências literárias muito datadas, de outrora.

Ainda que em boa medida as expressões e termos dos romances de Orígenes Lessa remetam à idéia de que o mundo acabou (aliás, título de uma excelente obra de Alberto Villas) ou de que tudo ficou longe, na curva do tempo, há algo que transcende os limites temporais de sua vasta produção artística.

Seja por meio do fracassado poeta cujo sonho cede às agruras da realidade; do estrangeiro que recria sua terra magicamente; do menino que mente sem saber que o faz, pintando de novas cores seus dias cinzas; ou de um simples cabo de vassoura, capaz de lembrar seus dias de glória, o que a escrita de Orígenes Lessa revela é a fé obstinada na arte de narrar, reacendendo, sobretudo, o fogo prometéico da imaginação dos que, eternos exilados, ainda não se deixaram corromper.

Orígenes Lessa
Nascido em Lençóis Paulista, Orígenes Lessa (1903-1986) viveu parte da infância em São Luís (MA) e posteriormente em São Paulo. Ingressou, aos 20 anos, no Seminário Teológico da Igreja Presbiteriana, abandonando o curso e mudando-se para o Rio de Janeiro, onde atuou na publicidade e no jornalismo. Autor de cerca de setenta livros, entre romances, contos e ensaios, reconhecido como um dos grandes escritores brasileiros, inclusive por sua extraordinária obra voltada para o público infanto-juvenil, a partir dos anos 1970 dedicou-se quase exclusivamente a este gênero, publicando cerca de quarenta títulos. Foi membro da Associação Brasileira de Imprensa e da Academia Brasileira de Letras.
Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

Rascunho